Por Renan França
Navegar e salvar é preciso
Bruno Grana usa seus alicates e um cortador de fios na boca dos pacientes que costuma atender. Sem luz elétrica, ele os recebe debaixo da copa de uma árvore na comunidade do Caborini, portando uma lanterna, a 648 quilômetros de Manaus, no Amazonas. Grana é dentista da Marinha do Brasil há quatro anos e acredita que o problema de todos os ribeirinhos que atende na Amazônia é o mesmo: —Não há preocupação com a limpeza bucal. Aqui na ribeira acreditam que escovar os dentes é coisa de gente “fresca”. Só caem na real quando eu informo que precisam arrancar oito dentes de uma vez—explica. Segundo ele, o pior não é ter que trabalhar sem os instrumentos de um consultório — a maior dificuldade é convencer o ribeirinho que limpar o dente é uma questão de saúde. —Eu começo dizendo que vou “dar uma olhada”.
Quando se distraem, eu já aplico a anestesia. Sou rápido. Arranco um dente por minuto — diz, retirando um molar de dois centímetros e meio da boca de um morador. Grana faz parte da tripulação formada por 58 homens e três mulheres do NAsH Carlos Chagas, da Marinha. A embarcação é um dos quatro Navios de Assistência Hospitalar (NAsH) que cumprem missões anuais na região amazônica. São cerca de10 mil quilômetros navegando pelos rios na região Norte. Os números mostram a importância das missões da região: desde 1984, ano de estreia do programa da Marinha de atendimento ao ribeirinho, já foram realizados 4,2 milhões de atendimentos médicos e dentários. Para acompanhar o trabalho da força armada, a reportagem do GLOBO acompanhou por 18 dias o trabalho na Amazônia. Sentada na Praça D” Armas do navio, a tripulação está à espera do comandante Caetano Quinaia, chefe da operação, para o almoço. Quinaia chega, todos se levantam e esperam que ele se sirva — o almoço só começa depois que o comandante toca no garfo.
Não há do que reclamar das refeições do navio. O cardápio é fruto do bom planejamento dos sargentos que cuidam da preparação do almoço. Para uma missão de 30 dias dentro da Amazônia, são compradas quase três toneladas de comida. — Estou de regime e morrendo por dentro por não poder comer pirão e um belo pedaço de peixe frito — lamenta Quinaia, que coloca no prato duas colheres de arroz, uma de atum moído e seis ovos de codorna.
Enquanto come, o comandante passa as instruções para os atendimentos que serão feitos no período da tarde. Para chegar até a comunidade da Boca do Tigre, serão usados a lancha e o helicóptero que fica à disposição no heliporto do navio.
Para coordenar toda a operação é preciso mobilizar 32 integrantes, mais a equipe médica (quatro médicos e quatro dentistas) que irá fazer os atendimentos em terra. O navio é um hospital sobre a água. No segundo pavimento, local onde também está a ala dos sargentos e suboficiais, estão os consultórios. A sensação é a mesma de estar em uma clínica médica. Há dois ambulatórios médicos e odontológicos, uma sala para exames, uma máquina para raio-X e uma sala de cirurgia. Para serem feitas no navio, as operações precisam ser rápidas e simples.
“NÃO PRECISA PAGAR, NÉ, DOUTOR?”
Deitado na maca na sala de cirurgia, o pescador Fabiano Silva está com um cisto do tamanho de um limão no braço esquerdo. O médico Igor Proença aplica uma dose de anestesia antes de começar a remoção do caroço. Com os olhos fechados, Fabiano confidencia a Proença que está com o cisto há alguns anos, mas achou que não era nada grave. O procedimento dura pouco mais de 30 minutos. —Não precisa pagar, né, doutor? — diz Silva, antes de sair com o braço enfaixado e ser levado de volta para a comunidade onde os médicos da equipe da Marinha passaram a tarde. O itinerário do navio é decidido com muita antecedência. O objetivo de cada embarcação é atender o máximo de comunidades possível. A duração de cada uma das missões é de aproximadamente 50 dias. Mas, de acordo com o cronograma anual, uma missão pode começa dois dias após o encerramento de outra. É comum um marinheiro passar até dez meses longe de casa. —Não é fácil ficar tanto tempo longe, o que ameniza nossa saudade é saber que estamos salvando vidas — diz o comandante Quinaia, sentado na sala de controle do navio.
