Começa reconstrução da base brasileira no continente gelado, projeto ousado para abrigar cientistas e fortalecer o país no Tratado Antártico ao custo de US$ 99,6 milhões, mas permanece a insegurança quanto a verbas de pesquisa
Por Marcelo Leite e Lalo de Almeida
A mesma escavadeira que desceu pelas duas pranchas de metal serve para levantá-las, com ajuda de correntes. Alcançada a posição certa, quase vertical, os tripulantes não conseguem desprender da segunda rampa o braço articulado do veículo.
Trabalhadores sobem nas costas uns dos outros para resolver o problema, formando uma minipirâmide humana. Não demonstram preocupação com as águas geladas em volta, nas quais um mergulho não permitiria mais que alguns minutos de sobrevivência.
São 22h do dia 16 de dezembro de 2016. O dia austral ainda está claro no arquipélago Shetland do Sul, na ponta da península Antártica, onde fica a ilha Rei George. Começa com esse pequeno tropeço a realização do sonho de dotar o Brasil com uma nova e vistosa “embaixada” no gelado território internacional, a mais de 3.000 km do polo Sul.
No costado da chata se leem alguns ideogramas e, no alfabeto ocidental, a sigla Ceiec. Em inglês, corresponde a Corporação Chinesa de Importações e Exportações Eletrônicas, um nome inocente para o conglomerado estatal de defesa fundado em 1980 pelo líder reformador Deng Xiaoping. A Ceiec ganhou em 2015 a licitação internacional para construir a nova base brasileira.
Os operários da empresa tinham desembarcado do cargueiro Yong Sheng, no dia anterior, para começar a construir o equivalente de um palácio no fim do mundo e assim cumprir um contrato de US$ 99,6 milhões (cerca de R$ 314 milhões em três anos) com o governo brasileiro para construir a nova EACF. A dotação para a obra neste ano é 68 vezes maior que o previsto para a pesquisa antártica nacional.
VALORES NO ORÇAMENTO 2017 PARA EACF E PESQUISA
R$ 128 milhões
Recursos para reconstrução da EACF em 2017
R$ 1,86 milhão
Verba do CNPq para pesquisa antártica em 2017
A realização de “atividade de pesquisa substancial”, vale dizer, estudos em quantidade e qualidade significativas, é uma precondição para qualquer país figurar entre os membros consultivos, com direito a voto, do Tratado Antártico de 1959. Hoje há 29 nações nessa condição e 24 outras na de observadores.
Quando ficar pronta, o que deve ocorrer em março de 2018, a nova base se elevará sobre a bela enseada na baía do Almirantado –mesmo local em que a antiga estação pegou fogo, em 2012– com dois longos blocos de metal conectados. O premiado projeto do escritório curitibano Estúdio 41 foi descrito pela BBC, em janeiro, como “futurista, de arregalar os olhos”.
O bloco superior, mais curto e mais próximo do imponente morro da Cruz, abrigará camarotes para 64 pessoas –até cinco dezenas de pesquisadores, no verão antártico, e os militares da Marinha que compõem o chamado grupo base e permanecem o ano todo na estação. Nele também ficarão áreas de serviço, como cozinha e refeitório.
A parte de baixo, mais alongada, se reparte em três áreas principais. Na primeira ficarão 14 laboratórios (há outros três módulos externos para pesquisas). No meio, as áreas de convivência, com biblioteca, auditório, sala de videoconferência e local para uso compartilhado de computadores (“lan house”). Na outra ponta estará um grupo dedicado a operação e manutenção, como garagem e paiol.
A julgar pelos esboços do interior da nova base brasileira feitos pelo Estúdio 41, os espaços amplos e iluminados projetarão a EACF a anos-luz de distância das tradicionais estações antárticas. Na primeira metade do século 20, elas não eram muito mais que cabanas de madeira ou de pedra, quase tão rústicas quanto refúgios de caçadores de baleias e focas, os pioneiros da Antártida.
Após 34 anos de confinamento em contêineres com poucas e minúsculas janelas, o Programa Antártico Brasileiro passará a hospedar-se no que caberia comparar a um hotel de luxo, tendo em conta que se trata de um dos locais mais inóspitos do planeta. Ninguém em sã consciência construiria nada ali, a não ser que a recompensa fosse muito boa.
