Reconstrução a -75ºC

Militares e cientistas brasileiros enfrentam o clima gelado da Antártida para garantir a continuidade das pesquisas no continente. Base definitiva que substituirá a estação incendiada no ano passado deve ficar pronta em 2015.

Antártida — As caixas do sistema de som dos navios Ary Rongel e Almirante Maximiano acordam todos lembrando o tempo estimado de vida para quem cair na água da Baía do Almirantado: 90 segundos. Avisam ainda sobre as condições climáticas. Geralmente, com temperatura na casa dos negativos e ventos nunca abaixo dos 30km/h, chegando a 200km/h. Começa dessa forma a rotina da maioria dos militares e pesquisadores brasileiros na Antártida. Mas pode ser muito pior.

Na situação mais pavorosa, estão aqueles em terra e os que passam o inverno no inóspito continente, quando as embarcações precisam deixar os mares da região para que nâo sejam esmagadas pelo gelo e seus ocupantes não morram de fome e de frio. A partir de março, 15 bravos e muito bem treinados homens da Marinha do Brasil vão se refugiar em contêineres com as condições mínimas de sobrevivência no inverno polar. Dez cientistas estarão com eles ou em refúgios ainda mais isolados.

Os militares têm a missão de guardar e preservar o restante da antiga Estação Comandante Ferraz e os módulos que a substituirão até ser definitivamente reconstruída. A base provisória deve ser concluída no fim de março. Já a estação definitiva, em 2015. Tudo para não interromper as pesquisas. Algumas exigem a presença de estudiosos mesmo durante o rigoroso inverno antártico, que começa em abril e termina em outubro, com até -75ºC.

O Correio acompanhou a vida dessa gente por cinco dias, sendo um no Maximiano e quatro no Ary Rongel, além de ter visitado duas vezes a Comandante Ferraz. Com os navios, o Brasil consegue garantir presença no Polo Sul desde o incêndio que destruiu 70% da estação, há um ano. Eles servem de hospedaria, armazém, estação e laboratório aos brasileiros que se aventuram na Antártida. Como não há portos no continente, as embarcações ficam estacionadas no meio do mar, a cerca de 500m da Baía do Almirantado. O trajeto entre elas e as praias geladas é feito em pequenos botes e chatas.

Os navios são duas minicidades flutuantes, capazes de ficarem na região por até 30 dias. Mais é impossível, por conta do combustível. O óleo mantém os navios em movimento e com todos os sistemas ligados, como a imprescindível calefação. Por isso, eles se revezam nas viagens entre a Comandante Ferraz e Punta Arenas. Distante 1,4 mil quilômetros da estação, a cidade portuária de 150 mil habitantes ao sul do Chile serve como base de apoio às missões do Programa Antártico Brasileiro (Proantar), que neste verão completou 31 anos ininterruptos.

Uma das prioridades da expedição acompanhada pela reportagem era desembarcar 10 estudiosos na Península Antártica, além de materiais para estudos na antiga estação. Apesar de o governo brasileiro ter liberado R$ 40 milhões emergencialmente logo após o fatídico incêndio, 40% das pesquisas nacionais no continente mais ao sul do planeta se perderam em meio ao fogo.

Para retomar o antigo ritmo, será necessário ao menos mais um ano, segundo o coordenador de Projetos Científicos do Proantar, Jefferson Simões. “Mas os estudos não dependem totalmente da estação. Eles são feitos em acampamentos no interior do continente ou em geleiras e nos navios brasileiros. Por isso, o programa não foi interrompido”, ressaltou o glaciologista. Há 21 projetos de pesquisa em andamento no Proantar, que recebeu R$ 144 milhões do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, nos últimos 12 anos.

Sem teto

Diferentemente dos militares da Marinha, que seguem nos navios, a maioria dos pesquisadores chega ao continente gelado em voos da Força Aérea Brasileira (FAB). Os aviões C-130 (Hércules) pousam na base chilena Eduardo Frei, levando também suprimentos, entre outubro e fevereiro. Mas esse trajeto de 1,2 mil quilômetros, em um voo de três horas, só é realizado quando o clima permite. Quase não há teto para a aeronave pousar no aeródromo chileno. Quando aparece o que os pilotos chamam de janela, ela tem que ser aproveitada.

Em 7 de fevereiro, as condições precárias fizeram com que o grupo de 40 cientistas e militares só desembarcasse na Antártida após duas tentativas de pouso frustradas. Na Ilha Rei George, homens da equipe que guarda as instalações já esperavam os convidados. Eles estão lá desde novembro, para desmontar a antiga estação e limpar o terreno, com a ajuda de 40 operários chilenos. “Quando chegamos, era cinza pura, ferro retorcido. Só havia neve e não tínhamos máquinas. Com pás, tiramos uns 60 mil metros cúbicos de neve que encobriam a estação”, contou o capitão Paulo Cesar Galdino de Souza, chefe da operação logística na Ferraz.

