Mesmo após assumir uma das missões mais complexas e perigosas da ONU, na República Democrática do Congo, o general brasileiro Carlos Alberto dos Santos Cruz diz se sentir à vontade.
Embora não detalhe sua estratégia, ele delineia duas frentes de ação claras no país: a não interferência na luta entre o governo e o grupo rebelde M23 ─ enquanto civis não forem afetados ─ e a disposição para agir com força total contra grupos rebeldes menores que têm atacado a população civil e tropas das Nações Unidas.
O quartel-general de Santos Cruz fica em Kinshasa, a capital. Mas desde que chegou ao país, há pouco mais de um mês, o militar tem optado por passar a maior parte do seu tempo em Goma, no Kivu Norte. No extremo leste do país, a 1.500 km da capital, a cidade fica em uma área onde operam mais de 50 diferentes grupos armados.
O general já comandou por mais de dois anos a missão de paz das Nações Unidas no Haiti onde, diferente de agora, havia um grande contingente de tropas brasileiras. Mas não é a experiência militar prévia que parece deixá-lo confiante hoje na RDC ─ pois o cenário no país é bastante diferente do Haiti.
Sua vantagem, diz, é estar acostumado a lidar com a complexa estrutura de uma operação de paz da ONU. Principalmente sob pressão das diversas forças envolvidas, tais como o governo congolês, os rebeldes, os países vizinhos (quase sempre em desentendimento), o Departamento de Missões de Paz da ONU e os membros do Conselho de Segurança.
Contudo, além de fazer a estrutura colossal das Nações Unidas girar, Santos Cruz terá também que ganhar os corações da população local ─ cujo sentimento em relação as tropas internacionais é por vezes de descrédito.
“Não acredito que os estrangeiros possam fazer alguma coisa. Podem proteger essa cidade, mas não fazer algo grande”, afirmou a moradora de Goma, Solange Chabane.
Para Enhese Banjamin, a ONU deve no máximo atuar na retaguarda das Forças Armadas do Congo. “Não temos medo do M23, acreditamos em Deus e no nosso Exército nacional”.
Origens do conflito
As origens do conflito no país remontam ao fim do genocídio de Ruanda, em 1994 ─ quando milhares de hutus penetraram as fronteiras do Congo. A isso se seguiram tentativas e golpes de Estado, que tiveram a influência de forças de Ruanda e Uganda, e o assassinato do presidente Laurent Kabila, já em 2001.
Só a história das missões de paz na RDC soma mais de uma década. O mais recente episódio é a decisão do Conselho de Segurança de fortalecer o mandato da ONU no país depois de Goma ter sido invadida pelo grupo rebelde M23 em novembro do ano passado. Eles não sofreram grande resistência das tropas da ONU que estavam na região.
Formado por ex-militares do Exército congolês, o M23 é possivelmente o grupo rebelde mais forte operando no país ─ embora não haja informações públicas claras sobre o tamanho de cada milícia instalada na região.
Ao desertar, esses homens levaram armamentos pesados e mantiveram a hierarquia militar nas linhas rebeldes.
O M23 se retirou de Goma de forma pacífica após negociações. Uma das principais missões de Santos Cruz é evitar que a invasão se repita.
Para isso, o general recebeu uma unidade militar chamada Brigada de Intervenção. Ela tem armamento pesado ─ como artilharia, aviação e forças especiais ─ e um subsídio legal que permite ações de perseguição e ataque aos rebeldes, em uma concessão sem precedentes na história das missões de paz.
Até a semana passada tropas do governo e do M23 vinham se enfrentando em apenas pequenas escaramuças e ataques em regiões remotas. Porém, no último sábado, o conflito se transformou em uma batalha de grandes proporções nos arredores de Goma.
Em uma ação que não ocorria há meses, o Exército do país venceu ao menos três dias de batalha quase ininterrupta e empurrou as forças do M23 para longe de Goma.
“Estamos completamente fora da batalha entre as Forças Armadas do Congo e o M23. A ONU não está participando”, diz o general brasileiro.
“Nós temos um mandato muito claro para proteger civis e defender Goma.”
Porém, dentro da cidade o nível de tensão se elevou ao limite. Santos Cruz, que costuma se hospedar em um hotel (seu alojamento em uma base militar está em construção), onde a segurança era feita apenas por vigilantes do local, passou a ter guarda-costas armados 24 horas por dia. Ele não se distancia um minuto de sua pistola.
Segundo analistas, o cessar-fogo entre os capacetes azuis e o M23 se sustentará enquanto o grupo se mantiver em um processo de negociação de paz que ocorre em Uganda e não atacar civis ou a ONU.
Porém, a erupção do conflito entre os rebeldes e o governo congolês pode colocar em jogo as negociações de paz.
Força total
Embora sua atenção esteja voltada para o desenrolar da crise próxima a Goma, o general Santos Cruz não descarta realizar ações de força contra grupos rebeldes menores que operam na região de Beni, na mesma província, porém mais ao norte.
Na semana passada, as Forças Armadas Democráticas, um grupo armado que luta pela deposição do governo de Uganda a partir da selva congolesa, atacou uma vila próximo à fronteira entre os dois países. A ação fez 70 mil refugiados entrarem em Uganda para escapar do conflito.
Dias depois, em uma região próxima, um comboio formado por cerca de 30 militares da ONU de origem nepalesa foi emboscado na selva por cerca de 100 rebeldes. No tiroteio, dois capacetes azuis foram feridos e diversos rebeldes foram mortos, segundo fontes das Nações Unidas.
Embora não revele seu plano, o general deve determinar em breve alguma ação dos capacetes azuis contra grupos armados que operam nessa região. Se isso acontecer, as tropas da ONU devem seguir seu novo mandato e não economizar armas e equipamentos para atacar os rebeldes.
A ONU suspeita que muitos dos grupos armados operando no leste da RDC obtenham recursos com a venda de minerais para empresas estrangeiras. Muitas das milícias se estabeleceram próximo a jazidas e usam os lucros da venda para comprar armas.
A maioria desses grupos, chamados de Mai Mai, foram formados para autodefesa de determinadas etnias ou vilas contra ameaças estrangeiras ou rivais internos. As várias disputas étnicas presentes na região favoreceram a proliferação descontrolada desses grupos.
Segundo Santos Cruz, a dificuldade de diferenciar esses grupos armados da população civil será um grande desafio da ONU nos próximos meses. De acordo com o general, informações obtidas pela ONU dão conta que muitos desses grupos atuariam como gangues. Ou seja, seus participantes possuiriam outras atividades, mas em certas ocasiões se juntariam para cometer crimes.
Estrutura da ONU
O que Santos Cruz tenta mudar na atual missão na RDC é o próprio ritmo da operação. Eles diz querer respostas rápidas de seus comandantes para cada ação rebelde.
Mas fazer as engrenagens da ONU funcionarem não é tarefa fácil, especialmente em um país de dimensões continentais como a RDC.
Seus críticos afirmam que o general interpreta as relações entre os diversos grupos de forma simplista. Mas ele parece ignorar algumas alianças e relações entre determinados grupos armados de forma intencional.
Classifica para seus comandados algumas das ações dos rebeldes não como atos políticos, mas criminosos.
FONTE: BBC Brasil
Luis Kawaguti – Enviado especial da BBC Brasil a Goma (República Democrática do Congo)