Por João Soares
Em entrevista, capitão da reserva da Marinha e pesquisador da geopolítica do continente gelado fala sobre a importância da presença do Brasil na região, onde o país inaugura estação de pesquisa nesta quarta. Pinguins e geleiras: estas são as imagens normalmente associadas à Antártica, o continente gelado. Mas a região desperta interesse para além dos biólogos. Grandes potências mundiais, como EUA, Rússia e China mantêm diversas estações de pesquisa na região e continuam a ampliar sua presença.
Nesta quarta-feira (15/01), o Brasil inaugura a nova base Comandante Ferraz, que irá substituir a anterior, destruída por um incêndio em 2012. É um acontecimento de grande importância não apenas científica – já que há 19 projetos de pesquisa em atividade –, mas também geopolítica. A Política Nacional de Defesa, aprovada em 2013, inclui a região no chamado Entorno Estratégico Brasileiro.
Assinado em 1959 nos Estados Unidos, o Tratado da Antártica regula as relações internacionais em relação à Antártida e impede a exploração da região para finalidades não ligadas à ciência.
O risco de descumprimento do acordo nos próximos 30 anos é alto, na avaliação do capitão da reserva da Marinha brasileira Leonardo Mattos, encarregado do setor de Geopolítica na Escola de Guerra Naval desde 2011.
Na entrevista a seguir, ele associa essa possibilidade às crescentes necessidades energéticas em um planeta com recursos finitos e expansão populacional. A Antártica, com grandes reservas minerais, parece o caminho natural para a exploração de novas fronteiras, diz.
“Os países que são grandes importadores de energia e têm populações numerosas, casos de Índia e China, vão achar mais fácil comprar minerais de outros países ou explorar por conta própria em um continente sem dono? Devemos olhar com realismo para a questão”, alerta.
DW: A Política Nacional de Defesa, aprovada em 2013, incluiu a Antártica no conceito de Entorno Estratégico Brasileiro. Qual é a importância do continente para o Brasil e sua relação com a defesa nacional?
Leonardo Mattos: Para elucidar o tema, é preciso dar um passo atrás: o conceito de Entorno Estratégico Brasileiro surgiu em 2005, ano da primeira versão do documento da Política Nacional de Defesa, elaborada pelo Ministério da Defesa e aprovada pela presidência da República. Após a revisão do documento em 2012, e sua entrada em vigor em 2013, a Antártica foi inserida dentro desse conceito, que delimita a área geográfica onde o Brasil deve exercer maior protagonismo e influência diplomática, econômica, cultural e militar.
Apesar de a região antártica não ter sido contemplada no conceito do entorno estratégico em 2005, o incêndio da Estação Comandante Ferraz em 2012 fez com que o grupo de trabalho que revisava o documento repensasse a questão.
A razão de sua entrada no documento, portanto, deve-se ao fato de que o continente gelado é o único espaço territorial do planeta que ainda não possui soberania – no futuro, dependendo da vontade das grandes potências, pode vir a ter –, além de exercer influência ambiental direta sobre o Brasil, um dos países mais próximos do ponto de vista geográfico.
A importância de incluir a Antártica como espaço de interesse da nação em um documento oficial de Estado serve para a sociedade se conscientizar da importância de priorizar a nossa presença na região, que exerce a função de “equilíbrio térmico” do planeta. Afinal, qualquer alteração e mudança provocada pelo homem naquele continente pode alterar as condições ambientais, afetando diretamente a América do Sul e, por conseguinte, o Brasil.
DW: Desde 1959, vigora o Tratado da Antártica, em que as nações se comprometem a suspender reivindicações territoriais, permitindo a liberdade de exploração científica do continente em regime de cooperação internacional. Qual é o risco de descumprimento do acordo pelas grandes potências para a exploração de riquezas minerais na região?
Leonardo Mattos: Diante do crescimento demográfico mundial e do consumo per capita de energia, bem como da finitude do planeta, devemos refletir de onde virão os recursos para atender à demanda crescente da população. Apesar de a matriz energética mundial estar em processo de transformação, com a intensificação da produção de energia solar, eólica e demais fontes renováveis, a produção e consumo de energia a nível mundial ainda depende primordialmente dos combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão mineral).
