Estação Antártica Comandante Ferraz – EACF

Construção da nova Base Brasileira na Antártica

Por Monica Gugliano

ANTÁRTICA – No último mês, a repórter Monica Gugliano passou uma semana acompanhando as obras de construção da nova Estação Antártica Comandante Ferraz, base brasileira na Antártica. Viu de perto o trabalho dos mais de 200 operários chineses, dos engenheiros daquele país e dos tradutores que também desembarcaram no continente, além dos esforços da Marinha do Brasil. As antigas “casinhas verdes”, ela conta, parcialmente destruídas por um incêndio em 2012, já quase não podem ser vistas. Veja a seguir como são os trabalhos na estação, fotos e vídeos com o andamento das obras e um infográfico que mostra como ficará tudo ao final, o que deve acontecer até 2020.




PRATICAMENTE UMA OBRA INÉDITA

Sexta-feira em Ferraz. Essa é a denominação que os moradores eventuais e permanentes da Estação Antártica Comandante Ferraz, base antártica que pertence ao Brasil, dão aos encontros de todas as sextas no refeitório. Passa das 20h e há salgadinhos, bebida e boa música. Diversão dentro das possibilidades do lugar isolado na Ilha do Rei George, na Península Keller. Do lado de fora o som é outro e nunca para: o barulho das máquinas escavadeiras e dos quatro guindastes. O verão está terminando, é preciso correr para aproveitar cada instante em que seja possível trabalhar na gigantesca obra da nova Estação iniciada há pouco mais de um ano e prevista para ser inaugurada entre 2019 e 2020.

Seis anos após o incêndio que destruiu grande parte da antiga Estação, a visão que se tem do lugar não é mais a das “casinhas verdes”. Elas ainda estão lá,mas praticamente encobertas pelos gigantescos andaimes e o lodaçal que circunda tudo, descaracterizando a paisagem.

— Nada aqui é convencional — observa o engenheiro civil e capitão de Fragata Newton Fagundes que, ao lado do também engenheiro e capitão de corveta José Costa dos Santos, responde pela fiscalização da obra. — Pelas dimensões, dificuldades, localização e complexidade é praticamente uma obra inédita que envolve soluções de engenharia para ventos de até 200 quilômetros por hora, solos congelados, baixas temperaturas, possibilidade de abalos sísmicos, entre outros.

Operários chineses enfrentam neve e muito frio, mesmo no verão, quando as obras estão a todo vapor

São mais de 200 contêineres, pesando cada um em média 3,5 toneladas, montados em estruturas sustentadas por 54 pilares. Os 432 parafusos grandes usados na construção pesam cerca de seis quilos cada. Somados itens de todo tipo, chega-se a um total de 700 toneladas de aço estrutural de alta resistência e especial para baixas temperaturas. A obra, executada pela companhia estatal chinesa Ceiec (Corporação Chinesa de Importações e Exportações Eletrônicas) ao custo de US$ 99,6 milhões, foi projetada pelo escritório de arquitetura paranaense Estúdio 41.

Quando a Estação for concluída, o complexo em construção poderá receber até 64 pessoas em uma área de cerca de 4,5 mil metros quadrados, com laboratórios, alojamentos e espaços de convivência e de lazer.

— A escolha do projeto foi por meio de um concurso e isso foi fundamental. Chegamos à melhor solução, considerando que precisávamos suprir as necessidades de pesquisa e, ao mesmo tempo, reduzir ao mínimo o impacto da presença humana — explica a arquiteta Cristina Engel de Alvarez, professora na Universidade Federal do Espírito Santo e coordenadora do laboratório de planejamento e projetos em áreas inóspitas.

Fundação: No verão, os trabalhos de construção seguem a todo vapor

Há quase 30 anos que Cristina participa das pesquisas na Estação e é uma das pessoas mais familiarizadas com as três regras que determinam como deve ser feito qualquer trabalho na Antártica: paciência, observação e oportunidade.

— As mudanças no clima e nas condições do tempo acontecem em minutos. Em um instante está tudo bem. Em outro, aparecem rajadas de vento de mais de cem quilômetros por hora. Por isso precisamos de paciência e observação para saber qual é a hora certa de fazer algo e de quanto tempo dispomos — explica o meteorologista Diego Pedroso, primeiro-tenente da Marinha que, embarcado no navio Ary Rongel, é responsável pela previsão meteorológica fornecida à Estação, ao outro navio, o Almirante Maximiano, e aos acampamentos onde ficam os pesquisadores.

