Por Frederico Vitor
“Êeee boiii! Êeee boiii!”. Estes berros não são de um vaqueiro tocando a boiada debaixo do sol escaldante do ensolarado Nordeste do Brasil. Os gritos saem da garganta de um soldado brasileiro em meio a um terreno coberto pelo branco da neve, aos pés das geladas e inóspitas montanhas do Sul da Itália, em dezembro de 1944. Esta é uma das cenas do filme “A Estrada 47”, do diretor brasileiro Vicente Ferraz. Durante a Segunda Guerra Mundial, aproximadamente 25 mil soldados brasileiros cruzaram o Atlântico de navio, adentraram o Mediterrâneo e desembarcaram na Península Itálica para lutar ao lado das Forças Aliadas contra a ocupação nazista.
Nessa época, o país europeu foi palco da disputa entre as tropas da Alemanha nazista do autoritarista Adolf Hitler e das potências aliadas, no caso, os Estados Unidos de Franklin Delano Roosevelt e o Brasil de Getúlio Vargas. O filme, que é uma coprodução entre Brasil, Itália e Portugal, conta a história fictícia de quatro pracinhas, como são chamados os combatentes que formaram a Força Expedicionária Brasileira (FEB). Eles, após sofrerem um ataque que causou pânico coletivo no sopé do Monte Castelo, tentam descer a montanha, mas acabam se perdendo do restante da tropa.
Assim surge a dramática epopeia do soldado Guimarães (vivido pelo ator mineiro Daniel de Oliveira), do Tenente (interpretado por Júlio Andrade), do fascinante Piauí (que ganhou alma por meio do ótimo ator Francisco Gaspar) e do sargento Laurindo (Thogun Teixeira). A jornada começa quando eles se reúnem e precisam decidir entre voltar ao batalhão, correr o risco de enfrentar a corte marcial por deserção ou retornar à posição da noite anterior e enfrentar os perigos de um ataque surpresa dos alemães.
Se junta ao grupo de soldados o jornalista Rui (interpretado por Ivo Canelas), que, ao encontrá-los em um casarão abandonado pelos americanos numa aldeia totalmente vazia, fala sobre um campo minado ativo. Eles conseguem se conectar a um rádio, mas como eram simples operários, lavradores e trabalhadores braçais antes de entrarem no Exército, nenhum deles sabia falar inglês, exceto o repórter Rui, que traduz o que o operador ianque diz no outro lado da linha.
No afã de retornarem à unidade brasileira, envoltos em uma ação de bravura, estes pracinhas, engenheiros de combate especializados em desarmar minas terrestres, decidem limpar a Estrada 47 de vários artefatos explosivos enterrados, para que um comboio americano composto por tanques seguisse viagem rumo a uma ofensiva contra os alemães. Durante a jornada, o grupo encontra o partizano Roberto (interpretado pelo ator italiano Sergio Rubini), que retornou para casa, mas a encontrou vazia juntamente com o cadáver de seu primo ao relento. Ao anoitecer, os brasileiros bem guarnecidos no casarão da família do desertor italiano são confrontados por uma patrulha alemã.
Em desvantagem, os soldados de Hitler não resistem às explosões das granadas e às rajadas desferidas pelas metralhadoras dos combatentes brasileiros e acabam derrotados. Somente o coronel Mayer (vivido pelo ator alemão Richard Sammel) sobrevive à escaramuça. Gravemente ferido, o oficial recebe a clemência dos pracinhas, que em troca do perdão promete levá-los até a Estrada 47 a ser desminada — sob protesto do partizano, que abandona o grupo. Agora na companhia de um prisioneiro, e sem a ajuda de um nativo italiano, os brasileiros seguem a dura e penosa marcha sob um inverno intenso em um terreno acidentado, rodeado de árvores secas e cercado de montanhas encobertas de neve.
Brasil na guerra
O filme em seu desenrolar pode parecer um pouco monótono. Porém, aos olhares mais atentos, descreve várias sutilezas que o enriquecem não só por seu primor técnico, mas também por sua narrativa envolvente. O longa premia a tímida — se comparada aos colossais números de esforços de guerra dos americanos, ingleses e soviéticos —, porém honrosa participação brasileira na Segunda Guerra Mundial, e chama atenção para a entrada brasileira no maior conflito armado do século passado, história esta envolta em várias controvérsias.
Depois de entrar oficialmente na guerra, graças aos ataques de submarinos alemães a navios brasileiros, o Brasil teve pouco tempo de preparação de seus militares para o combate. Vargas tinha prometido aos Estados Unidos cerca de 100 mil homens em armas. Contudo, a realidade de um país rural e atrasado, somado ao pouco tempo de preparação e o baixo nível técnico do exército, não favorecia a formação de tal contingente. Somente 25 mil homens foram arregimentados e enviados à Europa.
O adestramento da FEB ocorreu inicialmente na Vila Militar, no Rio de Janeiro, e seguiu com a chegada do 1º Escalão à Itália, em 16 de julho de 1944. Além do terreno complicado e do clima extremamente frio, os soldados brasileiros tiveram que se adaptar ainda a novos armamentos, equipamentos e uniformes, cedidos pelos americanos, que eram bem diferentes dos que estavam acostumados no Brasil. A missão dos brasileiros foi dividida em duas fases: uma com o lançamento de fortes patrulhas e combates intensos a curta distância; e outra de ataque precedida de intensa preparação de artilharia, apoio de blindados e cortina de fumaça.
A maior façanha militar brasileira no teatro de operações italiano foi a tomada da Vila Montese, ocorrida no dia 14 de abril de 1945. Apesar da vitória sobre a formidável máquina de guerra que era o exército alemão, a batalha foi uma das mais sangrentas da história das forças armadas brasileiras, com mais de quatrocentas baixas. A topografia favorecia o defensor alemão, que ocupava posição dominante no terreno. Outro fator relevante foi a forte e férrea resistência alemã, por causa da importância estratégica da área. A derrota de Hitler para os brasileiros em solo italiano foi importante para o Brasil no aspecto militar e geopolítico. Ao final da guerra, o Brasil adquire nova doutrina militar se nivelando com os melhores exércitos do mundo.
Em 239 dias de ação contínua na Itália, a FEB fez 20.573 prisioneiros alemães, sendo dois generais, 802 oficiais e 19.679 praças. O Brasil perdeu 465 combatentes, recebeu perto de 1,5 mil citações elogiosas de combate e cerca de mil condecorações que atestaram bem o valor combativo da tropa brasileira. O general Sidney Crittemberg, comandante do IV Corpo de Exército Americano na Itália e chefe ao qual a FEB esteve diretamente subordinada, chegou a declarar: “Estou orgulhoso de ter a 1ª Divisão de Infantaria da FEB como parte do IV Corpo na Itália”.
Diante desses fatos de 70 anos atrás, que ainda teimam em passar furtivamente na lembrança coletiva dos brasileiros de hoje, “Estrada 47” resgata decentemente a memória dos soldados anônimos que contribuíram para que mundo seguisse livre da tirania nefasta dos nazistas.
FONTE: Jornal Opção