Por TC Carlos Alexandre Geovanini dos Santos (Comandante do CI Bld)
O triunfalismo que se seguiu à queda do Muro de Berlim aliado à Guerra ao Terror direcionou a atenção e recursos do Exército dos Estados Unidos da América para o desenvolvimento doutrinário e preparação para os conflitos de baixa intensidade, tais como operações de contra insurgência. Nesse contexto, o teatro de operações do Oriente Médio experimentou combates prolongados demandando respostas imediatas das forças blindadas e mecanizadas em presença.
Entretanto, no teatro de operações europeu, o êxito russo na Geórgia e Ucrânia constituiu-se em alerta para a OTAN: enquanto sua atenção e recursos estavam voltados para as operações de estabilização no Iraque e Afeganistão, a Rússia desenvolvia meios e métodos de combate, dentre os quais sistemas de negação de áreas, voltados para conflitos de alta intensidade, com emprego dos conceitos afetos à denominada guerra híbrida
Em resposta, as Forças Armadas americanas desenvolvem a doutrina de Operações em Múltiplos Domínios, que se constituem no ar, mar, terra, espaço e ciberespaço. Uma das principais premissas é a de que outros países (Rússia e China) desenvolveram suas capacidades a um nível que conseguem rivalizar com a tecnologia americana em determinados domínios, podendo eventualmente superá-la em áreas específicas.
Nas palavras do Gen Ex David G. Perkins, antigo Comandante do TRADOC, no prefácio do Multi-Domain Battle: Evolution of Combined Arms for the 21st Century, 2025-2040, Version 1.0, December 2017:
“… nossos adversários estão desafiando a capacidade dos EUA e de nossos aliados de impedir ações agressivas. Essas mudanças não são novos empreendimentos, mas a forma como travamos a guerra, a velocidade e a violência dos conflitos armados, e seus impactos globais estão além de qualquer coisa que tenhamos visto no passado. Nos últimos 20 anos, nossos adversários em potencial estudaram nossas capacidades e desenvolveram os meios para combater a nossa superioridade. Eles demonstraram capacidades assimétricas que negam nosso acesso a teatros, desafiam a unidade das coalizões e anulam a liberdade de ação nos níveis operacional e tático. Antes disso, pode-se argumentar que os EUA só tiveram que lidar com um domínio contestado – o domínio da terra. As forças terrestres operavam com suporte aéreo, marítimo e espacial incontestado e, na maior parte, suporte cibernético. Olhando para o futuro, seremos contestados em todos os domínios e poderemos abrir janelas de vantagem para outros domínios a partir do domínio terrestre. A abordagem desses desafios exige uma abordagem analítica baseada em ameaças que considere não apenas as contribuições dos militares dos EUA, mas também intergovernamentais e multinacionais”.
A situação atual remete à década de 1970, quando a liderança militar norte-americana levantava dúvidas sobre a capacidade de seu exército, ao sair da Guerra do Vietnã, em vencer as poderosas formações blindadas do Pacto de Varsóvia. Aliás, a Guerra do Yom Kippur foi o evento disparador do esforço de desenvolvimento do que se chamou “Batalha Ar-terra”.
Nesse sentido, a batalha em múltiplos domínios representa mais uma evolução da anterior do que propriamente uma mudança drástica na forma de combater.
A tabela abaixo busca uma comparação entre ambas:
Dentro desta nova concepção doutrinária, foi criado o Comando de Modernização do Exército (Army Futures Command) com sede em Austin, Texas, com o objetivo de coordenar o processo de modernização da força terrestre americana, à luz do ambiente internacional, caracterizado pela competição de longo prazo com China e Rússia. Nesse quadro, assume-se que:
a) as forças americanas terão acesso limitado à tecnologia da informação e GPS;
b) a modernização tem que garantir a interoperabilidade com outras forças;
c) torna-se imperativa a busca por soluções inovadoras;
d) os líderes terão que ter intimidade com a tecnologia; e
e) as tropas irão operar mais dispersas e em ritmo mais intenso.
O projeto de modernização do Exército americano visa a aumentar a letalidade da força e, para tanto, foram elencadas seis áreas principais, na sequência de importância: incremento do alcance e precisão do apoio de fogo, nova geração de veículos blindados, desenvolvimento de plataformas de maior capacidade de decolagem vertical, integração sistêmica do exército (em rede), defesa AAe e antimísseis, aumento da letalidade do combatente individual. Ou seja, as forças Bld/Mec se constituem em um dos vetores mais importantes para o Exército ser capaz de conduzir as operações multidomínio, estando na segunda prioridade do programa de modernização da força terrestre estadunidense.
