Por Monica Gugliano
Com dois telefones celulares, um na mão e outro no ouvido, o então general de divisão do Exército Brasileiro, Augusto Heleno Ribeiro Pereira, comandante da Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti) caminhava por uma rua de Bel Air ao lado de seu ajudante de ordens. Gritaria e tiros ecoavam sem que fosse possível identificar a origem precisa dos disparos e a localização dos atiradores. O tiroteio ocorria em uma região central, próxima ao palácio presidencial e à catedral, cujas paredes desabariam no terremoto de 2010. A rotina intolerável de violência generalizada que corroía o país levara a ONU a enviar uma força multinacional.
Naquele dia, eram militares brasileiros que integravam esse contingente – formado com homens de 13 nacionalidades – e estavam em Bel Air, uma favela sem lei ou ordem.
O Exército brasileiro chegou ao Haiti, o país mais pobre da América Latina, após o levante de 2004, que culminou com o exílio do então presidente Jean-Bertrand Aristide e na disputa pelo poder entre diversos grupos armados, sacrificando brutalmente a população civil. “No Haiti, interviemos em uma situação de pré-guerra civil, em um país devastado por fome, desemprego e desordem institucional, uma típica missão de imposição da paz”, diz o general Pereira, hoje na reserva. Foi o primeiro dos oficiais brasileiros a comandar a força multinacional que completa dez anos no país. Para o ministro da Defesa, Celso Amorim, a saída da missão está no horizonte do governo do Brasil. “Não pensamos em uma saída irresponsável, nem se pode dizer que já há uma data marcada para isso. Mas a saída está prevista”.
A operação não é a primeira a mobilizar militares brasileiros. Desde Suez, que, entre 1957 e 1967, teve a participação da infantaria brasileira na Força de Emergência das Nações Unidas (Unef I), a política externa do Brasil cultiva uma tradição de apoio aos esforços de manutenção da paz. O país atuou no Timor Leste, em Moçambique, Angola e outras regiões em conflito. Mas, sem dúvida, a partir da Minustah essa tradição ganhou ênfase e significou um novo passo na busca pela inserção e pela posição de “global player” tão ambicionada pelo governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Hoje, há 1.755 militares brasileiros trabalhando em operações de paz.
Galgar posições no mundo globalizado, porém, requer gastos. Desde que enviou tropas ao Haiti – onde os militares recebem entre US$ 1 mil e US$ 5 mil -, a operação custou mais de R$ 2 bilhões aos cofres brasileiros.
Desse total, a ONU, nos primeiros nove anos da missão, reembolsou US$ 324 milhões até junho de 2013. “Sempre é possível dizer que os recursos seriam mais bem aplicados em outros setores e que, num país com tantas carências como o nosso, o gasto não se justifica. Não é apenas o fato de participar dessas operações que garante prestígio e poder junto à comunidade internacional. Mas as missões de paz, entre as tarefas que se propõem preservar a segurança internacional, são importantes”, diz Pedro Dallari, diretor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo.
Treinamento no CCOPAB, no Rio: militares vêm sendo mais bem preparados, diz subcomandante. É um trabalho de utilidade também interna. No dia 30, mais de 2.500 homens do Exército, Marinha e Polícia Militar, com o apoio de 20 blindados, ocuparam o conjunto de favelas do Complexo da Maré. Moram ali 130 mil pessoas, um território que cerca três das principais vias de acesso ao Rio (as Linhas Vermelha e Amarela e a avenida Brasil).
Os militares aplicam na operação a experiência adquirida nas missões de paz no Haiti, já usada no Complexo do Alemão, no da Penha e nas favelas da Rocinha e do Vidigal, entre outras. Isto é, a doutrina de emprego da tropa em ações de garantia da lei e da ordem, em área urbana desorganizada, densamente povoada e pobre. Estimativas apontam que aproximadamente 60% dos militares que participam das ocupações passaram pelo Haiti e foram treinados no Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (CCOPAB), criado em 2005. “São gerações de militares que estão sendo mais bem preparados e treinados em situações reais”, diz seu subcomandante, Fábio Augusto Grineberg Domingues, coronel da Força Aérea Brasileira (FAB).
Se o trânsito ajudar, é preciso mais de uma hora de viagem entre a região central do Rio e o prédio na Vila Militar, em Deodoro, na Zona Oeste, onde militares e soldados aprendem de legislação internacional a técnicas para a libertação de reféns. O prédio é fácil de ser identificado. Na entrada, vê-se a bandeira azul com o símbolo das Nações Unidas e no saguão, a foto do diplomata Sérgio Vieira de Mello – o brasileiro de 55 anos, funcionário da ONU, morto num atentado em 2003, em Bagdá, no Iraque. O centro ganhou reconhecimento internacional e seus alunos, atualmente, chegam de vários países, especialmente da América Latina.
“A combinação de profissionalismo e eficiência na execução da missão no Haiti revelou às Nações Unidas e à comunidade internacional um sólido comprometimento com a causa da paz”, diz o comandante, coronel Jose Ricardo Vendramin Nunes, ex-funcionário do DPKO (sigla de Department for Peacekeeping Operations), o departamento da ONU que planeja, prepara e administra todas as operações de paz mantidas pela organização.
