Por Plinio Lins
Em meados de abril do corrente ano, os amigos Alexandre Venson e Francis Barros me convidaram para assistir ao treino de acrobacia de competição que seria ministrado pelo veterano russo Sergei Boriak, na Estância Teimoso, perto de Curitiba.
Ocorre que, além de assistir o treinamento, acabei me deparando com uma ‘camada’ da aviação que jamais pensei que encontraria ali: em certa hora do dia, apareceu um senhor de aspecto simpático e tranquilo, que caminhava pelos hangares e observava os voos. Veio na direção onde estávamos eu e um colega de faculdade, e perguntou quem éramos, de onde vínhamos, e iniciamos uma conversa. Em determinado momento, descobrimos que ele tinha uma história inusitada e surpreendente: ele havia morado na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, e mais, havia aprendido a voar na mesma escola que formou os ases da Luftwaffe (1)!
Seu nome é Ary Schnaibel, e tem 86 anos. Seus pais vieram da Alemanha para o Brasil no início do século XX e residiram por um tempo no Paraná, onde ele nasceu. Porém, no início da década de 1930, a Alemanha estava se soerguendo de uma crise e passava por uma fase de grande crescimento econômico. Isso fez com que a família Schneibel resolvesse voltar para lá, indo morar em Dresden, bela e próspera cidade ao sul de Berlim.
Chegando lá, o pequeno Ary teve um estreito contato com o mundo da aviação, que então estava em um rápido desenvolvimento, e logo começou a se envolver com construção e voo de pequenos aeromodelos.
No entanto, como é de conhecimento geral, a Alemanha estava sob o governo dos nazistas, e estes não tardariam a lançar o país na maior e pior guerra que a humanidade já viu – a Segunda Guerra Mundial.
Esse quadro histórico fez com que o jovem Ary fosse obrigatoriamente encaminhado para a vida militar. E uma vez diante dessa situação, imediatamente ele vislumbrou a chance de se tornar um piloto de caça. Ocorre que, pela questão da idade, muitos capítulos da guerra já tinham acontecido quando ele estava pronto para se tornar um caçador, e isso fez com que ele percorresse uma carreira diferenciada durante o conflito.
Curioso para saber como era aquele método de formação que gerou tantos ases, passei a fazer a ele várias perguntas, às quais foi respondendo detalhadamente. Manifestei também a intenção de publicar essa experiência de vida, ideia com a qual ele concordou.
Assim, passo a reproduzir o que ele me contou:
Como era o ensino do voo na Alemanha
“O aprendizado de pilotagem era bem diferente do que existe hoje, e o indivíduo já saía solo desde o primeiro voo… Naquela época todo mundo descobria o voo sozinho! A aprendizagem era feita em várias etapas, e o curso era gratuito e bancado pelo governo, sob a responsabilidade da Hitlerjugend (2). Quando completávamos 14 anos éramos obrigados a nos alistar na Hitlerjugend, e era possível escolher para qual atividade você seria direcionado. Óbvio que escolhi o ramo da aviação.
“O curso começava com planadores básicos, que faziam apenas pequenos ‘saltos’. Depois, conforme o indivíduo fosse se aperfeiçoando, iam aumentando a distância e tempo dos voos.
“No primeiro estágio do curso, o planador era colocado em um barranco e amarrado em uma corda esticada em ‘v’, com quatro ou cinco garotos segurando na cauda. Iam puxando até esticar a corda, e em seguida soltavam. Era só um ‘pulo’, uma ‘planadinha’ e já caía no chão; o indivíduo tinha que se virar sozinho para pousar sem quebrar.
“Em seguida passavam para a fase de reboque a automóvel, que incluía o aprendizado de curvas em voo. Aí ou já era no Schulgleiter SG 38 ou no Grunau Baby. Rebocavam o planador com um automóvel, numa pista ou num terreno plano. Então acelerava até sair do chão, e, conforme o comprimento da corda, soltava mais alto ou mais baixo. Sempre em voos curtos. Mas nesse caso já começava a fazer curvas de 180º, 360º, etc.