Sabemos que a geologia sedimentar antártica possui energia fóssil em abundância, ainda intocada em razão do Tratado da Antártica. Digo sempre que, se quisermos saber o que acontecerá na Antártica, devemos olhar para o Ártico, que, diferentemente, não é um continente, mas um oceano cercado de continentes. Naquela região, há prospecção de petróleo e gás, exercícios militares recorrentes e ambições territoriais. Lembro que, no ano passado, [o presidente Donald] Trump fez uma proposta para comprar a Groenlândia. Então, indago: se as grandes potências estão disputando o Ártico, por que, no futuro, não vão disputar a Antártida?
Avalio que essa disputa ainda não ocorre de forma mais agressiva ao sul devido a diversos fatores: a existência de grupos de pressão (ONGs, por exemplo), inviabilidade econômica e condições climáticas inóspitas. Por fim, não devemos esquecer o seguinte: as riquezas minerais do continente antártico não se reduzem a petróleo, gás, carvão e água. Há minerais de todos os tipos — inclusive o lítio, recurso essencial para as baterias.
Se fosse um país, a Antártica só perderia em dimensão territorial para a Rússia. Portanto, é provável no futuro uma disputa pela soberania do continente, e o Brasil deve estar presente para evitar que isso ocorra. Devemos preservar o Tratado da Antártica e evitar a exploração comercial do continente, correndo o risco de sofrermos diretamente os impactos das mudanças climáticas.
DW: Quais fatores seriam determinantes para uma mudança de cenário na região?
Leonardo Mattos: Este ponto de inflexão em relação à exploração mineral na Antártida depende muito dos custos de exploração em ambientes polares. Se o avanço tecnológico baratear o processo, há uma tendência de a soberania antártica voltar a ser discutida nas próximas décadas. Na minha avaliação, há um risco de comprometimento dessa soberania em um horizonte de 30 anos.
Não por acaso, em 1991, foi assinado o Protocolo de Madri, um adendo ao Tratado da Antártica. O documento entrou em vigor em 1998, quando foi fixado um prazo de 50 anos para a revisão do protocolo. Por que esse tempo? Não acho que tenha sido por acaso. Na época, eles estimaram em quanto tempo seria viável explorar economicamente a região. Em muitos seminários e discussões sobre os rumos da Antártica, 2048 é tratado como um ano chave para o continente.
É lógico que ainda há muito petróleo, gás e outros recursos a serem explorados nos outros continentes. Mas não podemos esquecer que todo o planeta Terra tem uma soberania definida. A Antártica, não. Os países que são grandes importadores de energia e têm populações numerosas, casos de Índia e China, vão achar mais fácil comprar minerais de outros países ou explorar por conta própria em um continente sem dono? Devemos olhar com realismo para a questão.
Outro fator é o impacto das mudanças climáticas. Parte da Antártica, inclusive da península, tende a virar uma região habitável. Em um determinado momento de 2019, esteve mais frio em certas regiões dos EUA do que na nossa base antártica. Com os fluxos migratórios crescentes em diferentes regiões do planeta, a Antártica pode ser vista como um local de construção de campos de refugiados. No inverno, há cerca de mil pessoas no continente, que tem 14 milhões de km2, uma área maior que o Canadá. No verão, entre 5 mil e 6 mil pessoas. É um vazio territorial enorme. Quando escuto falar sobre planos de colonizar Marte e a Lua, minha primeira reação é pensar que deve ser mais barato ir para a Antártica.
DW: Em sua avaliação, como a retomada da Estação Comandante Ferraz deve fomentar as condições de desenvolvimento da pesquisa científica brasileira na Antártica, em um cenário de restrição fiscal e de investimentos reduzidos do governo federal em ciência e tecnologia?
