Varrida por tempestades, ventos acima de 100 km/h e ondas que podem ter mais de 10 metros, a passagem – que deve o nome ao navegador inglês sir Francis Drake – abate embarcações sem piedade. Estima-se que pelo menos 300 navios descansem nas profundezas desse mar, destruídos pela fúria dos Oceanos Atlântico e Pacífico, que ali se encontram.
“Hoje, 70% das nossas pesquisas não são feitas no continente, mas em outras plataformas que são tão ou até mais importantes. A nossa grande plataforma é o navio polar Almirante Maximiano, além dos acampamentos e dos módulos científicos autônomos que foram criados pela própria comunidade científica”, afirma o cientista Jefferson Cardia Simões, diretor do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador-geral do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera (INCT da Criosfera).
A “fronteira” entre os Oceanos Atlântico e Pacífico é tida como a menor distância entre o Cabo Horn e Snow Island (260 km ao norte da parte continental da Antártida). Antes de chegar à Passagem Drake, os navios que zarpam de Punta Arenas – ou mesmo do porto de Rio Grande (RS) ou do Rio – navegam por águas plácidas. Ladeado por geleiras que, ainda neste fim de verão patagônico, desmoronam a todo instante, o Almirante Maximiano percorre o canal que leva ao Drake e pode ser considerado o último resquício de navegação tranquila e de “terra à vista”. Nesse trecho, as embarcações passam pelo Estreito de Magalhães e pela águas do Canal de Beagle, popularmente conhecido como “Avenida dos Glaciares” ou “ventisqueros”, nome usado pelos chilenos. São 600 quilômetros, percorridos em aproximadamente 30 horas.
Depois da entrada na Passagem de Drake, no entanto, só existem pequenas ilhas, localizadas ao sul do Cabo Horn. Por isso, sem obstáculos nessa latitude, as correntes que circundam a Antártida correm livremente com uma força descomunal – estudos feitos por cientistas russos apontam que o fluxo de água possa ser de cerca de 600 vezes o do rio Amazonas. “Não houve uma única vez em que eu viesse aqui sem antes pedir a autorização de Drake para passar”, diz, brincando, o comandante do Almirante Maximiano, o capitão de mar e guerra José Benoni Valente Carneiro.
Na verdade, são os avançados serviços de meteorologia que autorizam ou não a entrada na passagem. “É raro encontrar as condições ideais. Mas, com o rigoroso acompanhamento da meteorologia, conseguimos evitar as piores, que significariam uma viagem rumo ao desastre. Hoje, por exemplo, sabemos que há uma certa periodicidade entre as condições mais perigosas e as mais ‘tranquilas'”, afirma Carneiro, um cearense de 48 anos, casado e pai de duas crianças, que, depois de dois anos, se despediu do comando do Almirante Maximiano, o “Tio Max”, como é chamado pelo pessoal da Marinha e pelos pesquisadores. Deixou o navio, não sem certa tristeza: “É impossível não sentir saudades deste lugar. Uma vez antártico, antártico para sempre.”
A Marinha – responsável por toda a logística das operações – utiliza dois navios para apoiar o trabalho dos pesquisadores na região. O navio polar de pesquisa Almirante Maximiano chegou ao Brasil em 2009. Tem mais de 93 metros de comprimento, 13 metros de largura, pesa 5,5 mil toneladas e transporta 113 pessoas (65 militares). A outra embarcação, o Navio de Apoio Oceanográfico Ary Rongel, opera desde 1994. Nesta temporada, o Maximiano operou durante seis meses nas Ilhas Shetland do Sul e nos Estreitos de Bransfield, Antártico e Gerlache, período que serviu como plataforma para 114 pesquisadores de 13 projetos distintos. Eles usaram os cinco laboratórios, guinchos oceanográfico e geológico e demais equipamentos que estão nos navios para as pesquisas. “Temos que estar no mar para a coleta de amostras em diferentes pontos e condições”, observa o professor Eduardo Secchi, com mestrado e doutorado em oceanografia biológica e coordenador do Programa Interbiota.
O objetivo do programa é avaliar o efeito do aquecimento nas águas do território oeste da Península Antártica – uma das regiões cujas temperaturas mais têm aumentado no planeta. Os pesquisadores selecionaram três áreas nas proximidades da estação brasileira – no Oeste para compará-las com o lado Leste. O estudo vai mostrar até que ponto essas alterações comprometem a composição da biodiversidade. “Acreditamos que muitos animais e micro-organismos não conseguem se adaptar rapidamente a essas condições diferentes. Isso pode extingui-los e mudar toda a vida no local”, explica Secchi.
