Por Carlos Drummond
CartaCapital: Como surgiu o Programa de Desenvolvimento de Submarinos?
Bento Costa Lima Leite: A Marinha desenvolve, desde o fim da década de 1970, o seu programa, que visa exclusivamente chegar à propulsão nuclear naval. Entre 2007 e 2008, o Brasil tinha uma presença marcante no contexto internacional e alguns países tentaram uma aproximação, eu diria, até estratégica, o que levou ao acordo entre Brasil e França, com transferência de tecnologia. As condições econômicas do País também permitiam iniciar um programa dessa magnitude.
CC – O que o PROSUB inclui?
AE Bento – A transferência de tecnologia para o estaleiro de construção e manutenção, um complexo radiológico, a construção de quatro submarinos convencionais e do submarino brasileiro de propulsão nuclear. A propulsão nuclear e a parte de sistemas e equipamentos não estão incluídas na transferência de tecnologia, isso cabe única e exclusivamente ao Brasil. Daí termos iniciado há praticamente 40 anos o nosso programa nuclear, pois sabíamos que jamais se transferiria ao Brasil essa tecnologia, muito menos o seu desenvolvimento.
É importante ter isso em mente. O índice de 95% de nacionalização mostra que a transferência de tecnologia foi extremamente exitosa. Transferência de tecnologia não é como se fosse um pacote, pois é indispensável ter capacidade de absorvê-la. Essa capacidade resulta da experiência passada de construção de submarinos e da existência de vários centros tecnológicos e de profissionais de excelência no Brasil, no ramo de engenharia. No que diz respeito ao submarino de propulsão nuclear, nós não tínhamos a capacitação em projetos.
O último navio que projetamos e construímos foi a corveta Barroso, que levou 14 anos desde o projeto concluído até o produto final, entre 1994 e 2008. Um tempo excessivo, pois, quando o navio fica pronto, já tem de sofrer outra modernização, para ficar no estado da arte. Em janeiro, concluímos o projeto básico do submarino de propulsão nuclear. O Riachuelo, primeiro submarino convencional do programa, será lançado até o fim do ano que vem.
CC – Na parte de energia nuclear, o que a Marinha precisou fazer para chegar ao PROSUB?
AE Bento – O Brasil comprou projetos prontos para as usinas nucleares, um americano e outro alemão, e fez Angra I e Angra II. Em termos de desenvolvimento, os interesses do Brasil transcendem a zona de exclusão econômica, pois 95% do comércio com o mundo é feito pelo mar e praticamente nada foi feito. A Marinha, para chegar à propulsão nuclear, teve de desenvolver, em primeiro lugar, o ciclo completo do combustível, desde o minério até o enriquecimento do urânio e a transformação deste em pastilhas para propulsão, entre 1979 e 1988. Para a propulsão propriamente dita, tivemos ainda de desenvolver reatores nucleares de potência. A Marinha liderou o processo, em parceria com a USP e o Instituto de Pesquisas Energéticas, entre outros.
CC – O programa corre o risco de interrupção no contexto atual de fortes restrições orçamentárias?
AE Bento – Não vejo esse risco. O Brasil é um dos dez maiores países do mundo em território, população e economia, e pode até descontinuar o programa e depois retomá-lo, mas o custo disso para a sociedade seria muito grande, em razão da sua complexidade.
CC – Como a construção de submarinos se insere num projeto de País?
AE Bento – Há várias inserções, inclusive naquilo que proporciona em termos de desenvolvimento relacionado a arrasto tecnológico e fomento industrial. O ponto primordial, entretanto, é de que o programa de submarinos é essencial à defesa dos interesses do Brasil no mar, que são muito amplos, a começar pela zona econômica exclusiva de 4,5 milhões de quilômetros quadrados. Na verdade, ele transcende essa área, pois perto de 95% do comércio brasileiro com o mundo é feito por mar, com Ásia, Europa, Estados Unidos e América do Sul. O submarino é uma arma por si só de dissuasão.
E o submarino de propulsão nuclear proporciona ao poder naval uma dimensão ampla, de estar presente em qualquer lugar que se faça necessário. Isso garante ao País um poder de dissuasão muito grande naquilo que conflite com seus interesses.
CC – Alguns especialistas alertam que o Brasil, com o Pré-sal e demais recursos no oceano, está na interface de embate dos principais blocos geopolíticos, o estadunidense-europeu e o russo-chinês. Faz sentido identificar aí a grande importância de se manter a incolumidade dos domínios marítimos brasileiros?
AE Bento – Faz todo sentido. Considere-se ainda que 10% da carga mundial passa por portos brasileiros, um dado estatístico incontestável. A carga embarcada aqui ou que passa pelo País transita em todos os mares do mundo. O Brasil, não falo agora de submarinos, deve ter condições de preservar seus interesses e suas rotas comerciais, independentemente dos blocos geopolíticos. As condições para isso incluem, entretanto, programas da magnitude do PROSUB, entre outros previstos na Estratégia Nacional de Defesa, a exemplo daquele de desenvolvimento de navios de superfície, também de grande complexidade tecnológica. A propósito, um país como o nosso não pode deixar de preservar sua independência por meio da tecnologia e do desenvolvimento que vêm agregados a isso.