Apesar das dificuldades iniciais dos operários da Ceiec, sua disciplina e perseverança possibilitarão à estatal chinesa acrescentar um chamativo cartão de visita ao seu portfólio, além dos US$ 99,6 milhões. Protocolares, o gerente Jiao Yang e o consultor Wei Wenliang (um veterano em operações polares), que lideram o grupo, mencionam também àFolhao estreitamento de relações entre Brasil e China, agora no continente antártico.
A potência asiática já construiu quatro estações próprias, a partir de 1985: Grande Muralha (na mesma ilha Rei George), Zhongshan, Kunlun e Taishan. A última, que tem a aparência de um disco voador, foi construída em apenas 45 dias no verão austral 2013–14 –mais um indício de que os chineses poderão, sim, entregar a base brasileira no prazo.
A dificuldade maior de construir na área da península Antártica não é tanto o frio. No verão, única época em que há luz e condições meteorológicas para trabalhar em ambiente externo– as temperaturas não diferem muito de regiões onde também neva e se constroem cidades inteiras, como o norte da Europa.
O pior está na distância de qualquer área civilizada e na janela curta de construção, de novembro a março. Um enorme ônus logístico. Em tal ambiente, não há como improvisar.
“Tudo tem de ser projetado considerando o sistema de transporte disponível [navios]”, esclarece o contra-almirante Flávio Augusto Viana da Rocha. “E nada pode ser ‘esquecido’ ou ‘dar errado’ durante a obra.”
Consequência: as estações precisam ser pré-fabricadas e levadas aos pedaços de navio até o local na Antártida onde serão montadas. Assim será com a nova EACF. Ela segue a tendência das últimas décadas de construir prédios aerodinâmicos sobre pilares, para permitir que os fortes ventos e as nevascas tenham passagem livre. Sem isso, a neve tende a se acumular em volta, com risco de bloquear a edificação.
“O desafio foi grande, pelo fato de que, em modo geral, nossas técnicas construtivas ainda são rudimentares, quase que artesanais”, conta João Gabriel Moura Rosa Cordeiro, do Estúdio 41.
“O processo de pesquisa de materiais foi intenso. A começar pela envoltória, a pele do edifício, que, além de resistir aos fortes ventos, tem de enfrentar a alta salinidade e baixa umidade da Antártica.”
Decidiu-se por um painel de uma liga de aço mais resistente à maresia, com duas chapas formando um sanduíche de 22 cm de espessura com recheio de material isolante em poliuretano. A escolha foi feita após consultoria com os especialistas alemães Torsten Hass –que conduziu em 2013 a construção da arrojada estação indiana Bharati– e Stephan Heinlein.
Não serão utilizados na EACF, porém, exageros de alta tecnologia como os pilares hidráulicos da estação alemã Neumayer 3. A base germânica tem 16 desses mecanismos para elevar o prédio todo, de dois andares, até 1 m por vez, em caso de bloqueio pela neve.
Na enseada Martel, onde fica a base brasileira, acumula-se muita neve no inverno, é verdade. Mas, no verão, a maior parte dela derrete e expõe um terreno dominado por cascalho e musgo sobre o qual se aquecem focas e elefantes marinhos ou fazem ninhos os pinguins e skuas.
O recurso a energias limpas também vem se impondo na arquitetura antártica com as últimas estações construídas. O Tratado Antártico, de 1959, estipula que o continente está reservado para pesquisas científicas, fins pacíficos e preservação ambiental, o que resulta em restrições crescentes para atividades poluidoras.
A base brasileira, por exemplo, terá turbinas eólicas e painéis fotovoltaicos para vento e luz solar na geração de eletricidade. Eles estarão conectados a uma rede inteligente (“smart grid”) que acionará geradores a diesel apenas na medida necessária para fornecer a demanda de energia que as fontes limpas não puderem suprir.
