Átomos para a Paz na Coreia

Por Leonam Guimarães

Em artigo recente, abordamos a história da proliferação nuclear, concluindo que a busca pela posse de armas nucleares é muito mais uma resposta a ameaças percebidas do que a preparação para uma agressão. A política externa das grandes potências, entretanto, insiste em considerar que elas são desenvolvidas com intuito de ameaçar. Considerando que a Coreia do Norte é, hoje, a ameaça mais visível, aprofundaremos aqui este caso.

O espetacular surto de desenvolvimento que levou a Coreia do Sul de uma condição de país mais pobre do que o Brasil e do que a própria Coreia do Norte na década de 60, a país desenvolvido hoje, certamente fez nascer no seu vizinho do Norte uma percepção de ameaça, amplificada pela decadência que ele sofreu ao final do mesmo período. A Queda do Muro de Berlin, em 1989, induzia uma quase certeza de que o “muro” representado pela Zona Desmilitarizada no paralelo 38 cairia em seguida, por razões bastante semelhantes.

Essa ameaça levou o regime de Pyongyang a promover um programa de desenvolvimento de armas nucleares que foi interrompido em 21 de outubro de 1994, após o “Agreed Framework” firmado com o governo Clinton ao final de seu mandato, o qual foi sucedido pelo governo Bush. Esse acordo previa uma série de obrigações e compensações à Coreia do Norte, dentre as quais a construção de duas usinas nucleares PWR para geração de energia elétrica, em troca do descomissionamento de reator plutonígeno grafite-gás de Yongbyon.

O acordo, entretanto, não foi plenamente cumprido pelos americanos e sul-coreanos e, como consequência, a Coreia do Norte retirou-se do TNP em 2003 e, em 9 de outubro de 2006, anunciou ter realizado com êxito seu primeiro teste nuclear. Esse teste, segundo análises da inteligência ocidental, não teve pleno êxito e, em 25 de maio de 2009, foi realizado um segundo teste com sucesso. De lá para cá a situação somente se degradou.

Ao fracasso do “Agreed Framework” podem ser imputadas várias razões. Entretanto, certamente muito contribuiu o interesse que americanos e sul-coreanos têm na unificação da península, nos mesmos moldes da Alemanha, fazendo com que qualquer auxílio político e econômico seja visto como uma contribuição à continuidade do regime comunista do Norte, o que seria contrário ao objetivo maior de uma Coreia unida sob a égide do sul. Tal unificação, entretanto, muito desagrada a China, pois passaria a ter um aliado dos EUA na sua fronteira terrestre.

O regime norte-coreano parece estar desde sempre envolvido em um processo de extorsão de ajuda e reconhecimento externo, visando sua perpetuação num contexto político, econômico e social que lhe é totalmente desfavorável. É claro que a “dinastia Kim” sabe que o uso de suas armas, de eficácia duvidosa, representaria o fim do regime, exatamente o que ela não quer.

Uma política viável em relação a isso seria reduzir o nível de ameaça e esperar enquanto ele continua tentando obter contrapartidas políticas e econômicas da comunidade internacional, em especial os EUA e a Coreia do Sul. Isso certamente é melhor do que conduzir políticas de sanções e pressão que somente aumentam a grande miséria em que vive o povo da Coreia do Norte, com pouco ou nenhum efeito sobre seu regime.

Recentemente, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, disse que “nas circunstâncias corretas”, ele se encontraria com o presidente da Coreia do Norte, Kim Jong Um, que continua a aumentar o arsenal nuclear de seu país. Com a eleição na Coreia do Sul do presidente Moon Jae-in, que fez campanha propondo a retomada das negociações entre as duas Coreias, eles podem criar essas circunstâncias.

Kim Jong Un afirmou repetidamente que ele quer o mesmo que os líderes anteriores da Coreia do Norte, seu pai, Kim Jong Il e seu avô Kim Il Sung, queriam: a certeza de que a Coreia do Norte não será invadida novamente e fontes de geração elétrica para o desenvolvimento econômico de seu país, que substituam a capacidade hidrelétrica instalada que foi destruída pelos bombardeios estratégicos maciços nos primeiros anos da Guerra da Coreia, travada de 1950 a 1953. Estas foram as duas exigências que a Coreia do Norte fez, e a administração Clinton concordou, no contexto do “Agreed Framework” de 1994.

O presidente da Coreia do Norte está plenamente consciente de que atacar os Estados Unidos seria equivalente ao suicídio. Em 2000, como o presidente Kim Jong Il disse a um editor de jornal sul-coreano, “Nossos mísseis não podem chegar aos Estados Unidos e, se eu os lançar, os EUA disparariam mil mísseis de volta e não sobreviveríamos. Eu sei muito bem. Mas tenho que demonstrar que temos nossos mísseis. Eu estou fazendo isso porque só então os Estados Unidos vão falar comigo”. Pouco depois, durante uma visita à Coreia do Norte da Secretária de Estado Madeleine Albright, ele concordou com uma moratória sobre a construção de mísseis.

O acordo “energia por armas” de 1994 funcionou até os atentados terroristas de 11 de setembro, após o qual o Presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, afirmou que a Coreia do Norte fazia parte, junto ao Iraque e o Irã, do chamado “eixo do mal”. Dois anos depois, os Estados Unidos invadiram o Iraque. Os líderes norte-coreanos concluíram bastante racionalmente que o erro do Iraque não foi buscar a arma, mas sim terem fracassado em construí-la. Eles realizaram seu primeiro teste de armas nucleares três anos depois, em 2006. A busca contínua de Washington por uma estratégia fracassada faz pensar que não seria Pyongyang o ator irracional deste “drama”.

