Por Thayz Guimarães
Uma rede “invisível” com mais de 500 conexões e 1,7 milhão de quilômetros de extensão, equivalentes a mais de quatro vezes a distância entre a Terra e a Lua, está no centro das tensões geopolíticas que envolvem os EUA e a China na região da Ásia-Pacífico, e a Rússia e a OTAN (aliança militar liderada pelos EUA) no Mar Báltico.
Enquanto sucessivas investigações nos últimos anos não apontaram culpados intencionais pelo rompimento de diversos cabos submarinos no leito dos oceanos, não faltaram acusações de sabotagem vindas de todos os cantos. Cerca de 99% do tráfego global de internet passam por essas infraestruturas críticas, que se tornaram alvos estratégicos em um mundo cada vez mais conectado. Mas resta saber se o que está em curso é apenas uma guerra de narrativas ou se há, como alegam europeus e americanos, uma guerra híbrida (conflito que combina táticas convencionais com outras estratégias de combate e influência).
Corte repentino de sinal
Em meados de novembro, o navio graneleiro Yi Peng 3, de propriedade e bandeira chinesas, foi ancorado em águas internacionais no Estreito de Kattegat, entre a Dinamarca e o litoral ocidental da Suécia, suspeito de ter conexões com o corte repentino do sinal de dois cabos submarinos. Um desses cabos, o BCS East-West Interlink, conecta a ilha sueca de Gotland com a Lituânia, onde a OTAN constrói uma base militar de US$ 1bilhão para abrigar 5 mil soldados até 2027. O outro, o CLion, conecta a Alemanha à Finlândia, um dos mais recentes países a concluir sua adesão à aliança militar transatlântica, em abril de 2023, um movimento de expansão que ainda incluiu a Suécia, em março de 2024, e mais do que dobrou a fronteira entre a Rússia e o Ocidente.
De acordo com informações do portal VesselFinder, de vigilância do tráfego marítimo global, a embarcação chinesa zarpou do porto russo de Ust-Luga, a oeste de São Petersburgo, em 15 de novembro, e estava na região do Báltico quando os cabos foram danificados. Investigações ainda em curso não encontraram evidências de que a tripulação do Yi Peng 3 tenha agido de maneira intencional e coordenada. Dados históricos também mostram que as principais causas de danos aos cabos submarinos em todo o mundo são acidentais, com aproximadamente 70% a 80% dos incidentes atribuídos a atividades de pesca comercial e âncoras de navios. As falhas restantes são normalmente causadas por outros fatores como abrasão, falha de equipamento ou riscos naturais (correntes no fundo do mar, tempestades, deslizamentos submarinos, fluxos de sedimentos).
Danos aos cabos submarinos não são incomuns, acontecem em torno de 150 a 200 por ano, disse ao GLOBO John Wrottesley, gerente de operações do Comitê Internacional de Proteção aos Cabos (ICPC). E a sabotagem não é necessariamente política, há casos recentes de vandalismo e roubo de equipamentos.
Infraestrutura crítica
A última vez que houve um caso comprovado de sabotagem de cabos submarinos foi durante a Segunda Guerra
Mundial, destacou Wrottesley. Mas, em um contexto de crescente tensão geopolítica desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022, nada disso bastou para afastar o clima de desconfiança sobre o caso. Há algumas semanas, Pequim autorizou uma investigação internacional a bordo do navio. As conversas têm sido sigilosas.
Os cabos submarinos e os incidentes relacionados a eles não podem ser entendidos fora do contexto de competição entre as grandes potências e de importância do mar nessa disputa, porque esses cabos são essenciais para a manutenção do sistema internacional, afirma o almirante da reserva Antônio Ruy de Almeida Silva, pesquisador sênior do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense.
Além da movimentação de dados por grandes distâncias através de um fio, o praticamente desconhecido mundo dos cabos submarinos envolve política, dinheiro, meio ambiente e comércio global. Em setembro de 2024, eram impressionantes 532 sistemas em serviço, com outros 77 planejados, segundo dados da Telegeography, uma empresa de análise de telecomunicações que mantém a plataforma Submarine Cable Map.
