Por Esther Louro
Onze militares do 6º GAC retornaram do país que ostenta o triste título de mais pobre do hemisfério ocidental
O título desta matéria nos remete à famosa música de Caetano Veloso e Gilberto Gil, mas a inspiração não vem dos compositores baianos, e, sim, de três militares do 6º Grupo de Artilharia de Campanha – Rio Grande – que fizeram parte, junto de outros 850 homens do Batalhão Brasileiro de Força de Paz (Brabat), do 23° contingente da Minustah, no Haiti.
Foram 11 militares do 6º GAC treinados e enviados ao país que ostenta o triste título de mais pobre do hemisfério ocidental. A equipe do Agora conversou com os cabos Weslen Bastos da Fonseca, Byllen Torma Ramos e Jaques Rodrigues da Rosa, que contaram o que aprenderam durante os sete meses de missão, o quão grande foi o choque ao chegarem à capital Porto Príncipe e o quanto desejam que o país se estabilize.
O tenente coronel Erlon Pacheco da Silva é o atual comandante do 6º Grupo de Artilharia de Campanha e não chegou a participar da missão de paz no Haiti, porém, foi em missão ao Sudão, no ano de 2006. O comandante relatou que a experiência pessoal e profissional de uma missão é excepcional e, segundo Silva, os militares fizeram falta no 6ºGAC. Porém, o envio de 11 militares para o “Brabat 23” é motivo de orgulho.
“Nós selecionamos entre os melhores e, neste tempo em que estiveram no Haiti, todos fizeram falta. Mas é um motivo de orgulho para nós do 6ºGAC, ter o grupo representado numa missão tão importante”. O comandante explica que antes do retorno ao trabalho, os militares tiveram alguns dias de descanso. “Agora eles já estão trabalhando normalmente, mas antes eles passaram por exames psicológicos, em Porto Alegre, pois teve que ser feita uma dessensibilização psicológica, afinal, foram quatro meses de treinamento e sete operando”, contou o comandante.
Os cabos
Dentre os militares, a reportagem conversou com os cabos Weslen Bastos da Fonseca, de 20 anos, no Exército há dois; Byllen Torma Ramos, de 24 anos, e Jaques Rodrigues da Rosa, de 25 anos, ambos no Exército há seis. Segundo eles, a saudade da família era grande, porém, o contato por meio de celulares e computadores era fácil.
Os três cabos chegaram a Porto Príncipe e ficaram três meses no Campo Charlie – maior instalação militar da ONU no mundo – que abriga o Brabat. Após, com a oportunidade de fazer um rodízio, os jovens, que sempre estiveram no mesmo batalhão na Minustah, tiveram a oportunidade de fazer o rodízio e ir pra Cité Soleil, a maior favela do país. Segundo os cabos, esta chance foi gratificante, pois ali eles tiveram mais oportunidades de entrar em contato com a população.
Choque de realidade
Mesmo após o treinamento, no qual, além da preparação física-militar, eram trabalhados os aspectos sentimentais e psicológicos com o auxílio de vídeos, que adiantavam um pouco do que seria visto na chegada ao Haiti, os três cabos relataram a mesma impressão inicial: o choque de realidade.
Segundo Jaques, o que seria, para a maioria dos brasileiros, lixo, para os haitianos é até motivo de agradecimento. “Chegando lá, a gente se depara com pessoas se alimentando com sobras. O choque é com a miséria, aqui a gente vê pobreza, mas não vê uma miséria como a de lá”, contou.
Para Byllem, os que reclamam da vida no Brasil não imaginam como é a vida no Haiti. “Durante o treinamento, a gente viu muitos vídeos pra não ter um choque tão grande, mas, mesmo assim, quando a gente chegou em solo haitiano, a gente viu que era tudo diferente. O jeito que as pessoas vivem, a cultura, a higiene, é uma coisa de outro mundo”.
Já para o cabo Weslen, o mais novo dentre eles, o maior choque foi perceber como, dentre tantos problemas, os haitianos sempre mantinham um lindo sorriso no rosto. “A gente andava pelas ruas e as crianças sempre sorrindo, correndo atrás das viaturas. O Exército Brasileiro deixou sua marca, dava pra ver pelo respeito que adquiriu, e também no rosto das crianças que comemoravam quando a gente passava. Cada um aprende algo que vai levar pra si, pessoalmente, eu vi que as coisas simples são as mais importantes”.
