“A ideia de contar essa estória me ocorreu quando refletia sobre Gerenciamento do Risco Operacional e o papel do Comandante Operativo da Aeronave.“
Por Capitão-de-Fragata Evandro José Souza Rangel
Era noite e chovia. Bem, muitos “causos” no 1º Esquadrão de Helicópteros de Esclarecimento e Ataque (HA-1) começaram assim. A grande maioria terminou bem, felizmente.
Esse não foi diferente, como se pode depreender pelo fato de um dos protagonistas assinar o presente artigo. Mais uma daquelas estórias que os pilotos tanto gostam de contar para outros pilotos, que não necessariamente estão tão interessados em ouvir (ou ler). Mas vou contar mesmo assim, porque espero que sirva para alguém refletir sobre o papel do Comandante Operativo da Aeronave (COA) na aceitação de riscos.
Nossa tarefa naquela noite era decolar para investigar uma direção, de onde, minutos antes, o equipamento de Medidas de Apoio à Guerra Eletrônica (MAGE) do navio detetara uma transmissão de radar suspeita, provavelmente do nosso “inimigo”, naquele exercício: uma fragata da mesma classe do nosso navio-mãe. Se identificássemos o alvo, teríamos liberdade para engajá-lo simuladamente com nossos mísseis ar-superfície Sea Skua.
Tranquilo, se é que se pode dizer que decolar de um convés pequeno que “anda” e balança, voar por milhas sobre o mar imenso, à noite, sob forte chuva, navegar, operar sistemas de armas e voltar para pousar naquele convés que não estará onde você o deixou, é fácil. Mas a motivação e o nosso adestramento faziam parecer moleza; é isso que quero destacar.
Eu era o COA, na posição de 1P (à direita, nos helicópteros), acompanhado de um Piloto Qualificado no Modelo (PQM), que estava sendo checado para a qualificação de Piloto Operativo da Aeronave (POA), como 2P. No jumpseat improvisado do Super Lynx, outro COA, que ajudava na qualificação do PQM. Completando o time, o Fiel da aeronave.
Logo na decolagem, o Global Positioning System (GPS) (ou Sistema Global de Posicionamento por Satélite) da aeronave apagou. Vários resets depois, concluímos pelo óbito do equipamento. Não existia naquela época, e, sinceramente, não sei se já existe, uma lista GO/NO GO no Esquadrão, para cada tipo de missão. Cumpríamos os requisitos genéricos para embarque discriminados nas publicações normativas em vigor, e, nelas, não se mencionava o GPS.
Até alguns anos, o GPS era considerado um acessório, quase um luxo. Os antigos Lynx só possuíam o bom e velho sistema doppler, com todas as suas conhecidas limitações de precisão. E dava certo. O nosso Super Lynx também o utilizava para navegar, mas era ajudado pelo GPS.
Após consultar a minha tripulação, concluímos pela continuidade da missão. Afinal, quem precisava de GPS?!
Muitas milhas depois, nos deparamos com um “alvo” de características semelhantes ao “inimigo”, com as luzes apagadas, navegando em alta velocidade, em direção à nossa Força-Tarefa
Pelo jeitão dele, em meio àquele breu, decidimos atacar. Vale mencionar que ainda não dispúnhamos do utilíssimo equipamento de visão termal Forward Looking Infrared (FLIR), que hoje equipa os Super Lynx da Marinha do Brasil.
Foi um verdadeiro tiro no escuro, portanto, mas estávamos fundamentados nas regras de engajamento. Iniciamos as evasivas, subimos e começamos a transmitir a posição da “ameaça” ao navio-mãe. Todavia, o orgulho pela missão cumprida durou muito pouco: pelo rádio, ouvimos perplexos que a posição informada do ataque estava sobre terra?! Minha reação natural foi olhar para a esquerda e dizer: “presta atenção filho, e passa a coordenada certa pro navio”. “Ele se empolgou com a missão e cometeu um erro”, pensei em silêncio.
Mais alguns minutos e o banho de água gelada: o navio-mãe insistia que a posição estava sobre terra. E nem sinal de terra no radar ou no visual!
