A China não aceita mais que os Estados Unidos sejam a potência naval dominante no Pacífico Asiático
A retomada dos patrulhamentos com base no princípio da liberdade de navegação ocorrerá depois de uma visita a Washington do presidente chinês Xi Jinping, durante a qual não foram aplacados os receios dos americanos em relação à construção agressiva de ilhas a que a potência asiática vem se dedicando no Mar do Sul da China.
Os chineses protestarão, mas, por ora, é tudo que farão. As manobras são uma clara afirmação do poderio naval dos EUA, que permanece supremo, embora não mais inconteste. A própria noção de “potência naval” traz consigo um ar de século 19, evocando o célebre almirante britânico Nelson, as ambições imperiais e a diplomacia de boca de canhão. No entanto, o grande proponente da importância do poderio naval, o estrategista americano Alfred Thayer Mahan, que morreu em 1914, ainda hoje é lido com atenção por líderes políticos e assessores militares. “O controle dos mares”, escreveu ele em 1890, “por meio do comércio marítimo e da supremacia naval, é sinônimo de influência predominante no mundo, pois, por maior que seja a riqueza de uma nação, nada contribui tanto quanto o mar para as necessárias trocas internacionais.”
O domínio dos mares, com base tanto na força naval quanto na influência “soft”, associada ao comércio internacional e à exploração dos recursos oceânicos, continua fundamental. Os bits e os bytes movem-se digitalmente – e as pessoas viajam pelo ar. Mas a maior parte das mercadorias físicas continua a ser transportada pelo mar, correspondendo, em peso e volume, a 90% do comércio internacional. Ocorre que a liberdade e a conectividade dos mares não são inevitáveis. Dependem de um sistema internacional que tem sua base em normas, que é respeitado, em seu próprio benefício, por quase todos os países do mundo, mas que, nas últimas décadas, só os EUA, em colaboração com seus aliados mais próximos, têm instrumentos e disposição para policiar.
Precedente
Desde a 2.ª Guerra, o papel hegemônico que os EUA desempenham na garantia do acesso da comunidade internacional aos recursos marítimos globais só foi desafiado uma vez e, mesmo assim, por curto período de tempo. Nos anos 70, a União Soviética investiu na construção de uma força naval fabulosa, mas o custo foi tão alto que alguns historiadores incluem a iniciativa entre os fatores que, duas décadas depois, contribuíram para o colapso do sistema soviético. Quando terminou a Guerra Fria, a maior parte dessa frota foi abandonada em bases navais no Ártico e lá permaneceu acumulando ferrugem.
É possível que a situação esteja mudando. Os russos comemoraram com escarcéu o lançamento de 26 mísseis de cruzeiro, disparados por navios no Mar Cáspio, contra alvos na Síria, a Rússia nega que, como disseram os EUA, alguns deles tenham caído no Irã. O presidente russo, Vladimir Putin, não perdeu a oportunidade de fazer propaganda. “Uma coisa eram as conjecturas que os especialistas faziam sobre a possibilidade de que a Rússia tivesse essas armas. Outra coisa é eles terem diante dos olhos, pela primeira vez, a comprovação de que elas existem.”
Os responsáveis pelo planejamento militar ocidental agora têm de se haver com o fato de que a Rússia é capaz de atacar boa parte da Europa com mísseis de cruzeiro de baixa altitude, lançados de suas próprias águas. É a China, porém, que representa, de longe, o desafio mais sério. Da frota modesta e puramente costeira que tinham no início, os chineses partiram para a constituição de uma força naval respeitável em seus “mares próximos”, ou seja, a região que se estende do litoral do país até a linha imaginária formada pela primeira cadeia de ilhas que vai do Japão às Filipinas.
Agora, os chineses a estão transformando em algo ainda mais ambicioso. Nos últimos dez anos, as manobras de longo curso da Marinha do Exército de Libertação Popular (MELP) tornaram-se mais frequentes e tecnicamente exigentes. Além de manter uma flotilha contra piratas permanente no Oceano Índico, a China realiza exercícios navais em pontos afastados do Pacífico Ocidental. No mês passado, depois de um exercício conjunto envolvendo forças militares russas e chinesas, um grupo de cinco navios da MELP passou perto das ilhas Aleutas, nas proximidades do Alasca.
Em maio, a China divulgou um documento militar, formalizando a incorporação do que os chineses chamam de “proteção de mares abertos” ao papel da MELP na “defesa em alto mar”. Uma estratégia naval antes voltada prioritariamente para o controle das águas territoriais do próprio país, agora enfatiza a crescente influência econômica e diplomática da China. A primazia que os chineses conferiam a suas forças terrestres é coisa do passado.
