Por Fabio Murakawa
O presidente do Haiti, Michel Martelly, deve deixar o cargo daqui a seis dias, mas ninguém ainda foi eleito para ocupar o seu lugar. Uma onda de protestos contra o governo e por suspeita de fraudes, além do medo de uma escalada da violência, vem impedindo a realização do segundo turno das eleições presidenciais, jogando o país em uma crise política que virou rotina em sua história recente.
Dizimado por um terremoto em 2010, o Haiti está no centro das atenções das duas maiores potências regionais, mas segue sendo o país mais pobre do continente americano. Atua ali, há 12 anos, uma missão de paz das Nações Unidas liderada pelo Brasil, a Minustah. O país também está sob influência direta da política externa do governo dos Estados Unidos, que atua ali como uma espécie de “fiador” de sua democracia – arcando tanto com os gastos das eleições como influenciando seus resultados.
O Haiti que emerge em 2016 é, portanto, resultado não só da atuação de uma elite corrupta e rentista ou de uma certa vocação à instabilidade política, dizem analistas. O caos haitiano, afirmam, reflete também o fracasso dos esforços e das mais variadas formas de intervenção da comunidade internacional para tentar colocar o país nos trilhos. Como mostra a própria crise política atual, muitas vezes essa interferência estrangeira pode contribuir para gerar ainda mais instabilidade.
O país realizou o primeiro turno das eleições presidenciais em 25 de outubro. O segundo era para ter ocorrido no dia 27 de dezembro e, depois, em 24 de janeiro. Mas a votação sofreu adiamentos devido à recusa do opositor Jude Célestin, segundo colocado no primeiro pleito, em participar da disputa contra Jovenel Moïse – um famoso plantador de bananas conhecido no país como “Banana Man”.
Além das alegações de fraude na atual eleição, Célestin tem motivos para desconfiar tanto das autoridades de seu país como da atuação da comunidade internacional no Haiti. Ele era o candidato do então presidente, René Préval, na eleição de 2010. Ficou em segundo lugar no primeiro turno, também manchado por acusações de fraude.
Célestin, porém, acabou excluído da eleição após uma recontagem de votos até hoje colocada sob suspeita, assim como a atuação à época da então secretária de Estado americana, Hillary Clinton. Em seu lugar, após a recontagem, entrou Michel Martelly, o atual presidente haitiano, que acabaria eleito em segundo turno.
“Em 2010, as eleições levaram ao segundo turno candidatos que não deveriam estar ali, por pressão dos Estados Unidos e acordo dos demais países”, afirma o brasileiro Ricardo Seitenfus, que entre 2008 e 2011 foi o representante da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti. “Houve muita resistência por parte do conselho eleitoral. Mas, finalmente, uma visita da Hillary Clinton ao presidente Préval na época o convenceu de que seu candidato [Célestin] deveria ser descartado.”
Seitenfus, que escreveu um livro sobre o tema (“Haiti: Dilemas e Fracassos Internacionais”), afirma que o Brasil, a princípio, resistiu à solução encontrada por Hillary, mas depois resolveu se alinhar.
“Em 2010 foram basicamente os Estados Unidos que disseram: este é o único jogo para ser jogado, e vocês vão mudar o resultado”, afirma o haitiano Robert Fatton, professor de Relações Internacionais na Universidade de Virginia (EUA). “O Brasil queria manter uma postura independente, mas ao mesmo tempo em cooperação com os EUA. Porém, quando as coisas ficaram realmente complicadas e os EUA disseram ‘isto é o que nos vamos fazer’, eu acho que o Brasil não teve poder para dizer: ‘vocês não podem fazer isso'”, afirmou.
Segundo fontes ouvidas pelo Valor, Célestin agora está novamente sob pressão estrangeira. Desta vez, para aceitar participar do segundo turno e tirar o país de mais esse impasse político. A comunidade internacional é representada no país pelos embaixadores de Estados Unidos, Brasil, França, Espanha, Canadá e União Europeia – o chamado “Core Group”. O mandato de Martelly está previsto para acabar no domingo, dia 7. Não há, portanto, tempo suficiente para a realização do segundo turno antes disso.
Em entrevista ao Valor, o embaixador do Brasil no Haiti, Fernando de Mello Vidal, afirma que o “Core Group” apenas monitora o processo eleitoral, sem interferir diretamente nas conversas entre Célestin, Moïse e a sociedade civil haitiana – Igreja Católica, empresários, partidos políticos, entre outros. Segundo o diplomata, são esses atores que vão encontrar uma solução para o atual impasse político do país.
Vidal disse esperar que seja costurado um acordo para a formação de um governo provisório, após a saída de Martelly, e que ocorra um segundo turno entre Moïse e Célestin até o maio.
Entra aí um segundo complicador: Jean-Charles Moïse e Maryse Narcisse, que ficaram em terceiro e quarto lugares na contagem dos votos, reivindicam a realização de novas eleições, alegando fraude – um comitê eleitoral provisório [o país não tem um órgão eleitoral permanente] concluiu que houve “sérias irregularidades” no primeiro turno, mas não a ponto de alterar o resultado final da eleição.
Na sexta-feira, porém, Martelly deu declarações à imprensa local dizendo que não deixaria o país “acéfalo”. “Eu não posso acordar como presidente em 7 de fevereiro e ir embora, deixando o país em uma situação de incerteza”, disse.
“A permanência do presidente Martelly além do dia 7 não é aceita pela oposição, mas não é uma opção totalmente descartada, na hipótese de não haver acordo sobre um nome para ocupar a Presidência de forma temporária”, afirma o embaixador Vidal.
Ou seja, o país não sabe ainda ao certo se haverá eleições em primeiro ou segundo turno. Nem tem certeza sobre até quando vai o mandato do atual presidente.
FONTE: Valor Econômico
Pobre Haiti,cada dia mais pobre !