Por William Park – BBC Future
Em exibição permanente no museu Royal Armouries Collection, na cidade britânica de Fort Nelson, estão dois imensos tubos de metal acoplados um ao outro e apontando para o céu. São largos o suficiente para alguém passar por eles.
Os cilindros gigantes são umas das únicas peças remanescentes do um plano ambicioso de engenharia militar: o supercanhão “Grande Babilônia”, potente o suficiente para colocar satélites em órbita.
Seu inventor, o canadense Gerald Bull, um dos mais renomados especialistas em artilharia do mundo, tinha a esperança de que o supercanhão revolucionaria lançamentos espaciais e acabaria com a necessidade de foguetes tradicionais.
“Bull era um cientista fenomenal e uma figura carismática, e o canhão é uma lembrança concreta do que ele podia fazer”, explica Nicolas Hall, responsável pela seção de artilharia do Royal Armouries Collection.
Baixo custo
Só que o Grande Babilônia jamais foi construído e ninguém nunca chegou perto de fazê-lo desde então. Por quê? A resposta é uma aventura que mistura arrogância, ambições frustradas e segredos militares.
Em uma época que o talento de Bull seria útil para qualquer grande potência, ele decidiu fazer sua superarma para o então ditador iraquiano Saddam Hussein. Um decisão que terminaria em assassinato.
Décadas depois, perguntas sérias continuam sem resposta. O canhão poderia ter funcionado? E a ideia poderá ser ressuscitada algum dia?
Bull começou sua carreira trabalhando em projetos militares canadenses e americanos, nos anos 1960. Inicialmente, engenheiros queria usar suas ideias para supercanhões como uma forma de testar voos supersônicos sem a necessidade de empregar caríssimos túneis de vento.
Mas, embora o canadense fosse passar a maior parte de sua carreira em projetos militares governamentais, desenhando foguetes e armamentos para países em guerra, sua ambição pessoal era usar suas criações para lançar satélites, não mísseis.
“Era um conceito de baixo custo. Em vez de jogar fora o primeiro estágio de um foguete, a ideia era usar uma grande arma como primeiro estágio. Isso permitiria seu reuso”, explica Andrew Higgins, professor do departamento de Engenharia Mecânica da Universidade McGill, no Canadá.
Em 1961, Bell começou a trabalhar no H.A.R.P, um projeto conjunto entre Washington e Ottawa. Usando antigos canhões navais, ele e seus colegas lançaram sondas meteorológicas em altitudes suborbitárias. Por causa dos custos da Guerra do Vietnã, o projeto foi cancelado em 1967, antes que a equipe conseguisse colocar qualquer objeto em órbita.
Mas a ideia ficou na cabeça do cientista, porque era um conceito atraente: sem a necessidade de foguetes com muitos estágios, que exigem combustíveis e motores caríssimos, projetos espaciais teriam o custo reduzido.
Higgins conta que os canhões do projeto H.A.R.P podiam atingir velocidades de 2 km/s, e se os projéteis usassem gás, a velocidade seria ainda maior. “Os canhões poderiam substituir quase dois estágios de um foguete”, diz.
É tentador pensar que um satélite não sobreviveria à imensa força gravitacional da aceleração de um canhão, mas Higgins diz que não é o caso. “Projéteis militares hoje contam com componentes ópticos delicados, como mira a laser e GPS, que resistem a essas acelerações. Claro que nem tudo pode ser lançado dessa maneira, mas um lançamento por canhões é apropriado para enviar combustível e materiais de construção”.
“Altas velocidades na parte mais densa de nossa atmosfera criam um sério problema de transferência de calor, mas escudos térmicos no nariz dos projéteis poderiam oferecer proteção”, completa.
Bull estava convencido de que seus supercanhões eram o futuro. Ele precisava apenas de financiamento. O problema é que, na década de 1970, o mundo havia perdido o interesse nos supercanhões.
