Por Cel Oscar Medeiros Filho
A partir da aproximação entre Brasil e Argentina, no início dos anos 1980, boa parte das preocupações militares se voltaram para a Amazônia. Dois motivos podem ser apontados para o fato de a região amazônica passar a ser uma prioridade estratégica, cada um relacionado a uma natureza distinta:
a) preocupações de ordem geopolítica, relativas ao aumento da pressão internacional sobre os países amazônicos revestidas de uma narrativa ecológica (ambiental), mas percebida pelos militares como uma forma de cobiça sobre os recursos naturais daquela região; e
b) preocupações de ordem securitária, no tocante à presença de grupos armados junto à fronteira, especialmente com a Colômbia, e o risco de transbordamento para o Brasil. O ataque ao Destacamento do Exército Brasileiro situado no rio Traíra, ocorrido em 1991, envolvendo grupos armados colombianos teria sido um sinal importante para a mudança da natureza das ameaças na região. A simbiose entre grupos armados e o crime organizado, impulsionada pela utilização de rios que cortam a bacia amazônica para o narcotráfico internacional, tornou essa ameaça ainda mais relevante.
Portanto, coexistem na região amazônica ameaças de naturezas distintas. A primeira geopolítica está relacionada ao jogo de interesses entre as nações, à manutenção da soberania e à função precípua de qualquer força armada: a garantia da integridade territorial do Estado Nacional. No caso específico da Amazônia, diz respeito ao controle e à gestão soberana de seus recursos naturais em meio à cobiça de grandes potências.
A segunda securitária, diz respeito à soberania doméstica e à ameaça de surgimento, naquele espaço, de “zonas cinzentas”, em que o Estado teria dificuldades de aplicar de forma efetiva o monopólio da violência legítima, abrindo espaço para a proliferação de ilícitos de toda ordem e, o que é mais grave, para o aparecimento de poderes paralelos no tecido social.
Abordaremos agora cada uma dessas ameaças buscando definir uma tipologia adequada e as estratégias que se fazem necessárias para enfrentar cada um desses desafios. Do ponto de vista das ameaças geopolíticas, é inegável que a Amazônia será sempre uma preocupação, haja vista a abundância de recursos naturais presentes na região (água, diversidade de flora e fauna, minerais raros etc) que conferem ao seu território um caráter estratégico. A incerteza sobre esse tipo de ameaça diz respeito à forma como ela se processará: se pela expropriação territorial ou pela negação territorial.
Usaremos uma simples alegoria para simplificar nosso argumento. o primeiro tipo de ameaça, relacionada à cobiça internacional sobre nossos recursos, denominaremos de “grande garimpo”: um território cobiçado por interesses exógenos do qual buscam extrair recursos estratégicos. A outra ameaça seria uma “nova Antártida”; ou seja, o estabelecimento de uma governança global sobre a região limitando (ou até impedindo) a gestão soberana sobre aquele território.
Utilizando-se de uma narrativa “lícita” de proteção dos bens comuns globais, a sociedade internacional “negaria” propostas de desenvolvimento da região, a fim de “preservá-la a futuras gerações”. Sabe-se que, por trás da “defesa do bem comum”, residem interesses do mercado internacional de commodities que buscariam, em um primeiro momento, “demonizar” a imagem de produtos agropecuários brasileiros, com o objetivo de (re)conquistar mercado e, em um segundo momento, criar obstáculos para a gestão soberana de espaços nacionais por meio de ações de “neutralização territorial”, como a criação de áreas ecológicas de preservação ambiental com gestão internacional direta ou indireta.
Portanto, de acordo com essa tipologia, há, entre as preocupações de natureza geopolítica, dois tipos de ameaças:
a) a expropriação territorial (cobiça internacional sobre os nossos recursos naturais) e
b) a neutralização territorial (pressão internacional para a preservação ambiental na região e o uso dessa narrativa para causar prejuízos competitivos aos produtos agropecuários brasileiros no comércio internacional).
As características internacionais apontam que, sem negar a primeira, as maiores pressões tendem a ocorrer em relação à segunda. Para enfrentá-la, faz-se necessário um conjunto de estratégias do Estado que, além de capacidades militares, envolvem mais atenção socioeconômica e ambiental àquela região.