Tal ação estratégica traduz-se no programa de desenvolvimento da nova geração de veículos de combate, que não visa simplesmente substituir viaturas, mas, em uma abordagem sistêmica, multiplicar as capacidades dos módulos de combate nível brigada. A propósito, um dos principais objetivos do programa é o de agilizar o processo de desenvolvimento de produtos de defesa, atualmente lento devido ao excesso de regulamentação, que faz com que o ciclo completo dure cerca de 20 anos naquele país.
O programa parte do princípio de que as atuais tecnologias das viaturas Bld do Exército dos EUA estão ficando ultrapassadas, com crescentes ameaças nas áreas de mísseis AC, proliferação de Sistemas Aéreos Remotamente Pilotados (SARP) e ambientes cuja comunicação será negada. Logo, as seguintes premissas são válidas:
a) reduzir a carga cognitiva da guarnição;
b) simplificar a operação para reduzir a necessidade de treinamento;
c) arquitetura aberta e padrões comuns que garantam atualizações e a rápida inserção de novas tecnologias, sobretudo na área de software e eletrônicos;
d) utilizar blindados antigos como o M-113 e a VBC Fuz Bradley para experimentações;
e) substituir o Bradley o mais rápido possível;
f) aumentar a letalidade;
g) o GC não precisa ir junto na mesma viatura;
h) transportabilidade: 2 Vtr por C-17;
i) dar a opção ao comandante de guarnecer a torre ou não (torre opcionalmente guarnecida);
j) ter a participação de operadores das viaturas (ponta da linha) já na fase de construção do protótipo;
k) produção deve ser feita nos EUA; e
l) buscar o controle da propriedade intelectual de elementos chave para atualizações futuras.
Com base nos requisitos acima, as áreas de maior concentração de esforços são as seguintes:
a) Proteção e capacidade de sobrevivência, aplicando pesquisas na área de ciência dos materiais para, através do aprimoramento de técnicas de solda e forja, reforçar estrutura e blindagem, com o objetivo de aumentar a proteção e reduzir o peso das viaturas;
b) letalidade, aumentando o alcance, velocidade e precisão dos armamentos;
c) eficiência e geração de energia, buscando maior sustentabilidade energética e diminuição do volume e do fluxo de suprimentos;
d) melhorar a mobilidade tática e estratégica;
e) sistemas com interface simples e intuitiva para os operadores, de forma a reduzir o tempo de treinamento;
f) consciência situacional ao longo de todos os domínios; e
g) aumento da capacidade de processamento dos computadores e das redes embarcadas.
O projeto seguirá o cronograma inicial a seguir:
Como informações adicionais, o programa pretende desenvolver uma Vtr Bld multipropósito para substituir o M-113. Além disso, o ano de 2023 será o ponto de decisão acerca da substituição da VBCCC Abrams.
À guisa de conclusão, observa-se o paralelo histórico da Guerra Fria, onde a doutrina Ar-terra induziu o desenvolvimento de capacidades traduzidas em produtos de defesa tais como o CC Abrams, a VBC Fuz Bradley, o helicóptero Apache, o sistema AAe Patriot e os lançadores múltiplos de foguetes. De forma semelhante, espera-se que o combate em múltiplos domínios traga em seu bojo novos equipamentos necessários à nova forma de lutar.
O estudo do modelo americano, guardada as devidas proporções e particularidades, é importante na medida que pode auxiliar no desenvolvimento de uma abordagem sistêmica para a renovação da frota blindada e mecanizada do Exército Brasileiro, visando recompor a capacidade operacional de nossas brigadas blindadas e mecanizadas.
FONTE: Centro de Instrução de Blindados General Walter Pires
Achei muito interessante o aspecto de utilizar-se meios antigos para novos experimentos. Isto remete a uma discussão muito interessante e intensa que já aconteceu aqui e em outros sites de assuntos de defesa, sobre a utilização mais racional dos M41C e dos EE9/11 no desenvolvimento de novas aplicações (ex. M41C em um VBC Fuz)
CM
Excelente materia.
Essa nova guerra multidominio exige muito mais recursos e soluções criativas.
Entendo q ha um dominio nao citado, q e o informacional, q muitas vezes dita os principais “acidentes capitais” em uma operação.