“A fase seguinte era com um guincho. Lá onde eu fiz os treinos, em Dresden, o campo era arredondado, de limites irregulares, e então direcionavam o cabo de acordo com a direção do vento. Eram 1.400 metros de cabo. Decolávamos, deixávamos voar um pouco na horizontal a uns 30 metros de altura, e depois cabrávamos o nariz a uns 60 graus para dar uma subida rápida. Quando chegava mais ou menos na metade do comprimento do cabo você já estava na altura necessária, podendo então desligá-lo. Aí cada um se ‘defendia’ como podia, pegando térmica ou descendo planado. E era um lançamento atrás do outro, o céu cheio de planadores. E todo mundo em voo solo.
“Era uma média de 20 ou 30 lançamentos para cada um, o total dependia do aluno. Passada essa fase, já podíamos ir para a outra etapa, que era reboque por avião. Aí já era um planador de dois lugares, o Kranich. Nesse caso era preciso um instrutor junto – não para ensinar o voo, mas para passar os macetes para ficar atrás do outro avião. Naquela época não existiam as cordas de nylon, era cabo de aço. Então se você não mantivesse a corda esticadinha, levava uns trancos de assustar!
“E ao final você tinha os exames finais para receber o brevê. O exame era dividido em ‘prova A’, prova ‘B’ e prova ‘C’. Consistiam em um voo de 50 km planado, um voo com ganho de 3.000 metros e outro com 5 horas de voo em térmica. Mas muitos não faziam todas essas fases, e já iam para a instrução de avião, que era da esfera militar.”
O voo militar, e a preparação para voar o Messerchmitt Me-163 Komet
“Quando atingi a idade de me alistar fui incorporado à Luftwaffe. Mas quando cheguei nessa fase já era o ano de 1944, a Luftwaffe já estava no fim, e nem sabíamos se daria tempo de voar em combate. Mesmo assim, me encaminharam para pegar instrução inicial do Messerchmitt Me-163 Komet – aquele ‘foguetinho’.
“Sabíamos que o número de baixas nesse modelo era monstruoso, em torno de 75%, mas naquela idade nós éramos loucos mesmo, e não ligávamos para isso. Esse avião voava até acabar o combustível, e depois planava para pousar. Ele tinha sete cargas de foguete, e com uma carga ele já subia até 12 mil metros. Então a regra era já atacar os bombardeiros inimigos na subida, de baixo para cima, para depois dar a volta pelo alto e mergulhar atacando também – ir ‘costurando’ até acabarem as cargas. Quando esgotassem os foguetes, a regra era apontar o nariz para o chão e mergulhar para fugir e pousar. Esse avião não era mais do que um planador, equipado com foguetes e armamento. Só que no mergulho ele não passava de 500 km/hora, e os Mustangs e os caças russos atingiam 700km/hora. Então você não tinha o que fazer numa situação dessas, não tinha arma virada para trás! Caso o indivíduo tivesse sorte e conseguisse escapar, ainda tinha o pouso pela frente, que era algo crítico. A velocidade de pouso era de 180 km/hora – cerca de 100 nós – e não tinha pista, não tinha aeroporto, tinha que pousar em qualquer lugar. E se o terreno fosse ruim, a 180 km/hora … meu amigo, o ‘troço’ era feio!”
“No curso para voar o Komet nós usávamos não ele, mas o Grunau Baby, que era rebocado até 3 mil metros de altura. Quando desligávamos, esperávamos um pouco e picávamos com tudo o manche, afundando o nariz e iniciando um mergulho a 90 graus em direção ao solo. Era para deixar ele mergulhar assim até uma altura de uns 300 metros, para só então nivelar. Tudo isso era para treinar a atitude de fuga do Komet. O planador não pegava velocidade, então era tranquilo para sair, dava uns 4 ou 5 ‘Gs’, mas isso não machuca ninguém e o Grunau aguentava tranquilamente. E com isso, quem era medroso já caía fora! E embaixo havia uma pista bem demarcada, com 15 metros de largura e 80 metros de comprimento. Três pousos fora daquela área e estava fora do curso, não servia para voar o avião. Mas não me lembro de ninguém ter sido desligado nessa fase, afinal, ficávamos o dia todo dentro do avião e ficávamos super acostumados.”
