Por Walter Colli
Como parte do prêmio Almirante Álvaro Alberto 2014 que recebi do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com o apoio inestimável da Fundação Conrado Wessel, e do qual me orgulho porque representou um reconhecimento da comunidade a 50 anos dedicados à ciência e à universidade, a Marinha do Brasil ofereceu-me uma viagem de 8 dias em um dos navios de uma pequena frota que singra os rios amazônicos e aos quais deu-se o nome de Navios da Esperança.
Faço esse relato para divulgar uma iniciativa belíssima que desconhecia apesar de meus 76 anos de idade. Nunca ouvira falar da existência dessa flotilha. É muito simples entender: a Marinha do Brasil mantém quatro navios navegando pelo rio Amazonas e seus afluentes, até a fronteira com os países limítrofes da região amazônica, além de três navios armados que policiam constantemente nossa fronteira molhada tentando conter o contrabando de animais e o tráfico de entorpecentes.
Em convênio com o Ministério da Saúde esses navios, que percorrem cada um 25.000 km por ano, são equipados com 20 tipos de medicamentos básicos, com laboratório de análises capaz de processar a dosagem de uma série de enzimas do soro, bem como fazer hemograma completo, necessários ao diagnóstico médico. Além disso, o navio dispõe de gabinetes odontológicos completos e outros equipamentos.
Fomos, eu e minha mulher, tratados de maneira fidalga, conduzidos por um oficial da Marinha, de nossa casa em São Paulo até Manaus e de lá, transportados por um helicóptero Esquilo, do esquadrão Tucano que dá apoio à flotilha, alcançamos o navio de assistência hospitalar (NAsH) Carlos Chagas que já estava viajando. Cada navio tem um lema. O do Carlos Chagas, chamado “O peixe-boi da Amazônia”, é “Saúde onde houver vida”. O que vimos é algo que merece ser relatado.
O navio singra o rio e fundeia quando avista uma comunidade ribeirinha. São pequenas vilas com poucas casas, todas construídas sobre troncos de árvore, para flutuarem na época da cheia e, às vezes, são comunidades um pouco maiores.
Na maior parte dessas comunidades, o fornecimento de energia é feito por um gerador que, por economia, funciona por poucas horas após o anoitecer. Não existem sistemas de distribuição de água e tratamento de esgotos. A água para uso domiciliar é tirada diretamente do rio, e para lá retorna levando todo tipo de dejetos. Ainda assim, é comum que as crianças se banhem no rio em meio à contaminação.
A lancha do navio leva a equipe de saúde para a margem. Lá, são ministradas aulas de escovação de dentes e distribuídos dentifrício e escovas. A enfermeira organiza os habitantes e faz a triagem a partir de suas queixas, encaminhando cada qual para um tipo de atendimento. Os médicos conversam, administram remédios, orientam.
Quando necessário transportam o paciente para o navio, seja para tratamento dentário, seja para colheita de material e exames de laboratório, seja para observar melhor a evolução de um sintoma. Foi assim no caso de uma senhora que não tinha os sinais clássicos de infarto de miocárdio, mas cujas enzimas no soro indicavam que uma lesão importante estava se instalando. A decisão dos médicos, junto com o comandante do navio – um oficial competente, além de simpático – foi embarcar a paciente no helicóptero e levá-la para um hospital de Manaus, pois, estávamos próximos da capital. Foi assim que essa operação salvou essa mulher. Ou com um menino com uma infecção na face muito próxima do olho e que havia sido tratado em um hospital de uma pequena cidade próxima, mas sem melhora. Os médicos trouxeram o menino para o navio ao cair da tarde, quase noite. A discussão que se seguiu foi uma aula de como se toma uma decisão, ao mesmo tempo rápida e ponderada. No escuro, o helicóptero não podia sair nem a lancha por falta de luz própria. Por outro lado, a inflamação estava perigosamente próxima do olho. Manter o menino no navio durante a noite era desaconselhável, devolvê-lo à margem impensável. O comandante, por rádio, comunicou-se com o hospital mais próximo e certificou-se que eles dispunham do antibiótico que os médicos haviam receitado. Mas como chegar lá com um navio cuja velocidade de cruzeiro é baixa? O comandante comunicou-se com seu colega do navio patrulha Roraima, o Águia do Amazonas, que nos acompanhava como um anjo da guarda. O menino foi transportado para o navio patrulha que rapidamente o levou para essa cidade mais próxima, onde estava o hospital.
Esse atendimento não é trivial porque, não raramente, o ribeirinho é esquivo e custa a entender e se fazer entender.
Algumas vezes a pessoa é analfabeta. É clássica a história de um atendimento em que o médico, para ter certeza que o paciente iria medicar-se corretamente, desenhou no “receituário” um sol nascente, um sol a pino, um sol poente e uma lua em quarto minguante, tendo ao lado dois pequenos círculos em cada um dos períodos a indicar o número de comprimidos a ser ingeridos.
Tudo nos impressionou favoravelmente: a absoluta organização do navio, os homens cada qual executando sua função com responsabilidade e alegria, um cozinheiro que, em instalações mínimas, fazia um pão delicioso todos os dias e uma comida honesta e gostosa. É na Praça d’Armas que todos se reúnem para o relatório diário dos acontecimentos e para o planejamento das atividades do dia seguinte. Mas o que mais nos impressionou foi a atitude dos jovens que compõem o núcleo da saúde. Alguns, já dentro da carreira militar. Mas outros, voluntários, os homens cumprindo serviço militar, as mulheres por escolha própria. Aqueles jovens – três dentistas, um farmacêutico, uma enfermeira, quatro médicos – funcionavam como uma unidade treinada. Sua competência ao conversar com os ribeirinhos, obtendo informações e orientando, foi a parte mais bonita de se ver. Seus olhos brilhavam conscientes de que estavam fazendo algo importante e sabiam o que estavam fazendo. Os médicos, recém-formados, um na Santa Casa de São Paulo, os outros três na Faculdade de Medicina da USP, nos impressionaram sobremaneira pela forma como diagnosticavam e medicavam. Eles nunca esquecerão, quando estiverem exercendo suas profissões em outras paragens, essa experiência de atendimento diuturno de brasileiros necessitados e desassistidos.
Desde o Comandante do 9º Distrito Naval em Manaus que nos recebeu muito bem até os homens da Divisão de Máquinas, passando pela chefia do Estado-Maior, pelo comando da Flotilha e pelos comandantes dos navios, além dos profissionais da saúde a quem já me referi, notamos que nessa atividade não há lugar para a improvisação. Tudo é planejado, todos sabem o que fazer, em nenhum momento sentimos a presença do jeitinho brasileiro.
Essa curta viagem devolveu-me parte da esperança que outrora, quando jovem, já nutri pelo Brasil.
FONTE: Jornal da ciência
Autor: Walter Colli é professor titular aposentado da Universidade de São Paulo (USP), onde ainda atua como professor colaborador sênior, e um dos diretores da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).