“É preciso abandonar o entendimento tradicional de que a terra é mais importante que o mar. Trata-se de conferir grande importância à gestão dos mares e dos oceanos, assim como à proteção de direitos e interesses marítimos. Cabe à China constituir uma força naval moderna, que esteja à altura da preservação de sua segurança nacional.”
Nas preocupações marítimas do governo chinês, Taiwan ainda ocupa posição central. A China quer desenvolver não só os meios para recuperar – pelo uso da força militar, se necessário – sua renegada província, como também impedir que os maiores protetores de Taiwan, os Estados Unidos, venham em seu socorro. Os chineses não esqueceram a humilhação sofrida em 1996, quando os Estados Unidos enviaram para a região dois porta aviões, com suas respectivas flotilhas, um deles passando pelo estreito de Taiwan, a fim de deter a realização de testes de mísseis com que os chineses pretendiam intimidar o governo de Taipé. O então secretário de Defesa dos EUA, William Perry, vangloriou-se de que, embora a China fosse uma grande potência militar, “a potência militar mais forte no Pacífico Ocidental são os Estados Unidos”.
Esforços
A China está determinada a alterar esse equilíbrio de forças. O país investiu pesadamente em todo tipo de recurso, de mísseis terra-mar a submarinos, de modernas patrulhas marítimas a aviões de caça, com o intuito de manter os Estados Unidos mais além da primeira e, futuramente, da segunda cadeia de ilhas, que se estende do Japão à Indonésia. A China também quer ser capaz de patrulhar os pontos de estrangulamento que dão acesso ao Oceano Índico, por onde passa a maior parte de suas importações de petróleo. Aproximadamente 40% dos petroleiros com destino à China atravessam inicialmente o estreito de Ormuz e mais de 80% chegam ao país pelo estreito de Malaca.
Entre as metas que o governo chinês parece ter estabelecido estão a proteção às vias marítimas economicamente vitais, a constituição de uma presença dominante nos Mares do Sul e do Leste e a capacidade de intervir em qualquer lugar onde sua crescente presença externa, tanto termos de investimentos quanto de pessoas, esteja sob ameaça.
Em agosto, o Pentágono anunciou uma nova Estratégia de Segurança Marítima para o Pacífico Asiático. São três os objetivos prioritários: “garantir a liberdade dos mares, deter conflitos, assim como intimidações e o uso da força e promover a adesão à lei e aos padrões internacionais”. O documento confirma que os EUA estão cumprindo seu cronograma de redistribuição de recursos militares, que inclui o deslocamento de pelo menos 60% das forças navais e aéreas do país para a região do Pacífico Asiático até 2020, conforme anunciado em 2012.
O secretário da Marinha dos EUA, Ray Mabus, solicitou ao Congresso em Washington um aumento de 8% em seu orçamento, elevando-o para US$ 161 bilhões no próximo ano fiscal. A ideia é aumentar a frota de 273 para um total de 300 navios. Alguns republicanos dizem que 350 é um número mais apropriado.
É justificada a preocupação dos americanos?
O caminho que a China vem trilhando para se tornar uma potência marítima mundial difere um pouco do adotado pela União Soviética em seu grande período de expansão naval. Além de operar uma poderosa frota de submarinos – cujo objetivo principal era viabilizar ataques nucleares estratégicos e impedir que reforços americanos atravessassem o Atlântico para socorrera Europa, a Marinha soviética tinha função sobretudo simbólica, comprovando o status de grande potência da União Soviética e estendendo sua influência pelos quatro cantos do planeta com missões de “presença”, destinadas a impressionar os aliados e dissuadir os inimigos.
Jogos de poder
Isso também é importante para a China. Um elemento central naquilo que o presidente Xi chama de “sonho chinês” é a transformação do país numa potência militar capaz de fazer bonito no cenário mundial. Quando grandes navios de guerra realizam exercícios ou chegam a um porto distante, podem ser utilizados como instrumentos de influência e coerção. É compreensível que um país com o tamanho, a história e o peso econômico da China queira ter um pouco disso. Tampouco admira que os chineses queiram impedir que um possível adversário – ou seja, os EUA – opere impunemente nas proximidades de sua costa.
Para os países que contam com a ação dos EUA para fazer valer as normas sobre as quais repousam a ordem internacional e a liberdade dos mares, o problema com a ascensão da China como potência naval é seu comportamento e sua localização geográfica. Rotas marítimas vitais para a economia mundial passam pelo Oceano Índico e pelos Mares do Sul e do Leste da China. Oito dos dez portos comerciais mais movimentados do planeta ficam na região. Dois terços dos carregamentos de petróleo cruzam o Oceano Índico a caminho do Pacífico, com 15 milhões de barris passando diariamente pelo estreito de Malaca. Quase 30% do comércio marítimo atravessa o Mar do Sul da China, sendo que US$ 1,2 trilhão tem como destino os EUA. Esse mar é responsável por mais de 10% da pesca mundial – e acredita-se que em seu subsolo escondam-se reservas de petróleo e gás natural.
