Por Mikhail Saakashvili – THE WASHINGTON POST
Em julho de 2008, o governo da Georgia foi submetido a intensas pressões: a Rússia organizava provocações em duas regiões do país e enviava tropas para a fronteira. Quase todos os políticos do Ocidente que se preocupavam com o meu governo, naqueles dias, afirmavam que a Rússia não atacaria e nos instavam a manter a calma e a não reagir às medidas russas.
Meu amigo Otto von Habsburg, um dos políticos mais experientes da Europa, mostrava-se menos otimista. Previu sem meias-palavras que a Rússia atacaria com todo o poderio militar à sua disposição, independentemente do que a Georgia fizesse para evitar.
A história se repete, ele me disse. Poucas semanas mais tarde, dezenas de milhares de soldados russos cruzaram nossa fronteira e os aviões começaram a bombardear 24 horas por dia. Embora Vladimir Putin não tenha conseguido seu objetivo principal, tomar a capital da Geórgia, suas tropas ainda ocupam um quinto do território do meu país.
Há semelhanças impressionantes entre as primeiras fases da agressão russa contra a Geórgia e o que está ocorrendo na Ucrânia. Observando os recentes acontecimentos e a resposta global, continuo pensando que a história se repete – e também em outros exemplos de agressão na Europa.
Nos anos 30, a Alemanha nazista ocupou parte da vizinha Checoslováquia com o pretexto de proteger os alemães étnicos. Hoje, a Rússia diz proteger os russos étnicos – ou seja, pessoas a quem passaportes russos foram distribuídos às pressas – na Crimeia ou nos territórios georgianos. Em setembro de 1938, quando a Alemanha anexou os Sudetos, o primeiro-ministro britânico, Neville Chamberlain, definiu a situação como“uma briga num país distante, entre povos sobre os quais nada conhecemos”.
Do mesmo modo, hoje alguns perguntam se o Ocidente deveria se preocupar com a Ucrânia, afirmando que a Rússia tem muito mais em jogo do que o Ocidente. No Ocidente, fala-se da necessidade de chegar a algum tipo de acordo com a Rússia, opinião que nos faz lembrar de Munique, há 80 anos. Dizem-se motivados por interesses estratégicos como a não proliferação nuclear e o combate ao terrorismo.
Da mesma forma, com a desculpa de precisar conter a União Soviética e frear a expansão do comunismo, Chamberlain entrou em acordo com Hitler. Agora, evidentemente, sabemos que todas as tentativas de apaziguar os nazistas levaram as grandes potências europeias a entregar um país após o outro a Hitler e acabaram levando à 2.ª Guerra.
Essas catástrofes globais ocorrem quando a ordem internacional estabelecida entra em colapso e a lei não mais se aplica. A Ucrânia é apenas a demonstração mais vívida e recente disso. Imagine se a Ucrânia não tivesse desistido do seu considerável arsenal nuclear nos anos 90? Para persuadir os ucranianos a fazer isso, os EUA e a Grã-Bretanha assinaram com a Rússia acordos que garantiam a integridade do território ucraniano em troca da entrega das armas da Ucrânia à Rússia. E, no entanto, agora, a situação é essa. A União Europeia e a Rússia assinaram um acordo que previa a retirada das forças russas da Geórgia em 2008. A Rússia jamais cumpriu o prometido – fato raramente mencionado pelos europeus que avalizaram o pacto.
Os motivos de Putin são semelhantes aos da Alemanha antes da guerra: ele quer corrigir o que considera um tratamento injusto das potências ocidentais depois da Guerra Fria. E tenta reconquistar territórios perdidos e se apoderar de recursos naturais. Mal se fala dos recursos petrolíferos que a Abkházia tem em alto-mar, confiscados pelo monopólio estatal russo Rosneft, em 2009.
As companhias americanas investiram consideravelmente nos campos de gás de xisto nas costas da Crimeia.
Mas, se aUcrânia se tornasse autossuficiente em energia e até mesmo uma importante exportadora de gás para a Europa, acabaria se transformando num pesadelo para Putin.
Putin desestabiliza seus vizinhos na tentativa de saciar o apetite da Otan e da União Europeia por uma maior expansão. Também considera seus avanços periódicos em territórios estrangeiros como, de certo modo, uma estratégia para o seu rejuvenescimento político interno. Existe uma lógica nessa percepção de ameaças ideológicas. Se a Ucrânia deixasse de ser uma oligarquia corrupta e se tornasse uma verdadeira democracia europeia, os adversários de Putin veriam o contraste – e o benefício potencial de combater sua própria realidade.
Por que motivo o Ocidente deveria se preocupar com o que ocorre na Ucrânia? Estamos vendo não apenas a divisão do maior país da Europa, mas também a proteção da ordem pós-Guerra Fria na Europa. Essa ordem tinha como base normas claras que não só protegem os pequenos países, como também garantem a estabilidade e a prosperidade dos grandes, protegem as minorias e solucionam conflitos por meio de mecanismos pacíficos. Basta pensar nas eventuais consequências se as fronteiras de todo o continente se transformassem em linhas étnicas.
Se não existissem mais leis, seria inevitável um ciclo de violência e destruição.Esse resultado ainda poderá ser evitado. As sanções que os EUA anunciaram na quinta-feira são um primeiro passo positivo. Deveriam ser implementadas imediatamente, mas, por outro lado, a Europa precisaria reforçar sua resposta.
Ucrânia, Geórgia e Moldávia deveriam ter direito a um processo mais ágil de integração à UE e serem beneficiadas por planos de ação por sua adesão para que a Otan pudesse demonstrar que a Rússia não pode alcançar seus fins lançando mão demeios ilegais.
Não precisamos de outros visionários como Churchill para saber o que acontecerá em seguida. As democracias de hoje têm experiência suficiente. Utilizando-a com bom senso e um pouco de coragem, poderemos evitar o pior.
FONTE: Estado de São Paulo
TRADUÇÃO: Anna Capovilla
*Foi presidente da geórgia de 2004 A 2013.Leciona da FLETCHER SCHOOL OF LAW AND DIPLOMACY DA TUFTS UNIVERSITY