Só para tirar a neve acumulada, os 80 homens levaram 10 dias. Por causa do mau tempo, não voltaram ao navio, dormiram em barracas. Ainda há sucata sendo cortada e carregada por tratores e tesouras mecânicas na ilha. Eles já retiraram e embarcaram no navio alemão Germânia mais de 600t. Os homens do grupo de Paulo Souza dormem na embarcação fretada pela Marinha do Brasil e parada na Baía do Almirantado. Mas, a partir do próximo mês, quando ela partirá rumo ao Rio de Janeiro levando os escombros, 15 militares serão deixados em Rei George.

Até o fim de março, 39 caixas de metal flexível — os Módulos Antárticos Emergenciais (MAE) — serão agrupadas e formarão um abrigo provisório. Atualmente, parte das pesquisas é desenvolvida no Rongel e no Almirante, e outra, em contêineres do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), na ilha. Antes do incêndio, eles abrigavam equipamentos receptores de dados meteorológicos e informações sobre o clima. Agora, servem de abrigo para militares e cientistas usarem a internet e o telefone, quando há sinal.

Clima de luto

Ainda há velhos contêineres na margem da ilha que servem de depósitos de equipamentos e botes. À esquerda, um laboratório de química, o único poupado pelo fogo em 25 de fevereiro de 2012. Uma fileira de barracas coloridas é o abrigo de emergência dos militares que trabalham na retirada dos entulhos. Eles torcem para que a empresa canadense contratada pelo governo brasileiro cumpra o prazo do fim da construção dos MAEs.

Toda essa operação custou ao Brasil R$ 100 milhões. Com os módulos, militares e pesquisadores poderão manter as pesquisas pelos próximos cinco anos. Mas a previsão é que a nova estação definitiva esteja concluída até o fim de 2015. Enquanto isso, o clima de luto permanece entre os integrantes da 31ª edição da Operação Antártica (Operantar). No alto do morro da ilha, as cruzes com os nomes dos dois tenentes da Marinha mortos no incêndio não deixam ninguém se esquecer da tragédia. Elas estão ao lado de outras cinco cruzes, quatro de ingleses mortos quando o local ainda abrigava uma base baleeira britânica e uma de um sargento brasileiro vítima de um enfarte fulminante há alguns anos.

Comandante do Ary Rongel, o capitão-de-mar-e-guerra Marcelo Seabra estava em Punta Arenas com seu navio quando recebeu o telefonema de Brasília avisando do incêndio na estação, onde estavam 60 pessoas. Coube a ele coordenar a logística para receber pesquisadores e militares sobreviventes, socorridos por argentinos, poloneses e estrangeiros em outros navios na Antártida. “Foi muito sofrido ter 28 anos de estação e perder tudo. Antes não tivéssemos perdido as duas vidas”, lembrou Seabra. Ele nunca subiu onde estão as cruzes.

Nem a construção de uma nova estação, mais segura e moderna, trouxe de volta o “clima de Ferraz”, como comentou Heber Reis Passos. Técnico do Inpe, ele tem mais de 150 meses de experiência na Antártida, com 21 viagens ao continente. “Apesar do frio, a estação tinha vida. A cada bote que chegava, tinha gente para receber o visitante. Também havia muitos animais na praia, como pinguins. Depois do incêndio, sumiram todos. Mas restaram a solidariedade e a vontade de reconstruir.”
Para saber mais – Homenagem ao pioneiro
A Estação Antártica Comandante Ferraz começou a operar em 6 de fevereiro de 1984. Os contêineres que formavam uma pequena vila — com depósitos, oficinas, biblioteca, salas de lazer e estar, enfermaria, sala de comunicações, ginásio de esportes, cozinha e refeitório — foram levados pelo navio oceanográfico Ary Rongel e diversos outros navios da Marinha do Brasil.

O nome da estação homenageia Luís Antônio de Carvalho Ferraz, comandante da Marinha do Brasil, hidrógrafo e oceanógrafo que visitou o continente Antártico por duas vezes a bordo de navios britânicos. Ferraz desempenhou importante papel ao persuadir o Brasil a desenvolver um programa antártico, o Proantar. Em 2004, a estação chegou ao ápice, com 60 módulos e capacidade de abrigar 48 pessoas.

Os programas de pesquisa permitiram estudar o impacto das mudanças ambientais globais na Antártida e suas consequências para as Américas, inclusive para a Amazônia. Ali, cientistas detectaram o aumento da temperatura global, do buraco da camada de ozônio e do nível dos oceanos, além de terem recolhido elementos provenientes da poluição causada em sua maioria pelos países do Hemisfério Norte. Todas as alterações detectadas pela Comandante Ferraz mostram claramente a interação entre os hemisférios e sua interferência nas mudanças globais.

FONTE: Correio Braziliense – Renato Alves

 

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