Nesta temporada, a arquiteta, os 15 militares da Marinha do Grupo Base (que passam o ano inteiro na Antártica) e outros visitantes sentiram a agitação e as mudanças de costumes. Fora os 217 operários chineses que trabalham na obra e têm um alojamento e refeitórios próprios, há 40 outros funcionários da empresa Ceiec dividindo o espaço do chamado Módulo Antártico Emergencial (MAE). São tradutores e engenheiros que alteraram a rotina antes exclusivamente dos brasileiros.

Acostumados ao frio

Quem acorda de madrugada e sai do alojamento, pode dar de cara com alguma das jovens tradutoras chinesas com o rosto coberto por uma máscara de beleza de argila negra que, segundo elas, é perfeita para hidratar a pele. Há também marmanjos com calça de pijama estampada com o Homer Simpson.

— Vivemos um momento atípico. Acho que estamos todos, principalmente eles, tão longe de casa que não custa ser flexível e deixar as pessoas confortáveis — explica o chefe da Estação, o capitão de Fragata, Marcelo Cristiano Gomes da Silva.

Acostumados ao frio, os trabalhadores fumam ao ar livre

Do outro lado das instalações brasileiras, os operários chineses fazem o possível para se sentirem confortáveis neste extremo do planeta. No alojamento construído para eles, funcionam refeitório, cozinha, dormitórios e espaço para lazer que inclui um karaokê. A comida é toda trazida da China no navio Magnólia, junto com os contêineres e o material necessário para montar a Estação.

Nos carregamentos, toneladas de arroz, farinha e carne suína, quilos de chá, pepinos e cogumelos desidratados, entre outros alimentos. Sem falar nos pacotes de cigarros: eles fumam muito, ao ar livre, indiferentes aos ventos gélidos e às baixas temperaturas. Na prática, o frio não chega a espantá-los. Todos foram recrutados na região chinesa de Harbin, na fronteira com a Rússia, que registra até 40 graus negativos no inverno e é conhecida por um festival de esculturas de gelo.

— Este projeto, em um ambiente tão extremo, é um dos primeiros que fazemos. Mas estamos indo bem — acredita o subgerente do projeto e gerente da obra da Ceiec, Jiao Yang.

Sábado em Ferraz. Passa das 20h. Não há salgadinhos, bebida e muito menos boa música. Moradores eventuais e permanentes são convocados a abandonar o aconchego das instalações e aderir ao mutirão que está descarregando os “marfinites” (caixas plásticas) onde estão boa parte das provisões que vão alimentar os 15 militares e alguns chineses que passarão o inverno na base. Está nevando, venta muito e faz um frio de lascar. O trabalho só para quando todas as caixas estiverem dentro da Estação. O som das máquinas que ajudam a erguer a nova estação do Brasil na Antártica, no entanto, continua sem cessar.

Andamento das obras em vídeo

INFOGRÁFICO

Pesquisa científica pode estar em risco

Na última semana, 18 lideranças científicas brasileiras enviaram um documento ao ministro da Ciência e Tecnologia, Gilberto Kassab, e ao comandante da Marinha do Brasil, Eduardo Ferreira, alertando para a possibilidade de serem suspensas as pesquisas na Antártica por falta de recursos. Manter programas de desenvolvimento da ciência é o principal requisito para que um país seja um membro consultivo do Tratado Antártico (1961).

Regulamentado em 1991 pelo Protocolo de Madri, o documento estabelece que o continente é uma “reserva natural dedicada à paz e à ciência” e proíbe atividades militares e o uso de armas no território. Ao estabelecer essas normas, o protocolo proibiu a partir de sua assinatura e por 50 anos a exploração econômica dos recursos minerais na região onde cientistas esperam encontrar respostas para questões como a origem do planeta e o aquecimento global .

— Não criticamos o Proantar (Programa Antártico Brasileiro, que coordena a pesquisa e o apoio operacional) da Marinha ou o ministério da Defesa. Eles estão fazendo a parte que lhes cabe, reconstruindo a Estação. Mas em uma casa sem cientistas não se faz ciência. O Brasil investiu R$ 330 milhões na construção e acabou com os recursos da pesquisa — afirma o glaciologista Jefferson Cardia Simões, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e vice-presidente do Comitê Científico para Pesquisas Antárticas (Scar, na sigla em inglês).

