Por Monica Gugliano
Assim como na canção, as águas de março estão fechando o verão. Mas aqui elas vão congelar. Antes que isso aconteça, os navios zarpam ou, como manda o jargão dos marinheiros, “suspendem” e vão navegando em direção à saída da Baía do Almirantado. Lentamente se desvanecem no horizonte de brumas e neve. Não se pode perder tempo. A tripulação e os pesquisadores precisam sair antes de ser aprisionados pelo gelo. Nem todos vão nos navios. Para quem ficou restou a promessa e a certeza de um longo e solitário inverno. Passarão pelo menos oito meses até que a vida – que já escapou rumo ao Hemisfério Norte – volte a dar sinais neste pedaço de terra isolado no planeta.
Nas coordenadas 62º05’S – 58º24’W, que localizam no mapa a Ilha Rei George, do arquipélago Shetland do Sul, na Antártida, 15 homens da Marinha do Brasil permanecerão na Estação Comandante Ferraz durante 250 dias até a véspera do próximo verão. Eles vão trabalhar para que tudo esteja pronto e – caso a mais otimista das previsões se confirme – a partir de novembro comecem as primeiras obras para a construção da nova base.
“Aqui não temos problemas. Não falta comida nem aquecimento. Não temos contas a pagar nem compras a fazer. O problema é lidar com a vida que ficou lá longe”, explica Quineper, que na estação é chamado de “Doc”, a abreviatura usada em inglês para denominar os “doctors”. Ele é o mais jovem entre os militares que vão hibernar em Ferraz. Nasceu em Pelotas, no interior do Rio Grande do Sul, e tem 33 anos, a mesma idade do Programa Antártico Brasileiro (Proantar).
Ele é casado com uma professora que ficou com a família dela em Cáceres (Mato Grosso), enquanto ele aprimora seus estudos sobre medicina e cuidados de emergência em áreas remotas, especialidade cujas diretrizes são traçadas pela Wilderness Medical Society (WMS), entidade com sede em Salt Lake City (Utah). Tragédias, como o incêndio que em 25 de fevereiro de 2012 destruiu a estação, e resgates nas regiões mais perigosas e isoladas da Terra são a área de ação desses profissionais.
Em novembro, quando Doc e outros militares, cientistas e pesquisadores começaram a chegar à baía, encontraram poucos vestígios da destruição causada pelo incêndio da estação. Três anos depois do incidente, as marcas deixadas pelo fogo vêm sendo apagadas pelo trabalho constante para melhorar as condições da estação. Há marcas, porém, que não somem. As cruzes, fincadas no alto de uma colina, recordam a trágica madrugada em que morreram o suboficial Carlos Alberto Vieira Figueiredo e o primeiro-sargento Roberto Lopes dos Santos.
Além da perda dos companheiros – que tentavam combater o fogo -, elas são um aviso permanente da fragilidade humana nesse lugar. Estimuladas pela velocidade do vento e o ar seco, as chamas consumiram a construção em poucos minutos. “Quando vimos o que havia sobrado dos 28 anos de trabalho na Antártida, ficamos consternados. Não há palavras para descrever”, diz o suboficial Joselito Nascimento de Oliveira, um dos primeiros a chegar à estação depois do incêndio, junto com a equipe que avaliaria a dimensão dos estragos e fecharia as portas do pouco que restara.
Oliveira também foi um dos que voltaram no primeiro verão depois do desastre. Ao lado de outras 200 pessoas, encarou a dureza de recolher os destroços e montar a estação provisória, que funciona até agora. “O trabalho era exaustivo e era doloroso recolher os escombros. Mas eu pensava: um dia de cada vez, vamos pôr tudo abaixo porque nós vamos reconstruir”, conta ele, que operava um dos quatro tratores que auxiliaram na remoção dos entulhos.
A operação para limpar a área foi e é motivo de imenso orgulho entre os que participaram dela ou acompanharam a distância as notícias sobre a “faina”. “Foram removidas 900 toneladas de entulho durante aquele verão”, diz o atual comandante da estação, o capitão de fragata Eduardo da Costa Pereira Junior. O cuidado que o Brasil teve em eliminar tudo o que pudesse contaminar ou interferir no ambiente renderam elogios da comunidade internacional.