Grande parte dessa região está em litígio e o maior e mais agressivo litigante é justamente a China. No Mar do Sul, as disputas territoriais em que os chineses estão envolvidos incluem as ilhas Paracel (com Taiwan e Vietnã), as Spratly (com Taiwan, Vietnã, Filipinas, Malásia e Brunei) e o atol de Scarborough (com Filipinas e Taiwan).
Na área demarcada pela chamada linha dos nove traços, os chineses reivindicam, em termos um tanto vagos, soberania sobre mais de 90% do Mar do Sul da China.
A reivindicação foi herdada do governo do Kuomintang, que se refugiou em Taiwan em 1949. O que nunca ficou claro é se as pretensões chinesas dizem respeito apenas a ilhas e recifes, ou se abrangem todas as águas da região. No Mar do Leste, a disputa com o Japão em torno das ilhas Senkaku, controladas pelos japoneses, continua suscitando escaramuças verbais, muito embora o contorno periódico das ilhas por embarcações das guardas costeiras de ambos os países tenha, nos últimos tempos, um caráter mais ritual do que propriamente bélico.
Distância estratégica
Os americanos não se posicionam em relação a essas disputas, limitando-se a afirmar que elas devem ser resolvidas por meio de arbitragem internacional, e não do uso da força, e todas as reivindicações de soberania devem se referir a extensões naturais de terra. Ocorre que a China tem usado seu crescente poderio naval de maneira coercitiva, realizando patrulhas invasivas, infiltrando-se nas águas de países com os quais tem disputas e, mais recentemente, realizando obras para criar cinco ilhas artificiais onde antes só haviam formações rochosas submersas – para as quais, de acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, não se aplica o conceito das 12 milhas de águas territoriais.
Essas ilhas estão sendo equipadas como postos avançados de escuta e em três delas estão sendo construídos hangares e pistas de pouso, o que significa que elas podem ser rapidamente utilizadas com fins militares.
A China não é o primeiro país a construir na área. Mas, em menos de dois anos, fez surgir das águas uma extensão artificial de terra quase 20 vezes maior do que fizeram, somados, nos últimos 40 anos, os outros países que têm ambições na área.
Os EUA não enfrentariam dificuldades para neutralizar tais bases, mas, como é impraticável recorrer à guerra, elas conferem ao poderio militar dos chineses alcance muito maior do que suas forças tinham até agora. Não admira que a assessora de segurança nacional de Washington, Susan Rice, tenha dito recentemente que forças americanas irão “navegar, voar e operar onde quer que o direito internacional permita” e as tais patrulhas com base na “liberdade de navegação” seriam retomadas.
Expansão
O documento do Pentágono observa que a MELP tornou-se a maior Marinha da Ásia, com mais de 300 navios de guerra, submarinos, embarcações anfíbias e barcos de patrulha. Juntos, Indonésia, Japão, Malásia, Filipinas e Vietnã conseguem reunir somente uns 200 navios, muitos deles mais antigos e menos potentes que os chineses. O predomínio chinês não é menos formidável no tocante a embarcações utilizadas em operações de patrulha: a China tem 205 embarcações desse tipo, frente às 147 operadas pelos outros cinco países. São esses barcos que os chineses frequentemente usam quando querem deixar claras suas pretensões territoriais, enquanto forças navais mais letais permanecem à espreita no horizonte.
Ainda que quase todos os países envolvidos em disputas com a China estejam tentando comprar ou fabricar navios novos, a diferença no poderio bélico continua a aumentar. No horizonte, portanto, a China teria condições de ameaçar, se o desejasse, as regras e normas que regulam as fronteiras e os recursos marítimos, a liberdade de navegação e a resolução pacífica das disputas. Estariam os Estados Unidos preparados para enfrentar esse desafio?
Aqueles que temem um eventual recuo dos americanos estão, quase com certeza, errados. Mesmo crescendo em ritmo acelerado, o valor total do orçamento de defesa (oficial) da China não ultrapassa em muito o volume de recursos que Washington destinam apenas a suas forças navais. A Marinha americana conta com dez super porta-aviões nucleares, um dos quais tem o Japão como base permanente. A China só tem um porta-aviões pequeno, de fabricação soviética, que foi reformado, e dois outros ainda em construção. Todos os três destroieres americanos da classe Zumwalt (que utilizam técnicas construtivas para dificultar sua detecção por radares e outros sistemas), os navios de guerra mais avançados do mundo, serão deslocados para a região do Pacífico Asiático, juntamente com outros navios e aviões novos.