Leonardo Mattos: É um grande desafio. Apesar disso, há de se entender o seguinte: somente 29 países são membros consultivos do Tratado da Antártica, com direito de veto e voto nas decisões do documento. Para exercer tal direito, é obrigatório desenvolver pesquisa cientifica e ter presença regular na região. Cabe lembrar que o Tratado da Antártica não é um tratado da ONU. Isso quer dizer que a adesão de uma outra nação ao Tratado depende dos demais. O “clube antártico” é fechado. Para manter esse status dentro do clube, portanto, é preciso produzir conhecimento científico. Quando houve o incêndio na Estação Comandante Ferraz, a decisão do governo de reconstruí-la baseou-se nessa direção – acertada, por sinal.
A reconstrução da estação também exerce peso na balança de poder. Afinal, como não é possível ter armamento, bases e exercícios militares no continente antártico, o instrumento de poder nos países na região é a ciência. Na Antártica, como em qualquer outro lugar, ciência é poder. Quem produz maior conhecimento científico na região, possui mais poder. Agora, com uma estação moderna e dotada com o dobro de laboratórios de sua antecessora, o país pode aumentar o volume e qualidade de suas pesquisas, incrementando seu exercício de poder e prestígio na região.
No que se refere aos baixos investimentos em ciência e tecnologia, faço a seguinte analogia com o automobilismo: não adianta ter um piloto bom e um carro ruim. Com a nova estação, temos um bom carro. Agora, precisamos de bons pilotos para ocupar o carro e vencer corridas. É uma outra etapa. O Ministério de Ciência e Tecnologia precisa manter a regularidade dos investimentos para o Proantar (Programa Antártico Brasileiro). Em função da restrição orçamentária, e agora detentores de uma estação maior e mais moderna, podemos estabelecer parcerias internacionais, compartilhando espaço físico em troca de recursos e pesquisas conjuntas.
DW: É correto dizer, portanto, que pesquisa científica é a principal ferramenta para o Brasil assegurar os seus interesses geopolíticos na Antártica?
Leonardo Mattos: Sim, mas não apenas isso. Não podemos esquecer que o Proantar possui apoio logístico fundamental da Marinha do Brasil (MB) e a Força Aérea Brasileira (FAB). A FAB realiza, em média, dez voos anuais para o continente antártico em apoio ao programa. Desde 1983, quando o primeiro avião pousou em solo antártico, a FAB mantém uma permanente qualificação e treinamento de seus pilotos em voos em ambiente polar.
Isso também é considerável se a gente imaginar uma possibilidade de a Antártica se tornar alvo de disputa militar por parte de outras nações. De certa forma, já estamos há 35 anos preparando duas forças para operar em condições desafiadores na região, caso haja algum tipo conflito – o que não é desejável, claro.
Embora a ciência seja o elemento mais importante, também estamos preparando, de certa forma, a Marinha e a FAB para uma eventualidade. Em palestras, chamo atenção para a necessidade de avaliarmos a possibilidade de o Brasil contar com mais uma estação na Antártica, em outra região, no futuro.
Os Estados Unidos possuem três ena região. Uma delas está localizada no Polo Sul geográfico. Em uma delas, a Estação McMurdo, cabem 1.300 pessoas, enquanto a nossa aloca apenas 64. Isso não se deve apenas à ciência, mas também à geopolítica. A China também se tornou membro consultivo do Tratado da Antártida após o Brasil. Atualmente, o país asiático está construindo sua quinta estação, enquanto estamos reinaugurando a primeira.
Os russos, que descobriram o continente há 200 anos, têm cinco bases e outras três de verão. Eles têm, ainda, o cuidado de espalhar suas estações por toda a Antártica, geograficamente. Isso tem muito a ver com ciência, mas também geopolítica. [A Rússia] Está marcando posição em diferentes regiões para o caso de a situação mudar. Se tantas potências estão com presença forte no continente, não deve ser apenas pelas pesquisas de pinguins. Também existe uma preocupação geopolítica, e devemos estar atentos a isso.
FONTE: DW
Ótima matéria. Vemos uma das principais cabeças do PROANTAR clamando por uma segunda estação Antártica, o que é muito bom.