Já a estação belga Princesa Elizabeth, inaugurada em 2009, foi pioneira no conceito de emissões zero. Como a nova EACF, usa as fontes renováveis eólica e solar, mas prescinde de geradores e aquecedores. Com insulação reforçada em várias camadas, foi projetada para conservar a temperatura interna apenas com o calor gerado por aparelhos elétricos e atividades humanas.
A grande vedete arquitetônica do continente austral é a estação britânica Halley 6. Os seis módulos azuis em fileira, intercalados com um em vermelho vivo, se apoiam em grossas pernas tubulares com esquis de 8 m nas pontas, evocando um surreal desfile de paquidermes tecnológicos. Ela foi montada em 2012 para ser móvel e já enfrenta a necessidade de deslocar-se.
Cada pedaço pode ser desconectado do seguinte e arrastado por tratores. Não por boniteza, mas por precisão, conforme o dito: a Halley não se encontra em terra firme, e sim numa plataforma de gelo sobre o oceano, batizada Brunt. Apesar dos 150 m de espessura, banquisas como essa podem sofrer rachaduras e originar gigantescos icebergs.
Havia uma fenda assim perto do local, mas dormente. Logo após a construção ela voltou a movimentar-se. A atividade do gelo deflagrou uma operação para mover a base toda para um ponto 23 km mais perto do continente.
Em outubro do ano passado, outro buraco se abriu a 17 km da Halley 6, fato que levou glaciologistas a declarar a plataforma imprevisivelmente instável. Por via das dúvidas, o Serviço Antártico Britânico (BAS) decidiu evacuar no mês que vem toda a tripulação da base, que ficará vazia pela primeira vez no inverno.
Brunt não é a única plataforma insegura na Antártida. Na segunda quinzena de dezembro, registrou-se um avanço súbito de 18km numa fenda de Larsen, a leste da península Antártica.
Ela agora está conectada ao continente por apenas 20 km de gelo e fadada a produzir em breve um iceberg com o triplo da área do município de São Paulo, Larsen C. É certo que reeditará o espetacular desprendimento da Larsen B em 2002.
O suspeito de sempre por toda essa atividade é o aquecimento global. Plataformas despedaçadas não contribuem para elevar o nível dos oceanos, pois já se encontravam sobre a água, mas nem por isso sua desestabilização deixa de preocupar. Elas funcionam como freios para geleiras do continente que, desimpedidas, podem acelerar-se em sua marcha para o mar e, estas sim, fazê-lo subir.
O ano de 2016 bateu o terceiro recorde consecutivo de temperatura global, deixando 2015 e 2014 para trás como os mais quentes já registrados desde 1880. O gelo marinho em torno da Antártida atingiu seus menores níveis em janeiro de 2017, sinal de que as águas do oceano Austral estão mais quentes. Os efeitos se fazem sentir também na enseada Martel, onde fica a estação brasileira.
“[Estamos vivendo] um verão incrivelmente quente, e o inverno [também foi] muito quente”, conta Diego Castillo Franco, doutorando colombiano do Instituto Oceanográfico da USP. Veterano de expedições antárticas, ele foi um dos poucos pesquisadores que conseguiu hospedar-se na EACF nesta temporada para coletar amostras na região, uma vez que os alojamentos estavam reservados para abrigar metade da equipe de construtores da empresa Ceiec.
A outra metade ainda permaneceria embarcada no navio Yong Sheng no começo de dezembro, quando a reportagem da Folha visitou a base, até que o alojamento chinês fosse erguido pela primeira turma de trabalhadores, o que ocorreu no final daquele mês. Aí começou a obra propriamente dita da nova EACF, com a colocação em trincheiras dos primeiros dos 1.200 elementos de concreto e aço que formarão as fundações.
Isso tem de acontecer até o final de março, para que os pilares, treliças e módulos habitáveis da nova estação possam enfim ser montados no próximo verão. Isso se não houver novos tropeços no trabalho da Ceiec, pois construir na Antártida, mesmo mais perto do Chile que do polo Sul, não é para amadores.
Os jornalistas Marcelo Leite e Lalo de Almeida viajaram de Punta Arenas à Estação Antártica Comandante Ferraz a convite da Marinha do Brasil.
FONTE: Folha de São Paulo