O governo Obama continuou em grande parte a mesma abordagem “linha dura” da administração Bush para a Coreia do Norte, com resultados ainda piores. Não só a Coreia do Norte está mais perto do que nunca para produzir um míssil balístico intercontinental que pode atingir os Estados Unidos, mas também seus habitantes continuam atolados na pobreza, em parte devido à falta de eletricidade abundante e confiável. As imagens de satélite mostram uma Coreia do Sul brilhantemente iluminada, um terço da energia para isso vindo de suas usinas nucleares, ao lado de uma Coreia do Norte quase inteiramente escura.

Imagem de satélite da Península Coreana à noite. A disparidade dos níveis de iluminação é um indicador da diferença em desenvolvimento energético e econômico entre a Coreia do Norte e a do Sul

Ameaçar a Coreia do Norte com ação militar só aprofunda a convicção de seus líderes de que eles precisam de uma capacidade de dissuasão nuclear considerável para se protegerem. Em contrapartida, prometendo não atacar e ajudar a Coreia do Norte a obter acesso à energia nuclear em troca de limitar seu arsenal nuclear e seu desenvolvimento de mísseis criaria forte incentivo para Pyongyang parar de ameaçar seus vizinhos e para que deixar de exportar mísseis e outros materiais nucleares e militares para outros países. Essa proposta foi feita por Richard Rhodes e Michael Shellenberger em artigo na revista “Foreign Affairs”.

O engajamento construtivo é fundamental para alcançar a paz na península coreana e, eventualmente, a liberdade para o povo da Coreia do Norte. O fracasso dos Estados Unidos em imporem a democracia no Afeganistão e no Iraque contrasta claramente com a transição gradual, de várias décadas, das ditaduras para a democracia em muitas outras nações do mundo, da Europa à América Latina e a grande parte da Ásia. Na verdade, não existe nenhum mistério sobre a forma como uma mudança de regime pacífica e gradual ocorre. A prosperidade crescente aumenta as demandas populares por liberdade, inviabilizando a permanência do poder autoritário.

A própria Coreia do Sul é o melhor exemplo: mesmo que realizasse eleições regulares, este país era efetivamente uma ditadura militar até 1987 quando, por referendo popular, foi promulgada uma nova Constituição que permitiu eleições diretas, inclusive para Presidente. Entre 1980 e 1990, sua renda per capita quase quadruplicou, de US$ 1.778 para US$ 6.642.

Os que procuram uma solução militar para o problema coreano não são os únicos equivocados. Os que se opõem à energia nuclear também o são, igualmente. Desde o governo de Carter, os EUA procuram restringir o acesso à energia nuclear pelas nações menos desenvolvidas e punir nações como Índia e Paquistão que adquiriram a arma nuclear depois que o Tratado de Não-proliferação Nuclear (NPT) foi ratificado, bloqueando os esforços para ampliar sua geração elétrica nuclear. Os EUA têm procurado evitar que as nações, mesmo aquelas que já se tornaram Estados com armas nucleares, reprocessem o combustível nuclear usado porque temem que o plutônio separado possa ser usado para armas, mesmo sabendo-se que o TNP atribui explicitamente aos seus signatários o direito de fazê-lo e que o plutônio extraído do combustível usado de reatores de potência a água leve não seja utilizável para o uso em armas.

O “Agreed Framework” de 1994 estava alinhado com a visão do discurso “Átomos para a Paz” que o presidente dos Estados Unidos Dwight Eisenhower fez nas Nações Unidas em 1953, cinco meses após o fim da Guerra da Coreia. Eisenhower, um General profundamente empenhado em evitar que as condições que levaram à Segunda Guerra Mundial se repetissem, pediu que o desenvolvimento da energia nuclear fosse promovido para que fornecesse “abundante energia elétrica nas áreas do mundo famintas por energia”. Trabalhando através da Agência Internacional de Energia Atômica das Nações Unidas (AIEA), os Estados Unidos forneceram reatores de pesquisa, e treinamento para usá-los, a múltiplos países, Brasil incluso, mantendo salvaguardas sobre materiais nucleares sensíveis, com emprego em armas.

Dada a atual retórica belicosa do governo Trump em relação à Coreia do Norte, abrir negociações neste sentido pode parecer improvável. No entanto, este mesmo governo defende o uso pacífico da energia nuclear num contexto em que essa indústria nos EUA está atualmente lutando pela sobrevivência contra energias renováveis subsidiadas e gás natural barato.

Um acordo “Átomos para Paz” com a Coreia do Norte poderia contribuir significativamente para a redução da ameaça de um conflito nuclear. Por meio de conversações e acordos sobre limites quantitativos às armas nucleares estratégicas, Estados Unidos e Rússia reduziram o número total de ogivas nucleares operacionais de 30 mil no final da década de 1960 para 1.500 hoje. Estima-se que mais de 30 nações possuem a capacidade técnica para desenvolver armas nucleares. Apenas nove escolheram fazê-lo. Em suma, há mais de 70 anos, as nações têm evitado com sucesso o uso de átomos para a guerra. O que está faltando agora é a expansão dos átomos para a paz. Isto não só na península coreana, mas em todo o mundo.

A mudança climática e uma terceira guerra mundial são as duas principais ameaças que pairam sobre a humanidade hoje. A energia nuclear está intimamente ligada a essas duas ameaças de forma paradoxal: na primeira como solução e na segunda como problema. Somente o efetivo engajamento dos políticos, abolindo as armas nucleares e valorizando a energia nuclear para fins pacíficos, criarão condições para paz e prosperidade duradoura.

FONTE: Ceiri Newspaper

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