Para encontrar dinheiro, Bull entrou no mercado de armas – o primeiro cliente foi o governo da África do Sul, ainda durante o regime de segregação racial, o Apartheid. Em 1976, o canadense foi preso por violar a proibição mundial de venda de armas para o regime sul-africano e passou seis meses na cadeia.
Ele voltou a vender armas depois de ser solto e foi novamente descoberto, mas, dessa vez, apenas multado. Em 1981, o governo iraquiano contatou Bull para encomendar peças de artilharia.
Na época, Saddam Hussein contava com os conhecimentos do canadense para ajudar o país na guerra com o Irã. “Bull era de interesse do regime iraquiano, porque poderia resolver os problemas de sua artilharia. Não era tão estranho assim trabalhar com iraquianos, porque eles ainda não eram uma ameaça ao Ocidente. E Saddam tinha ambições de criar um programa espacial como parte de seus planos para ser o líder do Mundo Árabe”, explica Hall.
Em 1988, Bagdá pagou a Bull US$ 25 milhões para começar o Projeto Babilônia – o primeiro canhão espacial da história -, sob a condição de que o engenheiro continuasse os projetos militares iraquianos. Os planos originais previam construir três supercanhões, dois com calibre 1000mm e um protótipo de 350mm, batizado de Baby Babylon.
O canhão tamanho-família teria 156m de comprimento e 1 metro de diâmetro. Pesaria mais de 1,5 mil toneladas, o que tornaria impossível seu transporte completo – teria de ser montado usando uma colina como apoio, em um ângulo de 45º. Seria o maior canhão de todos os tempos, mas só podemos estimar outros detalhes, como a velocidade de lançamento.
Protótipo
Usando 9 toneladas de combustível, o Big Babylon poderia lançar um projétil de 600kg a uma distância de 1 mil km, colocando vizinhos como Kuwait e Irã na sua mira. O canhão também poderia lançar um projétil com propulsão carregando um satélite de 200kg.
Para fazer isso, seria preciso uma enorme propulsão. “Um problema técnico é que, com um canhão deste tamanho, o combustível queimaria rápido demais quando havia a necessidade de uma combustão mais longa. Isso torna os cálculos de artilharia para lá de complicados”, explica Hall.
Se tivesse sido construído, o Big Babylon seria uma alternativa bem barata para o lançamento de satélites. O custo é estimado em US$ 1,727 por quilo. Em comparação, a Nasa gasta US$ 22 mil para colocar satélites em órbita com foguetes convencionais.
Bull sabia que o Iraque poderia usar a tecnologia do supercanhão para disparar mísseis. Segundo Hall, o canadense desestimulou seu uso como arma sob o argumento de que não seria prático.
O tamanho basicamente determinaria que o supercanhão não poderia ser movido depois de construído. Também apontaria para uma única direção. Era lento para disparar e poderia ser facilmente localizado e destruído – até porque causaria abalos sísmicos ao redor do mundo quando acionado, já que o “coice” de um disparo teria impacto de 27 mil toneladas, comparável à força de uma bomba nuclear.
“O canhão seria totalmente vulnerável a ataques aéreos. Mas é tentador pensar que seria uma ameaça militar nas mãos de Saddam”, afirma Hall.
É concebível, claro, que o governo iraquiano quisesse a arma, mesmo com suas fraquezas. O general Hussein Kamel al-Majeed, ex-supervisor do programa bélico iraquiano e que desertou para a Jordânia para trabalhar para a ONU, teria dito que cientistas iraquianos tinham planos para usar a arma em ataques de longa distância e para “cegar” satélites espiões, ao lançar projéteis que explodiriam para cobrir com uma espécie de tinta as lentes dos satélites.
Baby Babylon ficou pronto em maio de 1989. O protótipo de 45 metros de comprimento foi montado em uma colina, e os testes começaram. Baby Babylon teria potência para lançar um projétil a 750km.