Mudança de rumos e a impossibilidade de voar na Luftwaffe
“Mas enfim, quando terminei essa fase a Luftwaffe praticamente já havia acabado, estava realmente ‘esculhambada’. As bases haviam sido bombardeadas pelos ingleses e americanos, e não havia mais combustível para os aviões que sobraram. Então acabaram me mandando para o front como soldado mesmo: começamos o treinamento de guerra de infantaria, e esse treinamento já era feito caminhando em direção ao Leste, onde nos juntaríamos ao grosso das traffeopas que estavam tentando deter o Exército Vermelho, que nessa época já estava na Polônia. Nos dois primeiros anos os russos apanharam muito e quase perderam a guerra, mas desde 1943 eles haviam começado um contra ataque muito difícil de segurar. A maioria das tropas alemãs sempre foi direcionada para a luta contra a Rússia, só que agora estava muito difícil manter. Se for contar toda a distância que eu percorri na ida, e tudo que voltei recuando, debaixo do ataque russo, deu uns 3000 quilômetros de caminhada, em três meses…”
No front, como soldado de infantaria
“Quando eu cheguei no front os russos já haviam tomado Varsóvia, e estavam avançando em direção à fronteira da Alemanha. Nós lutamos no interior da Polônia, e levamos muito chumbo deles; fomos nos virando como podíamos.
“O dia mais difícil no front foi o primeiro… Porque durante o treino nós nunca tínhamos escutado granadas, metralhadores e canhões estourando daquela forma, e o pior era saber que estavam atirando em nós. Todo dia tinha troca de tiros pesada. A companhia não lutava toda junta, ficávamos espalhados em grupos menores. Algumas vezes, para usar algumas armas contra os tanques tínhamos que chegar a apenas uns 30 metros deles! O tanque T-34 levava 8 segundos entre um tiro e outro, e nesse intervalo dava para correr um bom pedaço – segundos preciosos sobretudo na hora de fugir.
“A sorte que tivemos é que nossa unidade era comandada por um sargento super experiente, com 5 anos de guerra nas costas. Ele sabia exatamente onde dava para parar e atirar, e onde não adiantava fazer nada. Se não dava, mandava recuar sem escrúpulos. Era um sujeito decente. Já estava tudo no fim mesmo, tudo perdido, por que ficaríamos lá marcando posição? Mas mesmo com esses cuidados, lembro que na nossa unidade, além dos mortos, uns 5 soldados simplesmente sumiram, nunca soubemos se foram atingidos, levados prisioneiros…”
Os dias finais da guerra
“Quando terminou a guerra nossa unidade já tinha recuado centenas de quilômetros e se deslocado para o outro lado; estávamos perto do porto de Hamburgo. A Alemanha estava sendo tomada pelos russos ao leste, e pelos demais aliados a oeste. Então o comandante chegou para nós e disse: “A guerra está acabando, agora é cada um por si. Juntem todo o armamento, coloquem uma dinamite no meio e explodam. Joguem fora os uniformes, procurem roupas de ‘paisano’ e tentem ir para suas casas.” Porém, pouco tempo depois fomos presos pelos ingleses, que estavam avançando na região.
“Era tanta gente presa que era impossível que arrumassem comida e água para todos, e durante uns dez dias chegamos a ficar com apenas um copo de água diário. E os ingleses não fizeram muita questão de organizar nada, nem olhavam na nossa cara. Quem trabalhava para cuidar de nós e dos demais prisioneiros eram pessoas de origem negra – imagino que eram oriundos das colônias inglesas, como a África do Sul e Nigéria – e eles também não eram bem vistos pelos ingleses. Mas foram esses que nos ajudaram. Esforçavam-se muito para trazer alguma comida e água.
“Depois de alguns dias, iniciaram a soltura dos presos, começando pelos mais velhos e pelos mais novos. Iam chamando os grupos de acordo com o ano de nascimento: 1926, 1925, 1924, etc. Lembro que quando chamavam nascidos em determinados anos quase não havia prisioneiros, a maioria havia morrido. Eram pessoas que já estavam fazendo o serviço militar obrigatório quando a guerra começou, e desses praticamente não sobrou quase nenhum. Sobreviver a um mês de guerra já é difícil, imagina dois, três…um ano, dois anos… A minha sorte é que eu não tinha idade quando tudo começou, e da minha idade havia sobrado mais ou menos a metade do contingente.”