Os equipamentos do navio Maximiano permitiram, por exemplo, a sondagem na entrada da Baía Maxwell feita com ecobatímetro multifeixe EM-302. Os feixes do equipamento rastreiam o solo e, na última expedição, possibilitaram a obtenção de dados em profundidades de até 500 metros. Também foi realizada uma sondagem “teste” em águas profundas, a mais de 4 mil metros, entre as Ilhas Malvinas e o continente, onde existem características semelhantes às das águas ao sul da Amazônia Azul. Esse trabalho servirá para verificar a qualidade dos dados levantados para o emprego no Plano de Levantamento da Plataforma Continental Brasileira (Leplac).
Os pesquisadores embarcados conseguiram também coletar dados em 195 estações oceanográficas, atingindo a profundidade de 4 mil metros. Trabalharam em 87 estações geológicas, atingindo uma profundidade máxima de 3.850 metros; lançaram 15 boias de deriva e 16 radiossondas. Outra das pesquisas conseguiu coletar água na Travessia do Drake. Para isso, o Tio Max teve que manter-se na mesma posição durante dez horas em uma região de grande instabilidade climática e sujeita a inúmeras frentes frias.
“As pesquisas que os cientistas brasileiros desenvolvem na Antártida são das mais marcantes experiências que pude visitar ao longo da minha vida pública. Ao lado de pesquisadores de outros países, os brasileiros marcam a presença do Brasil pesquisando em várias áreas do conhecimento e combinando o mais legítimo interesse nacional com os objetivos mais gerais da humanidade”, disse ao Valor o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Aldo Rebelo.
Por toda a temporada de verão, pesquisadores e militares exercitam uma delicada convivência. Os navios da Marinha existem para atender às necessidades da comunidade científica. Isso não quer dizer que os pesquisadores possam determinar o que e como fazer aquilo que programaram. Em primeiro lugar, eles precisam adaptar-se à rotina militar. O primeiro apito a soar, pouco antes das 7 horas – acompanhado pelas informações da localização e das condições do tempo -, ecoa pelos alto-falantes em toda a embarcação. Ao longo do dia, vão anunciando almoço, jantar, lanche noturno e mudanças nas condições de navegação. Em segundo lugar, e isso todos assimilam rapidamente, é que nessa região do planeta são as condições do clima que decidem tudo.
“O Almirante Maximiano é uma ponta de lança para o Proantar”, assinala o professor da Furg e doutor em oceanografia Mauricio Mata, que coordena a pesquisa Novas Tecnologias Autônomas na Investigação e no Monitoramento das Transformações da Água de Fundo Antártica no Mar de Weddell e Península Antártica: uma Contribuição para o Estudo de Suas Implicações à Circulação Oceânica e ao Clima, do Projeto Nautilus.
As pesquisas do professor Mata vão mostrar como as águas que estão na superfície, no entorno da Antártida, interagem com a atmosfera e a criosfera: “O resultado dessa interação forma massas de água bem características que, quando exportadas, afundam e ajudam a manter as características do oceano profundo em todas as bacias do planeta no Atlântico, Pacífico e Índico”.
Outro projeto, o Baleias – subprojeto do Grupo de Oceanografia de Altas Latitudes (Goal) -, pesquisa há dez anos os padrões de distribuição e abundância das baleias, principalmente baleias-jubarte, nas proximidades da Península Antártica. Eles já conseguiram, por exemplo, identificar baleias-fin. Também vêm sendo investigados os padrões de migração das baleias-jubarte para saber se os indivíduos que se alimentam na região da península pertencem à mesma população dos animais que se reproduzem no Banco dos Abrolhos, no litoral da Bahia.
O DNA utilizado pelo Projeto Baleias para as análises moleculares foi extraído da pele dos animais, coletada com dardos especiais de biópsia. “É um trabalho difícil. Nossos pesquisadores saem nos botes infláveis e, para isso, dependem das condições do clima que balizam a autorização ou não do comandante para descer ao mar”, conta o professor Luciano Dalla Rosa, doutor em zoologia.
FONTE: Valoe Econômico