Quanto às ameaças securitárias, dizem respeito ao desafio de manter a soberania doméstica sobre o vasto território amazônico. Está relacionada ao risco de “anomia territorial”, realidade historicamente mais presente a partir das últimas décadas, com a ampliação do crime organizado na região. São preocupações oriundas menos de ameaças militares stricto sensu e mais de problemas advindos da própria fragilidade do império da lei e do alto grau de violência social presente na região. Tais vulnerabilidades têm, notadamente, origem na carência de presença do Estado e/ou na degradação funcional (prover serviços básicos à população) e territorial de sua função pública (exercer o império da lei), conjugadas à criminalidade transnacional presente no espaço interfronteiriço pan-amazônico.
Com relação às estratégias a serem adotadas pelo Estado para fazer frente a essa situação, gostaríamos de salientar dois aspectos que consideramos cruciais: um de ordem geopolítica e outro de caráter militar.
O primeiro diz respeito à necessidade de compreendermos que a Amazônia brasileira faz parte de uma região complexa que compartilha, entre os países da região, muitos de seus problemas. Não há como encontrar estratégias eficazes de forma isolada na região. Dificilmente um problema de segurança naquela região será resolvido com medidas exclusivas de um país. Se já compartilhamos os problemas, temos também que compartilhar as soluções. Isso serve tanto para as questões geopolíticas quanto securitárias. Podemos enxergar a Pan-Amazônia como um “prédio” em busca de um “condomínio”. Essa é a lógica que está por trás da assinatura, em 1978, do Tratado de Cooperação Amazônico, que, apesar de ter se transformado em Organização em 1995, tem sido negligenciado pelos países da região nas últimas décadas.
Apesar de fazer parte do rol de temas originais, parece claro, hoje, o papel central que a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) pode vir a exercer como arranjo institucional necessário para coordenar políticas regionais nos campos da defesa e da segurança. Isso tem ganhado mais relevância nos últimos anos com a desidratação dos arranjos regionais anteriores, como, por exemplo, o Conselho de Defesa Sul-americano (CDS/UNASUL). Na falta de um arranjo regional que possa coordenar políticas que extrapolam as fronteiras nacionais, a OTCA figura como um instrumento legítimo e adequado.
Além disso, a OTCA continua sendo o melhor antídoto para coibir uma espécie de “manobra da internacionalização”, na medida em que reserva aos países “condôminos” a responsabilidade exclusiva pelo destino da região. Não devemos perder de vista que o debate central quando do estabelecimento do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) dizia respeito à manutenção soberana dos países amazônicos.
Do ponto de vista militar, é notória a relevância que a Amazônia tem alcançado nas últimas décadas, desde a criação do Projeto Calha Norte (PCN), lançado em 1985, que visava a intensificar a presença militar, além de melhorar as infraestruturas viária e energética na região, culminando com a transferência de unidades militares oriundas do centro-sul do País e o aumento do efetivo militar na Amazônia. Não obstante a importância histórica em estar presente na região, contribuindo para a “vivificação” regional, ganha relevância cada vez mais o “fazer-se presente”, por meio do desenvolvimento da capacidade de vigilância remota e de mobilidade. Isso para atender à própria dimensão territorial que possui aspectos continentais, mas principalmente para se adequar à natureza das novas ameaças: se, em séculos anteriores, uma das principais funções das pequenas unidades militares dispostas nas fronteiras amazônicas era a de marcar a presença da “bandeira nacional” e servir de núcleo de povoamento, hoje a natureza das ameaças, sejam elas geopolíticas ou securitárias, nos impõem repensar os modelos de presença.
Nesse sentido, gostaríamos de encerrar chamando atenção para o alerta que o professor Tassio Franchi, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, faz em relação às missões cumpridas pelos nossos pelotões de fronteira diante da ousadia de grupos criminosos presentes naquela região, no artigo “À sombra do Rio Traíra: incidentes nas fronteiras do Amazonas”, publicado na Revista do Clube Militar, nr 478 (julho-setembro 2020). Segundo ele, as organizações militares de fronteira enfrentarão, nas próximas décadas, grupos ligados às atividades ilícitas mais armados e, consequentemente, mais ousados. Nesse sentido, atenção especial deve ser dada à estrutura e ao preparo das frações de fronteira, por meio do incremento de tecnologia, inteligência e operações interagências, para fazer frente à natureza securitária das ameaças que ali se apresentam.
* Artigo originalmente publicado no Observatório da Praia Vermelha (ECEME) em 10 de maio de 2021.
Realmente o trabalho que o EB realiza é fantástico e imprescindível, porém é necessário dobrar o efetivo de fronteira, embarcações, aeronaves, pessoal…