Por esse emaranhado de fios submersos, infraestruturas críticas que medem em torno de 25 milímetros de diâmetro, mas podem atingir distâncias de até 45 mil quilômetros, dando um giro completo em torno da África, transitam diariamente US$ 15 trilhões.
A militarização do assunto, no entanto, é recente. Em 17 de junho de 2020, a Team Telecom, responsável por avaliar a participação estrangeira nos serviços de telecomunicações dos EUA, recomendou à agência reguladora do país, a FCC, que rejeitasse parcialmente o desembarque da rede de cabos submarinos PLCN, proposto pela Meta e pelo Google como a primeira conexão direta entre os EUA e Hong Kong, um território semiautônomo na China, o trecho ligado a Taiwan foi autorizado. A ilha, que tem governo autônomo, mas é reivindicada por Pequim, conta com o apoio dos americanos.
Ali começaram as tensões entre os EUA e a China, diz o coordenador do Comitê Brasileiro de Proteção de Cabos Submarinos, Rogério Mariano, especializado no tema há quase 20anos. Como resposta, houve um movimento grande de milícias navais no Mar Amarelo que resultou em alguns cortes de cabos entre 2021 e 2022. A isso somou-se o episódio do gasoduto Nord Stream, que culminou, em janeiro de 2024, na criação do primeiro grupo
de proteção de infraestruturas críticas da Otan.
Benefício da dúvida
Concluído em setembro de 2021, o Nord Stream 2 nunca entrou em operação. Sua inauguração foi cancelada pelo governo alemão poucos dias antes da invasão da Ucrânia pela Rússia. Meses depois, em setembro, ele e o Nord Stream 1, gasodutos russos que vão até a Alemanha pelo Mar Báltico, sofreram explosões. Um instrutor de mergulho ucraniano foi acusado por Berlim de fazer parte da equipe que realizou os ataques.
Os cabos submarinos são instrumentos de controle, comando e informação e são centrais na comunicação entre Estados e organizações. Portanto, são um alvo estratégico para qualquer ator que queira interagir no nível daquilo que nós chamamos de guerra híbrida, uma guerra sem rosto. Mas é preciso provar a intencionalidade das ações, o que ainda não foi possível, pondera o coronel da reserva do Exército português Luís Bernardino, professor de Relações Internacionais da Universidade Autônoma de Lisboa.
O corte de um ou dois cabos submarinos não é suficiente para causar estragos, já que os sistemas são planejados e projetados com redundância, o que significa que, quando um fio é danificado, o tráfego pode ser rapidamente redirecionado. Para que haja um impacto efetivo é necessário “um ataque complexo que cause a disrupção total do ecossistema digital”, atingindo cabos, pontos de amarração, centros de dados e de energia, explica Mariano. Algo nunca ocorrido e muito distante dos incidentes pontuais que ocorrem hoje, reforça.
Mas o benefício da dúvida nem sempre se aplica às dinâmicas geopolíticas, principalmente em tempos polarizados. Até 2021, apenas dois países tinham legislações sobre cabos submarinos: os insulares Austrália e Nova Zelândia. Desde então, vários Estados membros da União Europeia lançaram suas próprias iniciativas, os EUA votaram, em novembro, para rever suas regras, e o Panamá, que recebe um alto fluxo de navios, estabeleceu
uma multa de US$ 10 mil para quem cortar cabos submarinos. No Brasil, a Marinha realizou seu 1º Exercício de Proteção aos Cabos Submarinos em maio de 2023, após aprovação do Plano Nacional de Segurança de Infraestruturas Críticas, em setembro de 2022.
FONTE: O GLOBO
Outro detalhe é que o navio chinês Yi Peng 3 zarpou do porto russo com um capitão russo no comando.
Já passou da hora dos membros da Otan sairem da passividade e responderem na mesma moeda.
Sabotagem se combate com sabotagem e nesta guerra híbrida se a Otan devolver na mesma moeda os russos perderão muito mais.