CC – O senso comum diz que o Brasil é um país pacífico, nunca atacará nem será atacado. Isso dificulta a conscientização da sociedade sobre a necessidade de o País estar preparado para se defender?
AE Bento – Sem dúvida. Poucos se dão conta de que o País participou das duas guerras mundiais e é muito reconhecido no exterior por conta da sua atuação. Na Segunda Guerra Mundial, nossa Marinha foi encarregada da proteção de todos os comboios até o Caribe, e a partir dali os Estados Unidos assumiam a escolta da frota comercial da Europa e de outras regiões.
Algumas singularidades chamam atenção. Poucos países estabelecem na Constituição que se abrirá mão do armamento nuclear e a Marinha Brasileira é a única do mundo com um programa nuclear sob a salvaguarda da Agência Internacional de Energia Atômica e da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares. A definição constitucional talvez contribua para aquela crença de que não seremos ameaçados, mas algumas décadas atrás a Guerra das Malvinas, aqui no Atlântico Sul, mostrou que, quando interesses são contrariados, principalmente aquelas nações que têm Forças Armadas expressivas, não deixam passar em branco.
Mas o Brasil tem amadurecido nesse aspecto, como mostra o estabelecimento, em 2008, da Estratégia Nacional de Defesa, com a participação do meio acadêmico, de intelectuais e representantes das Forças Armadas, exaustivamente discutida e referendada pelo Congresso Nacional. O próprio PROSUB não foi alvo de objeções relevantes no Parlamento. Nós precisamos ter capacidade de manter a segurança sobre tudo aquilo que diz respeito aos nossos interesses.
CC – Quais são as ameaças mais prováveis ao País?
AE Bento – A guerra cibernética e o terrorismo internacional. O Brasil é hoje o maior produtor de petróleo da América Latina. Superamos a Venezuela e o México, com o Pré-sal. Imagine um atentado a esse patrimônio do País, que fica de 150 a 200 quilômetros da costa, se não houver capacidade de defendê-lo. Pensemos no que isso poderia causar à economia brasileira e para as nações que importam o nosso petróleo. Uma das maiores preocupações em relação aos navios de guerra é hoje a guerra cibernética, pois um vírus pode comprometer toda a capacidade de combate. Por outro lado, ameaças de blocos, mesmo de países, felizmente não temos no momento. Mas nada diz ou significa que não ocorram no futuro.
CC – Por quê?
AE Bento – Porque o Brasil tem água, biomassa, minérios, e é um dos celeiros do mundo ao lado de Estados Unidos, Austrália e Argentina. Pode haver algum conflito de interesses e sermos instados a defendê-los. Alguns países têm grande extensão territorial, à semelhança do Brasil, mas não contam com recursos naturais em abundância. Isso por si só pode gerar algum tipo de interferência econômica na exploração dos nossos recursos. É uma ameaça intangível que a sociedade nem sempre consegue visualizar. Estamos um pouco afastados do eixo mundial e isso dificulta a percepção de que fazemos parte desse contexto também.
CC – O País sofre uma onda de desnacionalização, inclusive de campos de petróleo. Não seria uma interferência econômica prejudicial ao patrimônio do Pré-sal e da Amazônia Azul?
AE Bento – Eu não vou entrar nesse aspecto econômico de desnacionalização ou não. O ponto mais importante não é se é meu ou se é seu, mas, se está aqui, eu tenho de ter condições de defendê-lo e protegê-lo. E, hoje em dia, o País não tem condições, se não dispõe de um poder naval capaz, de defender o pré-sal, caso ele fique sob ameaça. O Brasil precisa ter meios e competência para defendê-lo e mostrar a quem quer que seja que temos essas condições.
CC – Qual é o papel da Odebrecht no programa?
AE Bento – Eu diria que a Odebrecht é uma das grandes responsáveis pelo êxito do programa até agora. Todas as obras civis foram feitas por essa empresa, utilizando, evidentemente, a técnica passada pelos franceses do arranjo do estaleiro e da base dedicados à construção de navios de guerra, principalmente de submarinos. A Odebrecht foi escolhida pelos próprios franceses para ser parceira deles.
CC – Qual o papel do almirante Othon no Programa Nuclear da Marinha?
AE Bento – O almirante Othon deixou o serviço ativo da Marinha em 1994 e hoje está reformado. Ou seja, está fora da Marinha há 23 anos. Entre 1978 e 1994, foi ele, entretanto, quem conduziu o Programa Nuclear da Marinha. Em 1988, dominamos o ciclo completo do combustível nuclear. Sem dúvida, ele teve um papel muito importante nessa conquista tecnológica para o País. Recebeu a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico, a maior condecoração do País na área de ciência e tecnologia, em reconhecimento por tudo que ele fez no desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro.
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FONTE: Revista Carta Capital