Por Martin Wolf
Será que a Ucrânia vai transformar-se em uma democracia liberal estável? A resposta é: não sabemos. Sabemos que outros países chegaram ao destino. Mas também sabemos que a democracia baseada no sufrágio universal é planta delicada, especialmente em seus primeiros anos. O que aconteceu com jovens democracias no Egito, Tailândia, Rússia e Ucrânia, por exemplo, ressalta essa verdade. A democracia é delicada por tratar-se de um processo complexo e, em aspectos cruciais, de um jogo antinatural.
Meu ponto de partida é que um governo prestador de contas aos governados é a única forma adequada para pessoas adultas. Todas as outras formas de governo tratam as pessoas como crianças. No passado, quando a maioria das pessoas era analfabeta, tal paternalismo poderia ser justificado. Isso não se sustenta mais. À medida que as populações tornam-se mais informadas, governos que tratam seus povos dessa maneira passam a ser menos aceitáveis. Espero (ou torço para) que, no longo prazo, isso será verdadeiro mesmo para a China.
As evidências são coerentes com esse otimismo. De acordo com o banco de dados da Polity IV, quase 100 países são, atualmente, democracias (mais, ou menos, imperfeitas). Esse número é o dobro do registrado em 1990.
Em 1800, não havia nenhuma democracia. O número de verdadeiras autocracias também vem caindo substancialmente: de cerca de 90 em 1990 para cerca de 20, hoje. Infelizmente, houve um aumento de cerca de 20 para mais de 50 no número de anocracias: regimes cuja governança é altamente instável, ineficaz e corrupta. Tais regimes podem ser autocracias em desintegração ou democracias malsucedidas. Elas também são vulneráveis a surtos de conflito armado ou tomadas de poder à força.
Quais são, então, as bases de uma democracia estável e bem sucedida? Em síntese, democracia exige um conjunto duplo de restrições: entre as pessoas e entre as pessoas e o Estado. Essas restrições apoiam-se em quatro componentes, todos eles necessários.
Em primeiro lugar, as democracias necessitam cidadãos. Cidadãos não são apenas as pessoas que se envolvem na vida pública, embora também elas sejam cidadãos. Acima de tudo, os cidadãos aceitam que sua lealdade para com os processos que compartilham deve prevalecer sobre a lealdade para com seu próprio campo político. Cidadãos compreendem a ideia de “oposição leal”. Cidadãos aceitam a legitimidade de governos comandados por, e até mesmo para, seus oponentes, confiantes em que chegará o momento em que terão sua vez no poder. Isso implica que os cidadãos não usem o processo político para destruir a capacidade de seus adversários de atuar em paz. Eles aceitam a legitimidade de dissensão e até mesmo de protestos veementes. Eles descartam apenas o uso da força. Claro, alguns adversários são inaceitáveis, acima de tudo aqueles que rejeitam a legitimidade do processo democrático. Um país com um contingente insuficiente desses cidadãos permanece constantemente à beira de uma ruptura ou mesmo de guerra civil.
Em segundo lugar, as democracias necessitam guardiões, um termo usado pela falecida Jane Jacobs em seu soberbo livro “Systems of Survival” (sistemas de sobrevivência). Guardiões ocupam cargos de poder político, burocrático, legal ou militar. O que os torna guardiões, e não bandidos, é que usam suas posições não para obter vantagens materiais pessoais, mas de acordo com regras objetivas ou em favor de uma noção de bem comum. Viktor Yanukovich, o deposto presidente da Ucrânia, é um bom exemplo de antítese a isso, como se pode imaginar. No entanto, seus motivos para buscar o poder foram também os tradicionais. Ao longo da história, poder e riqueza foram indissolúveis. A ideia de que os dois deveriam ser separados foi revolucionária e, em muitos países, ainda é assim.
Yanukovich acreditou, em vez disso, em seu direito de saquear e de disparar armas. Isso não é base para legitimidade democrática.
Em terceiro lugar, as democracias necessitam mercados. Evidentemente, não empregamos o termo mercados no sentido de uso do poder do Estado para transformar riqueza pública em riqueza privada, como aconteceu em tantos países da ex-União Soviética. Empresários que constroem suas fortunas baseados em tal roubo não são mais legítimos do que os políticos que os ajudaram.
Mercados que funcionem adequadamente apoiados em um Estado em funcionamento apropriado constituem as bases cruciais de democracia estável. Em primeiro lugar, eles asseguram sustentação à prosperidade. Uma sociedade capaz de garantir um nível de vida decente e razoavelmente seguro será também, provavelmente, estável. Assim seria uma sociedade baseada na confiança de cada cidadão em seus concidadãos e no futuro econômico de cada cidadão.
Em segundo lugar, os mercados enfraquecem o vínculo entre prosperidade e poder. Eles tornam possível que as pessoas considerem os resultados de eleições como importantes, mas não como questões de vida ou morte para si ou para suas famílias. Isso baixa a temperatura política do insuportável para o suportável.
Finalmente, para que todos esses sistemas complexos, porém essenciais, sejam eficazes, as democracias necessitam leis aceitas, especialmente as constitucionais (mesmo que por vezes não escritas). As leis, votadas e aplicadas de acordo com procedimentos aceitos, moldam as regras do jogo político, social e econômico. Um país onde não vigora o Estado de Direito permanece constantemente à beira de caos ou tirania – esse tem sido o infeliz destino da Rússia ao longo dos séculos.
Democracia é, portanto, muito mais do que votar.
Certamente não se trata de “um adulto, um voto, uma vez”. Não se trata também de “um adulto, um voto manipulado, muitas vezes”. Trata-se de uma complexa teia de direitos, obrigações, poderes e limitações. Democracia é a expressão política de indivíduos livres atuando em conjunto – ou não é nada. Aqueles que vencem uma eleição não tem o direito de fazer o que quiserem. Isso não é uma democracia verdadeira, mas uma ditadura eleita.
Podem agente externos ajudar povos a trilhar o caminho para a democracia? Sim, podem. O útil papel econômico e político da UE na Europa Central e Oriental comprovou isso. Podem ocorrer retrocessos? Sim, a Hungria está mostrando exatamente isso. Podem maus vizinhos arruinar as esperanças? Sim, isso também é possível.
Com efeito, já vimos muitas fracassos ao longo do caminho para a democracia. O Egito é um exemplo saliente; no país, podem ter inexistido muitas das condições necessárias para o sucesso. Hoje, podemos ver que a Ucrânia criou sua terceira chance desde 1991. Mas o país vai precisar de uma grande dose de ajuda. O Ocidente tem prestado tal ajuda a outros. Mas o próprio país também precisará avançar na adoção de regras radicalmente novas para o jogo social: a nação precisa gerar verdadeiros cidadãos, guardiões honestos, mercados adequados e leis justas. Será possível uma
mudança tão revolucionária? Eu não sei. Mas de uma coisa estou certo. Vale muito a pena tentar. (Tradução de Sergio Blum)
Martin Wolf é editor e principal analista econômico do FT.
FONTE: Valor Econômico