Missão
Apesar da consciência de que muitas são as carências do Haiti, segundo o tenente coronel Silva, a missão do Brabat é a pacificação e a estabilização da sensação de segurança, que, a propósito, já cresceu muito no Haiti. “Existe um conjunto de missões que procura apoiar e dar estruturas melhores para o Haiti, mas sabemos que ainda está muito aquém do que eles precisam, porque eles precisam de muito e de tudo”.
Em consonância com o comandante, Jaques explica que a missão do Brabat é manter o ambiente seguro e estável. “A gente estava lá pra levar segurança, melhorar o ambiente deles e dar condições de vida melhor. Esse era o nosso dever lá, e a gente cumpriu muito bem essa missão. Era notório, a gente passava em locais que não tinham movimento, e começava a fazer operações ali, patrulhas mais frequentes, e isso acabava inibindo qualquer ação de traficantes e gangues, e o pessoal começava a sair mais de casa. O local começava a ter maisvida”.
Acrescentando, Byllem explica que existem ONGs que realizam a parte de assistência humanitária no local. “Sentíamos muita pena, todos os dias. Mas tínhamos que respirar fundo e seguir em frente. Com certeza, gostaríamos de fazer mais, mas tem esse limite, que é o da nossa missão”.
Segundo Weslen, as ações sociais da ONU, muitas vezes, utilizavam militares, como na reconstrução de casas, pintura de escolas, distribuição de alimentos. “A gente queria ajudar mais. Se pudéssemos, tirávamos aquelas crianças de lá, porque miséria é miséria, mas, como militares, tínhamos o limite da missão, a qual cumprimos muito bem”.
Brasileiros bombagais
Bombagai é o apelido dado pelos haitianos aos soldados brasileiros e significa “sangue bom” ou “gente boa” na língua local, o crioulo haitiano. Segundo Byllem, nesses meses de missão, ficou clara a admiração que os haitianos têm pelo povo brasileiro. “A gente sentia muito cansaço, todos os dias a mesma rotina, patrulha, serviço, mas sempre que a gente saía pra rua, a gente conseguia voltar bem, porque sempre via um sorriso de criança, e isso amenizava a saudade do Brasil. Eles nos aceitam muito bem no país deles. Isso somou muito pra gente”.
Jaques concorda e disse que só em ver que são brasileiros, a recepção e simpatia são ainda maiores do que de costume. “Eles veem que somos brasileiros e nos acolhem bem; querem tocar, conversar […] Assim, nós conseguimos aprender um pouco da língua deles, e eles também queriam aprender português. Nós colhemos o que os 22 contigentes que estiveram lá plantaram, esse trato com a sociedade deles sempre foi respeitoso, com todas as tropas, mas a gente percebia que o Brasil era mais aceito do que os outros, eles viam uma viatura brasileira e a criançada já vinha pra volta, e os adultos tinham muito respeito”.
Valorizar o pão de cada dia
Os militares observaram que, após a volta, o mais simples lhes parece mais importante, desde o prato de comida caseira e a cama pra deitar, até a rotina familiar. “Estou dando mais valor às coisas simples, até aquele arroz e feijão a gente começa a ver de outra maneira, a primeira coisa que eu pedi pra minha mãe fazer foi batata frita […] muitas coisas que não dávamos valor no dia a dia, agora, com certeza, vamos dar”, refletiu Byllem.
Jaques, único casado entre os três, alertou também sobre a questão de se valorizar mais a família. “Nós ficamos por muito tempo afastados da família e deu para perceber a falta que ela nos fez e a falta que nós fizemos aqui”, disse o militar.
Valorizar o pão de cada dia, esta é a lição que Weslen disse ter aprendido com a missão. “Às vezes, a gente reclama tanto, que tem pouco, mas a miséria daquele país é diferente, as pessoas não tinham onde morar ou moravam em barracos, e sorriam. Temos que dar valor às pequenas coisas. Acho que a vida se resume a isso, aproveitar o que temos e sempre valorizar a nossa família”, conclui Weslen.
Falta de oportunidade
Quando perguntados se voltariam ao Haiti, se tivessem a oportunidade, os três entrevistados disseram que sim. Voltariam para ver como estaria o país e, principalmente, as pessoas que conheceram enquanto estiveram lá. “Desejo sim, queria daqui um tempo ver como ficou, o que aconteceu com as pessoas que estão na volta da base. Já estou curioso para ver como eles estão”, disse Jaques.