No documento, Simões e os outros cientistas alertam para a paralisação absoluta dos trabalhos a partir de julho:

— Desde 2013 não é realizado um edital específico para a pesquisa nacional na Antártica. Mais de 40% da pesquisa é feita no navio Almirante Maximiano. Outra parte acontece nos acampamentos montados em diferentes pontos da região.

Os cientistas destacam que o Proantar é fundamental principalmente para o estudo do clima. É na Antártica que surgem as frentes frias que influenciam a agricultura em várias partes do país. Os recursos de R$ 14 milhões que financiaram 19 projetos por três anos, assinalam, já se esgotaram. E o próximo orçamento, estimam, será ainda mais reduzido. Outro ponto levantado pelos pesquisadores é o fato de que, embora estejam previstos mais de uma dezena de laboratórios na nova Estação, não há verba para a compra de equipamentos e materiais e para manter os bolsistas que fazem o trabalho de campo.

O Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) informou que haverá, para o período entre 2018 e 2020, R$ 11 milhões já garantidos para pesquisas do Proantar. Desse total, R$ 7,1 milhões são do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT); R$ 2,9 milhões de recursos do orçamento; e R$ 900 mil de emendas parlamentares. O CNPq ainda fará um aporte por meio do qual, diz o ministério, será possível chegar a um valor R$ 14,7 milhões. O edital deverá ser lançado em meados deste ano.

O dono dos temperos brasileiros na Base

As panelas estão fumegando, e o cheiro de comida que lembra o feijão e arroz de casa se espalham pela cozinha e pelo refeitório. Condimentando, preparando e supervisionando a refeição que até o meio-dia deve estar pronta e servida, o suboficial Ilson Xavier Duarte detém muito mais do que o poder de alimentar as quase 60 pessoas que estão na Estação Antártica Comandante Ferraz durante os meses de verão. Ele tem o poder de fazer com que, mesmo longe do Brasil, os temperos e sabores ajudem a diminuir as saudades de casa.

Aos 47 anos, o menino que não conheceu o pai, perdeu a mãe aos 5 anos e foi morar nas ruas de Rio Grande, município no interior do Rio Grande do Sul, é o “dono do fogão” na Estação Antártica Comandante Ferraz.

— Tudo o que eu tenho devo à cozinha e à Marinha. E tudo o que faço aqui é trabalho de grupo — diz.

Casado e pai de um adolescente de 15 anos, Duarte conta que decidiu ser cozinheiro quando pensou em entrar na Marinha. Na época, com pouco menos de 18 anos, ele imaginou que na carreira militar encontraria a tranquilidade e a estabilidade que lhe haviam faltado desde a infância.

— Aos 5 anos fui adotado, mas apanhava muito e tive que fugir. Fui recolhido na rua por um caminhoneiro que me levou para a casa dele. Sempre me tratou como se eu fosse um filho. Mas a mulher dele, sem razão, achava que eu era filho do caminhoneiro com outra mulher e nunca gostou muito de mim — recorda.

Ao entrar na Marinha, o suboficial tinha três possibilidades: ser cozinheiro, barbeiro ou garçom. Abraçou a carreira com as panelas.

— Nunca me arrependi. Só tive e tenho alegrias com este trabalho — diz, citando o fato de ter cozinhado para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. — Fui cozinheiro na residência da Restinga da Marambaia. O ex-presidente passou uns dias lá e eu preparei as refeições.

Fernando Henrique aprovou:

— Ele não reclamou e até elogiou.

Na cozinha da Estação são preparadas as refeições — café da manhã, almoço e jantar — para uma média de 60 pessoas durante o verão antártico, que vai de novembro a março. Nos demais meses ficam apenas 14 militares que, além dele, passam o rigoroso inverno na Ilha do Rei George. O cardápio, assim como o controle dos mantimentos, é feito por Duarte. Em tempos de casa cheia, são preparados em apenas um dia 25 quilos de carne, três quilos de arroz e em média a mesma quantidade de feijão. Saladas e verduras frescas só estão disponíveis quando os navios chegam com esses mantimentos. Mas o cozinheiro não se intimida quando faltam ingredientes.

— Aqui sempre damos um jeito.

FONTE: O Globo

FOTOS: Monica Gugliano

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