PAINÉIS DE FICÇÃO CIENTÍFICA
Os painéis de controle com botões e alavancas lembram um laboratório de filme de ficção científica. A sala de controle monitora tudo 24 horas por dia. No lugar, marinheiros se revezam em turnos de quatro horas todos os dias, de domingo a domingo. Ao lado do painel, marinheiros com especialização em cartografia ficam a todo tempo calculando o caminho para que não haja erro durante a rota. Diferentemente do que possa parecer, a navegação pelos rios da Amazônia não é simples. Apesar de apresentar menos riscos em relação a uma viagem no mar, pela ausência de ondas, há o perigo constante dos bancos de areia, que podem fazer o navio encalhar. Para isso, dentro da sala de comando do NAsH, há três radares que medem a profundidade do casco da embarcação em relação ao chão.
Mas, como os bancos de areia são móveis, devido à correnteza do rio, a profundidade pode ser alterada de 30 para cinco metros rapidamente; outra preocupação são as margens, que, às vezes, estreitam tanto o rio que seria impossível dois barcos passarem pelo mesmo ponto um ao lado do outro. Para um civil, a hierarquia militar pode parecer exagerada num primeiro momento. Tudo é feito de forma meticulosamente calculada. Para que o helicóptero decole, por exemplo, às 13h, com destino a uma comunidade próxima, uma hora antes começa a preparação para o lançamento. Se o navio vai ancorar, praticamente todos os homens do navio assumem um posto pré-determinado — mesmo quem não vá desempenhar qualquer função na operação. É raro haver algum tipo de acidente numa missão.
Mas nem tudo é trabalho durante a expedição. Nas horas livres, cada integrante do navio busca uma forma de se divertir. No andar mais baixo do navio, destinado aos cabos e marinheiros , o videogame é a principal forma de entretenimento. No pavimento superior, sargentos e suboficiais se enfrentam em partidas de “dominado”, jogo de tabuleiro que lembra o ludo, com algumas regras diferentes. O uso de celulares é proibido em todo o navio — não faz diferença, já que não há sinal de celular. A academia da embarcação é outro lugar disputado. O objetivo de todos é queimar as calorias das quatro refeições realizadas por dia. Os horários do final da tarde são os mais concorridos, já que o calor está levemente mais baixo. Mesmo às 18h, difícil é levantar peso com a temperatura próxima dos 40ºC.
FILHO SÓ CONHECIDO AOS 4 MESES
Formado em Medicina Pela USP em 2013, o médico Rafael Carra, de 26 anos, recebeu uma proposta para ganhar um salário três vezes maior do que ganha na Marinha, em Santana do Parnaíba, cidade do interior de São Paulo. Mas, assim que soube que havia sido aprovado no concurso para entrar para a Marinha, ele não titubeou. Segundo ele, a opção pela força armada foi pela experiência em uma realidade distante do dia a dia.— Aqui atendo de tudo. De crianças com febre até pacientes querendo conversar para amenizar a solidão — conta Carra. — Sem nosso atendimento, seria ainda mais grave a situação dos ribeirinhos.
Mesmo após o diagnóstico, muitos deles não sabem ler e ficam à espera de algum familiar que o ajude a tomar remédios. Constantemente em missão, o sargento da Marinha do Brasil, José Cardoso, 45 anos, só soube da morte da mãe seis dias após o enterro. O filho mais velho do marinheiro, Rafael, só pode conhecer Cardoso quatro meses após o nascimento. — Certa vez, meu filho perguntou a minha esposa se eu havia morrido. É uma vida dura, mas trabalhamos tentando salvar pessoas. Minha família tem muito orgulho do que faço — revela Cardoso.
FONTE: O Globo