Os componentes dos canhões eram fabricados em uma série de países europeus, os canos exibidos em Fort Nelson, por exemplo, foram feitos no Reino Unido pela empresa Sheffield Forgemasters. Em apenas um ano, porém, o sonho chegaria ao fim.
Morte
Em março de 1990, Bull foi alvejado com três tiros nas costas e dois na cabeça na entrada de seu apartamento em Bruxelas. Não houve testemunhas, já que a arma tinha um silenciador, e seu assassino jamais foi identificado.
Nos meses anteriores à morte, o apartamento do cientista fora invadido várias vezes, o que deveria ter servido como aviso. Ao relatar a morte de Bull, o jornal The New York Times escreveu que a polícia havia encontrado a chave do apartamento na fechadura e uma mala, com US$ 20 mil, intacta.
Suspeita-se que o Mossad, serviço de inteligência de Israel, esteja por trás da morte de Bull. Não especificamente por causa do canhão, mas pelo trabalho do cientista no aprimoramento do programa bélico iraquiano. Também houve quem suspeitasse de agências dos EUA, Reino Unido e até mesmo do Iraque.
Duas semanas após a morte de Bull, a alfândega britânica confiscou um carregamento de componentes para supercanhão que deixava o porto de Teesport. Alguns meses depois, o Iraque invadiu o Kuwait, o que isolou Saddam do Ocidente. O projeto Babylon simplesmente parou.
Poderiam os supercanhões voltarem à moda nos dias de hoje? Houve tentativas.
Em 2009, o cientista americano John Hunter, que fez experiências com supercanhões nos anos 1980, criou o projeto Quicklaunch: o plano era empregar canhões usando gases para disparar tanques de combustível para o espaço e ajudar em missões espaciais tripuladas para a Lua e Marte.
O lançador teria 1,1km de comprimento e flutuaria no oceano, o que seria mais vantajoso do que colocá-lo em terra firme, já que poderia ser movido e angulado com facilidade, permitindo mais de um lançamento diário. Em 2009, Hunter chegou a estimar que o canhão poderia disparar a cada duas horas.
O projeto nunca decolou, por conta do que Hunt chama de “problemas internos”. E é improvável que volte à moda no momento em que a empresa americana SpaceX, com seus foguetes reutilizáveis, domina as manchetes.
Outro problema, segundo Hunter, é o estigma em torno dos supercanhões por causa de experiências polêmicas. “Isso faz com que seja improvável que os supercanhões sejam considerados até como tecnologia para lançar satélites.”
Porém, o cientista está otimista. “Acho que veremos os supercanhões novamente. Mas, pelo menos por enquanto, precisamos de um milagre”.
Algumas universidades e centros de pesquisas ao redor do mundo usam a tecnologia dos supercanhões em menor escala para engenharia aeroespacial, tanto para lançar satélites quanto para testar o impacto do lixo espacial em satélites.
“Eu uso um minicanhão em meu laboratório que está chegando perto de velocidades de saída de 11km/s”, conta Higgins.
Há planos para o desenvolvimento de canhões que podem chegar a 15km por segundo. Essas velocidades são necessárias para testar o que acontece quando pequenos fragmentos viajando pelo espaço a milhares de km/h atingem satélites, algo impossível de simular sem canhões de alta pressão. Ironicamente, embora nenhum satélite seja usado com a tecnologia idealizada por Bull, os que já estão nos espaço poderão ser protegidos.
As partes remanescentes do supercanhão estão em depósitos ou em museus. No fim da primeira guerra do Golfo, a ONU destruiu o protótipo Baby Babylon e apreendeu até os planos de construção em poder dos iraquianos.
No Royal Armoury, os dois imensos tubos não parecem ser nada demais. Poderiam ser confundidos com canos de petróleo. Mas se tratam de alguns dos últimos vestígios do legado de Gerald Bull: um homem cujos sonhos de voar alto o fizeram cair das nuvens.
Leia a versão original dessa reportagem (em inglês) no site BBC Future