Os especialistas militares chineses acham que a MELP levará mais 30 anos para fazer frente à eficiência da Marinha americana. O Pentágono também tem a vantagem de poder contar coma colaboração de outras forças navais, tanto na região como mundialmente. A Força Marítima de Autodefesa do Japão tem poderio de alcance limitado, mas é vista como a quinta melhor Marinha do mundo, e está acostumada a realizar exercícios com os americanos.
Rivais e aliados
O relaxamento das leis de segurança nacional, aprovado no mês passado, que permite à Marinha japonesa cooperar com seus aliados de forma mais intensa e numa gama muito mais ampla de missões, não foi bem recebido em Pequim. E o Japão vem trabalhando duro com vizinhos regionais que têm disputas territoriais com a China, tendo concedido empréstimos a juros abaixo do mercado para que Filipinas e Vietnã adquiram barcos de patrulha novos e destroieres usados.
A Marinha da Índia é outra aliada poderosa. Com o agravamento das preocupações em relação à China, o país começou a participar de exercícios com forças navais ocidentais. O exercício anual de Malabar, realizado com a Marinha americana, agora também inclui navios da Austrália, de Cingapura e, este ano, pela primeira vez, do Japão. O governo indiano de Narendra Modi estabeleceu como meta a constituição de uma Marinha com 200 navios até 2027, com três forças tarefa com bases em porta-aviões e submarinos nucleares.
Equiparar-se à MELP é impossível, mas a Marinha indiana está determinada a impedir que o Oceano Índico se torne um “lago chinês”. Estrategistas do país há muito acreditam que a China vem estabelecendo uma rede de instalações portuárias civis e financiando projetos de infraestrutura costeira com o intuito de ampliar a capacidade de operação de seus navios em águas que, na visão do governo indiano, deveriam estar sob seu controle. Atualmente, a China despacha com frequência submarinos nucleares para navegar no Oceano Índico.
A China, mais do que qualquer outra nação, se beneficiou da paz no Pacífico Asiático assegurada pela hegemonia da Marinha americana. Sem isso, seu crescimento econômico recente talvez não tivesse sido tão espetacular. No entanto, os chineses parecem decididos a desafiar essa ordem. É compreensível que a China queria aumentar os riscos em que a Marinha americana incorre ao operar perto de sua costa. E, para um país que almeja um “novo tipo de relação entre grandes potências”, é humilhante depender dos Estados Unidos para policiar os mares, ainda que a ideia de que os Estados Unidos e seus aliados ameacem bloquear as rotas de comunicação marítimas que servem de artérias comerciais para a China e para o mundo, seja um despropósito em qualquer cenário que exclua um conflito armado. Mas, em caso de uma guerra provocada, por exemplo, pela invasão de Taiwan pela China, é do interesse dos chineses estar em condições de impedir que os americanos venham em socorro de Taipé, ou de, pelo menos, retardar sua chegada. A contrapartida disso é que, ao criar uma Marinha que intimida os vizinhos, a China os está empurrando cada vez mais para os braços dos americanos.
Além do mais, a condição de segunda maior potência naval pode dar margem a desastrosos erros de cálculo. No início do século 20, a Alemanha quis desafiar a supremacia naval britânica, provocando uma competição financeiramente nefasta na construção de navios de guerra. E, mesmo assim, os alemães foram incapazes de romper o bloqueio naval britânico durante a 1.ª Guerra.
Quanto ao Japão, seis meses depois do ataque surpresa a Pearl Harbour, na 2.ª Guerra, o país perdeu a decisiva batalha de Midway e grande parte de uma frota construída com suma arrogância.
Não há nada de errado com o fato de a China considerar ser essencial para seu prestígio e autoimagem ter uma Marinha poderosa, em particular se o país chegar à conclusão de que deve usá-la para reforçar as normas internacionais, não para subvertê-las. O receio é que os próprios chineses talvez não saibam o que fazer com seu poderio naval e acabem por não resistir à tentação de usá-lo com outros fins que não a exaltação de sentimentos patrióticos, as sinalizações diplomáticas e as intimidações discretas.
Como disse Mahan: “A história do poder naval é, em grande medida, ainda que não exclusivamente, uma história marcada por disputas entre nações, por rivalidades mútuas, por violência muitas vezes culminando em guerra”. Não precisa ser assim, mas é aconselhável que os EUA se preparem para o pior.
Tradução de Alexandre Hubner
FONTE: ESP