Hora de descobrir o que estava errado. Consultamos o out-house, que era a posição estimada do navio-mãe, e o computador, quase que zombando de nós, apresentou um valor de quase 100 milhas, em direção à África. Era totalmente incompatível com o perfil do voo que tínhamos realizado. Olhei instintivamente para o indicador do equipamento doppler e percebi que a velocidade e a deriva da aeronave oscilavam sem critério, apresentando valores espúrios que eram repassados ao computador de navegação. O doppler não emitiu sinal de erro, apenas começou a fazer sua navegação “alternativa”, totalmente descolada da realidade.
O ploating board (procedimento de navegação previsto em voos sobre o mar) do 2P não continha a navegação estimada, mas apenas um backup das posições que o computador vinha informando.
Estávamos muito além do alcance radar do navio-mãe, e eles, além do nosso. Um sabor meio amargo veio à boca junto com a desagradável constatação: estávamos perdidos…
Quando o peito aperta, a mente se abre. Existem versões menos educadas e impublicáveis dessa frase, mas como há sabedoria nela!
A tripulação, felizmente, funcionou como um time. Não exatamente como a Seleção Brasileira de 2014, todavia, como a de 1970, talvez… Em pouco tempo, pensamos em três possibilidades: a primeira, foi a de retornar ao “alvo” que, afinal, deveria ser, na verdade, um “irmão”, chamá-lo no “canal 16” do VHF, e solicitar um recolhimento em emergência. Mas seria o “alvo” o que pensávamos que fosse, ou apenas um coitado que estava na hora errada no lugar errado? Quanto tempo ele levaria para estar apto a recolher nossa aeronave? Ainda poderiam pensar que era um ardil nosso para atacá-los (acho que isso não valia no jogo, mas sei lá…). A segunda opção seria assumir um rumo oeste e esperar chegar à praia.
Lembrávamos que, no briefing do voo, mencionava-se a existência de uma praia. Mas quão distante ela estava? Permitiria o pouso seguro? O combustível seria suficiente? A estratégia funcionou para Pedro Álvares Cabral em 1500, entretanto não parecia ser a melhor decisão naquele instante do século XXI. Sendo o COA, resolvi retornar ao rumo invertido ao qual voáramos a maior parte do tempo: mesmo sendo rápido, o navio-mãe deveria estar no outro lado da “linha”. Abandonamos também qualquer resquício de orgulho e declaramos emergência de navegação. Solicitei que todos os radares do navio fossem postos a funcionar, que o navio acendesse todas as luzes de navegação e ligasse o Non-directional beacon (NDB).
Isso iria “melar” o exercício, porém, àquela altura, que importância isso tinha para nós quatro? Não lembro mais quantos minutos voamos naquela situação, mas pareceu uma semana inteira.
Lá pelas tantas, a agulha do ADF (equipamento da aeronave que recebe os sinais do NDB) começou a mexer, estacionando quase na vertical do mostrador. Isso indicava que estávamos na direção correta. Em seguida, o MAGE da aeronave apresentou sinais compatíveis com o radar do navio-mãe. Ufa! Navio detetado no radar e, em mais algumas milhas, tudo terminou bem.
Após as explicações de praxe para o pessoal do navio, que ficara muito preocupado com a situação, fui ao hangar. Descobri que o compartimento do doppler da aeronave fora alagado pela chuva, pois estava mal vedado , sendo a origem dos sinais erráticos que alimentaram o computador, gerando a confusão. Pensei naquela hora que, se estivesse no Iraque ou no Afeganistão, não teria passado por aquele susto…
A ideia de contar essa estória me ocorreu quando refletia sobre Gerenciamento do Risco Operacional e o papel do COA. Alguns pilotos parecem defender uma postura pela qual o COA é um soberano que escolhe quais normas podem ser relevadas em nome de um benefício maior, conforme a conveniência do momento. No entanto, sempre haverá situações não previstas em regulamentos, quando a experiência do COA será usada para “pensar fora da caixa”, decidindo pelo prosseguimento ou não da missão. Entretanto, existem riscos que já foram mensurados e foram mitigados pela adoção de normas, regulamentos e procedimentos de segurança. Defendo a tese de que o COA não é aquele que decide pela transgressão quando assim for interessante, mas aquele que conhece todos os regulamentos que norteiam sua função, planeja e executa sua missão, de modo que todas as normas sejam obedecidas e preservadas.