A Alemanha em ruínas
“Depois de soltos, cada um buscou o caminho de casa – a pé, pois não havia nenhum meio de transporte funcionando. O país estava um caos. Eu peguei a estrada em direção a Dresden, e caminhei para lá junto com um grupo de judeus, recém saídos de um campo de concentração – nós caminhamos por 5 dias. Por incrível que pareça, consegui achar minha casa e minha família. A região central da cidade havia sido praticamente aniquilada durante várias ondas de bombardeio dos aliados – eles jogaram até barris de fósforo, para queimar tudo mesmo – mas os bairros dos arredores, onde ficava minha casa, não foram tão atingidos. Porém, nenhum dos meus amigos que tinha ido para o front voltou. Inclusive perdi dois tios e dois primos, que nunca voltaram da Rússia. Nessa hora você fica com muita pena sobretudo das mulheres com filhos pequenos. Nós adultos sofremos quando ficamos sem comida, mas depois vamos nos acostumando. Mas criança pequena não, e isso é muito triste.”
O dia seguinte
“Depois as coisas foram se ajeitando aos poucos. Quando dividiram a Alemanha, Dresden ficou do lado soviético, e bem no quarteirão da minha casa o NKVD (3) instalou uma de suas bases. A vantagem com isso é que fecharam um perímetro muito grande ao redor, e ninguém chegava perto, ficamos bem seguros… E aos poucos fomos nos acostumando com a presença dos russos: na verdade, nunca tivemos nenhum problema com eles, eram gente boa! E aí você vê a estupidez daquela guerra: tanta gente morta, e no final eram pessoas iguais a nós.
“Mas lembro-me que um dia estávamos num baile que era só de alemães – os russos tinham ordens de não se misturarem conosco – e em determinado momento entraram alguns oficiais do Exército Vermelho. Eles se sentaram e começaram a beber, e nós nem ligamos, deixamos eles lá bebendo à vontade. Mas algum tempo depois surgiram pela porta agentes do NKVD, que começaram a berrar e espancar esses oficiais com coronhadas de revolver e de fuzil, na frente de todo mundo. Humilharam eles na nossa frente. Depois saíram arrastando-os para fora, jogaram eles dentro do caminhão e foram embora. Eu fico lembrando disso e acho engraçado esse pessoal hoje em dia que tem pena de delinquente… se eles soubessem como era o cotidiano daquela época…”
Aqui termina o relato gravado
Quando o Sr. Ary estava contando essa parte da história, um dos aviões acrobáticos decolou e começou a manobrar sobre nós, e tanto ele quanto eu desviamos o foco para prestar atenção no voo. Ao retornar a conversa, ele me contou como sua vida foi se reestruturando: depois de três anos (em 1948) ele e a família embarcaram em um navio do Lloyd Brasileiro, retornando novamente ao Brasil. A viagem de volta foi narrada por ele em um diário recheado de fotos e ilustrações, com algumas páginas que são uma verdadeira obra de arte.
Chegando ao Paraná, ele se incorporou ao Exército Brasileiro, ao qual serviu durante um tempo, e após seu desligamento envolveu-se em diversas atividades relacionadas ao voo, inclusive ajudando a fundar a IPE Aeronaves e a Estância Teimoso, condomínio aeronáutico no qual reside até hoje.
FONTE: Aeromagia.net
As fotos em preto e branco foram cedidas por Ary Schnaibel.
Colaborou: Thiago dos Santos Dias
Notas:
(1) Força Aérea Alemã
(2) Juventude Hitlerista – instituição de alistamento obrigatório que visava treinar e doutrinar jovens para as atividades civis e militares do “Reich”.
(3) Sigla para “Narodnyy Komissariat Vnutrennikh Del“, ou “Comissariado do Povo para Assuntos Internos”. Era a polícia responsável pela segurança política do Estado soviético, e que mais tarde se transformaria na KGB (Comitê de Segurança do Estado).
Belíssimo relato. A passagem mais emblemática de todas é a que revela que os negros eram os que se esforçavam para ajudar os prisioneiros alemães, justamente aqueles que juraram perante o símbolo nazista defender a Alemanha das raças inferiores. Poucos entenderão o real significado desse gesto. Simplesmente fantástico!