China e Japão disputam territórios enquanto apresentam novas versões para episódios traumáticos de suas relações diplomáticas
TÓQUIO. O ano mal começou e já pode ser considerado ruim para as relações entre Japão e China, as maiores potências asiáticas. Desde janeiro, Pequim fez 69 acusações contra Tóquio, que rebateu pelo menos 67. É uma guerra de palavras entre dois titãs, movida por disputas territoriais e interesses domésticos, mas principalmente por feridas antigas. Com interpretações distintas de episódios históricos, chineses e japoneses vêm remexendo num passado doloroso, fortalecendo sentimentos nacionalistas – e raivosos – de ambos os lados.
Criminosos de guerra, atrocidades, escravas sexuais. Desde que o primeiro-ministro japonês Shinzo Abe chegou ao poder, há um ano, fatos que pertencem à primeira metade do século XX parecem ter ficado menos distantes, misturando-se ao noticiário político. Abe já deixou claro que não concorda com a visão predominante sobre as agressões cometidas pelo Japão antes e durante a Segunda Guerra Mundial.
Além disso, defende a reforma da Constituição pacifista, encarada pelos conservadores como uma imposição do vitorioso Exército americano no pós-guerra. A visita do primeiro-ministro, em dezembro, ao mais controverso templo japonês, o Yasukuni, reforçou sua agenda nacionalista, reacendendo a ira de chineses e coreanos, que sofreram nas mãos das tropas imperiais no período pré-1945.
POLÊMICO SANTUÁRIO
O Yasukuni é um terreno minado. Para os japoneses, o lindo santuário xintoísta no centro de Tóquio é um lugar para lembrar os 2,4 milhões de soldados mortos em guerras travadas desde o século XIX. Para quem foi vítima de brutalidades cometidas pelos japoneses no século passado, o templo tem outro significado: é o maior de todos os símbolos de uma era de violência.
Entre os homens homenageados ali estão 14 criminosos de guerra definidos como classe A. São nomes como o do general Hideki Tojo, que era primeiro-ministro quando o Japão atacou Pearl Harbour, e Keiji Doihara, um dos responsáveis pela ocupação da Manchúria.
– É um engano achar que o Yasukuni pode ser tratado como um assunto interno. É um memorial de guerra e isso, necessariamente, afeta outros países – disse o professor Sven Saaler, historiador da Universidade de Sophia, em Tóquio.
Um museu anexo ao templo, o Yushukan, também é considerado ofensivo por sua ótica revisionista. Mais de cem mil peças enaltecem as glórias militares japonesas, dos samurais aos kamikazes. As salas reservadas à Segunda Guerra são especialmente polêmicas.
O episódio conhecido como o “Massacre de Nanquim”, quando as tropas japonesas invadiram a cidade chinesa, em 1937, é definido como “incidente”, sem menção às 200 mil vítimas (número estimado pelo Tribunal Militar para o Extremo Oriente, formado após o fim da Segunda Guerra). Tampouco há referências às mulheres coreanas obrigadas a trabalhar como escravas sexuais, uma das lembranças mais traumáticas da ocupação da Coreia (1910-1945).
CONTRA-ATAQUE DA CHINA E COREIA
O Japão atual em nada lembra a nação militarista que avançou sobre territórios vizinhos em outros tempos. Abe repete que seu país, que já pediu perdão pelo passado, jamais voltará a guerrear. Ele diz defender mudanças constitucionais como uma forma de fortalecer o papel do Japão em meio a tensões causadas por disputas territoriais com Pequim e as costumeiras ameaças da Coreia do Norte. Mas a repercussão de fatos como uma visita oficial ao Yasukuni prova que, no Leste da Ásia, marcas deixadas por erros de décadas atrás não estão enterradas.
Semanas depois da visita de Abe ao templo, China e Coreia do Sul inauguraram um museu em conjunto na cidade chinesa de Harbin. Foi a vez de Tóquio protestar: o memorial homenageia o herói coreano Ahn Jung- geun, que assassinou, no início do século passado, o governador japonês Hirobumi Ito, representante máximo do governo colonial.
O Japão considerou o museu uma afronta, classificando Ahn Jung-geun como terrorista.
– Se ele foi um terrorista, o que dizer dos 14 criminosos de guerra honrados no Templo de Yasukuni? – reagiu um porta-voz do governo chinês.
A batalha verbal das últimas semanas ganhou ainda mais fôlego depois de duas gafes cometidas por dirigentes da NHK, a rede pública de rádio e TV do Japão. Katsuto Momii, que assumiu a presidência da NHK em janeiro, declarou que a exploração de mulheres obrigadas a se prostituir no front “era algo comum em todos os países em guerra”.
A declaração soou como insulto às dezenas de milhares de civis asiáticas escravizadas em bordeis espalhados pela Ásia entre 1932 e 1945. Já Naoki Hyakuta, conselheiro da NHK, sustentou que o massacre de Nanquim nunca ocorreu.
O ex-diplomata Kazuhiko Togo, professor da Universidade Sangyo, em Kioto, acredita que o primeiro-ministro japonês deveria evitar controvérsias, reconhecendo o impacto de episódios históricos sobre as relações diplomáticas do presente. Togo acha que os japoneses têm o direito de rezar no Yasukuni, mas defende reestruturações, desvinculando o santuário, por exemplo, do museu de guerra.
– Enquanto essas questões não forem resolvidas, o primeiro-ministro não deveria pisar no templo – aconselha Togo.
FONTE: Reuters – Claudia Sarmento/Toru Hanai