Trabalhou-se dia e noite. O ferro retorcido, rasgado pelas chamas dos maçaricos, era carregado em balsas até os porões do cargueiro Germânia. Terminada a coleta dos resíduos, imediatamente começou a reconstrução. Não seria possível erguer uma nova estação. A solução foi instalar Módulos Antárticos Emergenciais (MAE). De fabricação canadense, eles custaram R$ 14 milhões e foram montados no lugar onde estava o heliporto. “Quem não conhece pode pensar que estamos num lugar improvisado. Mas na Antártida não há espaço para improvisos”, explica o comandante.
São 45 módulos, verdes, laranja e brancos, com capacidade para acomodar até 66 pessoas, dispostos em uma área de aproximadamente 940m. Tudo é interligado e neles foram distribuídos seis dormitórios, enfermaria, cozinha, refeitório, escritório e laboratório, além dos sistemas de segurança e comunicação – há internet e telefone.
Treinamentos contra incêndios e outras possíveis ocorrências são constantes. A estação é muito simples, mas eficiente, aconchegante. Tem um ar familiar, de casa. A organização nas áreas coletivas e nos quartos é absoluta. Dos pisos às panelas tudo brilha. E todos – do comandante aos pesquisadores – entram no rodízio das atividades domésticas. Lavar a louça, limpar os banheiros, ajudar na cozinha.
“Quando eu voltar para casa, não vou limpar um banheiro de jeito nenhum”, brinca uma das jovens pesquisadoras. As principais refeições têm horários. Mas é possível comer o que se quiser, na hora em que a fome apertar. Os freezers têm de tudo um pouco. É pegar, preparar e, muito importante, deixar tudo limpinho depois.
No verão, o movimento é grande. A estação está sempre cheia de pesquisadores e visitantes. As entradas e saídas são controladas em um mural. Ninguém deixa os módulos sem escrever ali para onde vai, com quem e quanto tempo pretende demorar. Evita-se ir a qualquer lugar – ainda que próximo – sozinho. A exceção são pequenas voltas pela praia. Ao retornar, no mesmo mural, se escreve a hora da chegada. Ninguém entra nos prédios internos com as botas sujas de lama e as roupas grossas de frio. “São pequenos cuidados que nos ajudam a saber onde todos estão”, diz o comandante.
Mas com a chegada do inverno, do isolamento, o preparo emocional e o treinamento dos 15 homens que ali ficam se tornam decisivos. Eles são voluntários e passam por um rígido processo de seleção na Marinha, para o qual se inscrevem uma média de 450 homens por ano. Os estímulos são, além do aumento no soldo, a experiência e a oportunidade da aventura, conhecer e viver numa região cercada, ainda hoje, de mistérios.
“Os navios vão embora, as bases vizinhas ficam distantes por causa das condições do clima, a neve. Tenho certeza de que não será fácil. Mas é um prêmio estar aqui”, diz o intendente da base, capitão de corveta Leonardo Zampa da Silva, de 35 anos, que é chamado de “Sub”, pois é o segundo na cadeia de comando da estação. Zampa já serviu nas missões de paz no Haiti e no Líbano. Quando a temporada na Antártida acabar, pretende passar um tempo no Brasil, com a mulher, norueguesa, e o filho de 2 anos que estão em Oslo.
O comandante Pereira Junior não tem dúvidas de que todos estarão à altura das condições que vão enfrentar. Mas é dele a responsabilidade de fazer que o “prêmio” não se transforme em castigo. É a segunda vez que ele trabalha em Ferraz. Na primeira, em 2008/2009, percebeu quanto esforço é necessário para manter o moral e a rotina nos longos dias escuros do inverno. “É difícil ficar aqui. Mas, por incrível que pareça, é também doloroso na hora de deixar tudo isso para trás e voltar. O mais importante é o companheirismo”, afirma. Para isso, enfatiza, é necessário abrir mão da rígida hierarquia militar.
Na mesma noite de domingo em que Doc limpava o chão e cantava “Águas de Março”, seus companheiros de jornada preparavam o espírito para encarar os dias que se avizinhavam. Por um longo período, os módulos onde vivem, a estreita faixa de terra que os circunda e ficará coberta de neve, serão o começo e o “fim do caminho”.
FONTE: Valor Econômico