Para Byllem, a vontade de voltar é especialmente ligada às crianças. “Elas são muito espertas. Os pequenos já sabiam falar português. A força de vontade deles é incrível, eles só não têm oportunidades por estar naquele país, mas a população é incrível. As crianças sabiam todos os nossos nomes, a gente saía da base de capacete e eles gritavam o nosso nome, coisa que pra nós seria difícil quando se está fardado”.
Sobre falta de oportunidades, Jaques lembrou de uma situação que lhe marcou muito. Foi a rápida amizade que fez com um rapaz de 21 anos, muito inteligente e que fala cinco línguas, porém, lhe faltava uma oportunidade:
“Nós estávamos na base e tinha uma tela de proteção, então, tínhamos que cuidar desse local, e teve uma hora que chegou um haitiano falando um português muito claro […] ele fala inglês, francês, português, espanhol e crioulo. Lá é comum eles saberem duas línguas, o francês e o crioulo, mas aquele haitiano sabia cinco línguas […] durante a noite, eu fui ver que esse cara dormia na rua, ele dormiu naquele lugar, do lado da tela, onde a gente passou a tarde conversando, eu passei uma hora ali perto e escutei uns barulho e fui ver, eram os ratos, esse homem estava tapado com um pedaço de plástico e tinham ratos cruzando por cima dele […] ele era superinteligente, com tanta força de vontade e sem uma chance. Só faltava a oportunidade, muitas vezes, aqui a gente tem várias e não sabe aproveitar, ele só queria uma”.
60 dias sem tiros em Cité Soleil
Uma das maiores vitórias dos nossos entrevistados foi a conquista de 60 dias sem tiros em Cité Soleil. A comuna, que é palco corriqueiro de brigas de gangues e assassinatos, conquistou esta marca justamente quando os cabos Byllen, Jaques e Weslen estavam lá.
“A população marcou 60 dias sem tiros em Cité Soleil, tinha tiro todos os dias, a primeira vez que fomos lá, a gente estava almoçando e escutando os tiroteios, esse tempo nunca tinha acontecido em 23 contigentes, e aconteceu com o nosso”, contaram, orgulhosos.
Outra ação importante do Exército Brasileiro foi a instrução dada aos haitianos, que culminou na formação de policiais, em 2004 eram 2000 policiais e, agora, quase 12 anos depois, são quase 15 mil policiais. “A ideia da missão é essa, por isso o efetivo do Brabat vem diminuindo. Aos poucos, o país começa a andar com as próprias pernas, é difícil, mas a ideia é tentar que eles comecem a se desevolver pelos próprios meios”, acrescentou o tenente coronel Silva.
Minustah
Por meio da Minustah (Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti), o Brasil atua no país desde 2004, com a responsabilidade de garantir a segurança. Após o terremoto de 2010, que destruiu as ruas da capital e deixou mais de 200 mil mortos, o auxílio foi intensificado.
O 23° contingente na Minustah teve cerca de quatro meses de treinamento – iniciado em junho de 2015, no Ministério da Defesa – e as atividades no Haiti tiveram início em 3 de dezembro de 2015. Os militares retornaram ao Brasil no dia 28 de junho deste ano. Com um contingente de 850 homens do Batalhão Brasileiro de Força de Paz (Brabat) e da Companhia de Engenharia (Braengcoy), a tropa esteve sob a coordenação do coronel do Exército, Ricardo Pereira Araujo Bezerra.
Haiti
O Haiti é, atualmente, a nação mais pobre do hemisfério ocidental. Possui 10,3 milhões de habitantes – sendo 54% vivendo em extrema pobreza e 80% abaixo da linha de pobreza. O país sofre com a falta de investimento e infraestrutura.
A capital do Haiti é Porto Príncipe, cidade a qual pertence à comuna – espécie de bairro – de Cité Soleil, a mais pobre do Haiti, que abriga cerca de 365 mil haitianos e local onde existe uma base forte – e extremamente necessária – da Minustah, com o serviço do Batalhão Brasileiro de Força de Paz (Brabat).
A miséria total de Cité Soleil dá-se devido à sua formação sem planejamento. A região teria sido pensada para funcionar como um polo industrial, porém, o projeto nunca se concretizou e culminou em uma faixa extensa de pobreza extrema, que forma a maior favela do país.
FONTE:Jornal Agora