Vale ressaltar que, quando nos deparamos com limitações materiais, nas aeronaves ou nos navios, com deficiências aquém de algum requisito operativo, é comum que recorramos ao GRO para tentar contorná-las. Não dá para fazer assim ou “assado”? Será que o requisito não é rigoroso demais? Podemos adotar medidas de controle?
São perguntas que sempre nos fazemos, cedendo à tentação de cumprir a missão a qualquer custo, mesmo quando as condições contraindiquem.
Não quero dizer que as normas não devam ser revistas periodicamente, até por que a tecnologia evolui. Mas não se pode criar uma regra nova a cada restrição material ou de outra natureza que apareça. Acredito no GRO para nos orientar a mitigar os riscos de situações não usuais, mas não para contornar requisitos que foram estabelecidos, muitas vezes, à custa de algum sangue derramado.
Se eu tivesse uma lista GO/NO GO naquela noite, que me proibisse de voar sem GPS, ou se o GPS fosse considerado requisito para operação embarcada, certamente teria retornado ao navio imediatamente quando o equipamento falhou.
Sem uma regra definida, fiz meu GRO e tomei uma decisão da qual não tenho nenhum orgulho, que foi influenciada pela motivação, mas, talvez, pela concepção que eu tinha sobre o papel do COA.
Felizmente, as demais decisões conjuntas daquela noite foram corretas. O GRO funcionou perfeitamente para nos tirar do embaraço em que nos encontrávamos, mas a questão é se precisávamos ter passado por aquele susto. Se pudesse dar um conselho a um piloto recém-qualificado COA, eu diria: estude sempre, conheça todas as normas que regem sua atividade, conheça os requisitos operativos, as limitações, enfim, tudo o que puder.
Decida sempre pela norma, porque ninguém vai te condenar quando você errar. E um dia, você vai errar! Não transija em procedimentos de segurança, pois eles não foram criados a partir do nada. Não se apegue ao GRO para “forçar uma barra”. Mas se um dia você se vir numa situação não prevista em nenhum procedimento, aí sim: use suas experiências e tripulação, e, claro, faça um bom GRO! E Boa Sorte!
FONTE: Revista da Aviação Naval
FOTOS: Ilustrativas
NOTA DO EDITOR: O CF Rangel é o atual Comandante do Esquadrão HA-1.
Exelente história, e esse fato não foi uma missão perdida, pois dela tirram profundos ensinamentos. Numa missão real se tivesssem ficado sem seus equipamentos de sensoriamento e direção, teriam voltado pra casa a salvo!
Muito boa a história, obrigado!
Excelente! Imagino os pilotos Argentinos e Ingleses naquela imensidão gelada tentando achar o inimigo e combate-lo. Histórias ricas da aproximação das duas frotas naqueles primeiros dias de Maio de 82, quando os Linces Ingleses atacaram e danificaram o aviso Sobral e os Argentinos atacaram usando seus Trackers e Sea Kings com torpedo e cargas dois contatos ingleses um deles o submarino Ônix.
Parabéns pelo belissimo artigo. O brasileiro está tão acostumado a viver sem estrutura adequada que acaba desenvolvendo habilidades e competências sem igual; infelizmente, muitas vezes ocorrem tragédias e os heróis passam a vilões. Tem gente que ainda pergunta pra que investir na modernização das forças armadas, pois não são seu familiares e amigos que passam por tais situações de tamanho risco. O Povo brasileiro não se interessa por política interna (a não ser em benefício próprio), externa, área militar, tecnologia, em ser respeitado. Sua única preocupação é discutir babozeiras em redes sociais e postar até qundo vão ao sanitário. saudações
Excelente artigo, com uma muito profunda e bem feita reflexão (não esperaria algo diferente conhecendo como conheço o seu autor).
Ensinamentos que valem, na minha opinião, para qualquer atividade militar e, mesmo, aquelas que transcendem esse ramo do conhecimento.
Caro Guilherme,
Obrigado por trazer tão interessantíssima história!
Saudações!
Obrigado RR!
FA