No local, à exceção do prédio onde ocorrem as aulas teóricas, busca-se o máximo de semelhança possível com situações que devem acontecer no trabalho. Dorme-se em contêineres com beliches, há espaços para reproduzir situações de confronto em lugares reais e imaginários. É o caso da sala onde está um simulador com um software preparado para treinar procedimentos que serão usados em patrulhas. Em um telão, são projetadas imagens que mostram pessoas caminhando em uma rua. Os soldados – reais -, armados com fuzis M16 ou pistolas Beretta de 9 milímetros, seguem o roteiro previsto para a ação. Aguardam que as pessoas se identifiquem, podem atirar (as balas são de borracha) e também vão saber quem estava em posição de virar um alvo dos supostos criminosos, pois será atingido pelo fogo hostil. “Buscamos reconstituir aqui o que acontece em uma das atividades mais comuns: a patrulha”, afirma o capitão de fragata Sérvio Correa da Rocha Júnior, chefe da Divisão de Doutrina do CCOPAB.
Militares que passaram pelo Haiti e pelas ocupações nas favelas e comunidades no Rio nem vacilam quando questionados sobre onde sentiram que precisavam de mais preparo: aqui mesmo, no Brasil. As regras da ONU, para o bem e para o mal, são muito mais claras quanto ao que se pode ou não fazer. O poder do tráfico, dizem esses militares, é também infinitamente menor no Haiti do que nos morros cariocas. Por fim, não há a disputa surda que acomete as autoridades. “Um de nossos maiores problemas no dia a dia era administrar a guerra de egos. Era preciso muita psicologia e preparo mental”, reconhece um militar.
Os impactos mentais causados pelo trabalho nas operações de paz vêm sendo estudados regularmente no Brasil desde 2008 por pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca e do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com o Instituto de Pesquisas da Capacitação Física do Exército. O chamado transtorno de estresse pós-traumático (Tept) – perturbação psíquica de ansiedade que se manifesta depois de um evento ameaçador – prevalece em um percentual entre 8 e 10%, de acordo com pesquisas internacionais, em soldados de várias partes do mundo. Nos brasileiros, estudos como o do professor Ivan Luiz Vasconcellos, da UFRJ, apontam que a proporção fica entre 1,4% e 2%.
O preparo emocional é importante: a paupérrima realidade haitiana, apontam esses estudos, é o fator de mais estresse para os militares. Mas o físico é decisivo. “Em duas horas de patrulha, um homem gasta, em média, mil calorias, o equivalente a uma hora de corrida em ritmo moderado. Quanto menor o preparo físico, maior o estresse nessas situações”, explica o diretor do instituto, coronel Antônio Fernando Araújo Duarte. “Era muito sofrido ver crianças e mulheres nessa situação. Mesmo que no Brasil exista pobreza, nada se compara ao que se vê por lá. A realidade era um choque para nós”, recorda o sargento Humberto Anholeto Leite, hoje também na reserva, que certa vez precisou acompanhar um grupo de jornalistas a uma das favelas onde crianças e adultos preparavam uma espécie de “tortinha” de barro, água e sal para comer.
O general de divisão do Exército Brasileiro, Alberto dos Santos Cruz, faz afirmação semelhante. “A gente nunca se acostuma com o sofrimento humano”, diz o gaúcho de Rio Grande, que esteve no Haiti entre 2007 e 2009 e hoje comanda as tropas da Monusco (sigla em inglês para United Nations Organization Stabilization Mission in the Democratic Republic of the Congo). É a maior missão de paz que existe no mundo, com mais de 20 mil homens, orçamento de US$ 1,5 bilhão e uma característica inédita na história da ONU: um mandato especial, que lhe permite usar a força letal – atirar para matar. De acordo com fontes da ONU, na escolha de Santos Cruz – excluídas as razões políticas – pesou o trabalho que ele fizera no Haiti: “Além da carreira, o comando que exerceu no Haiti foi decisivo para credenciá-lo nesse novo trabalho”.
Nos últimos 15 anos, estima-se que cinco milhões de pessoas tenham morrido em razão dos conflitos. O maior deles envolveu as milícias do chamado M23, um dos principais grupos rebeldes, que havia dois anos aterrorizava civis na República Democrática do Congo. “A população civil sofre barbaramente com atrocidades indescritíveis. A violência dos grupos armados é assustadora. Não é possível conceber como o ser humano chega a esse nível de violência. Nessa sociedade, é necessário ser violento para ser considerado poderoso”, relatou o general, por telefone, ao Valor. Apesar da grave situação, ele observa que diversos resultados do trabalho, pouco a pouco, começam a aparecer.
Havia quase 3 milhões de deslocados internos no Congo – um país com 70 milhões de habitantes – nos piores momentos da guerra civil. Milhares dessas pessoas, segundo organismos internacionais, têm voltado para casa. “Ainda existem mais de 30 grupos armados. Terão que ser derrotados um por um. Aqui, diferentemente do Haiti, existe uma motivação política e econômica para o conflito. É um país rico em minérios e imenso”, afirma.
Há quase três anos que a experiência do Brasil em operações de paz rendeu um posto numa missão também inédita: a Força-Tarefa Marítima da Unifil (em inglês, United Nations Interim Force in Lebanon). A força naval, com oito navios de seis países, opera em uma área de 220 quilômetros. “O melhor lugar para um marinheiro é o navio”, brinca o almirante José de Andrade Bandeira Leandro, que voltou da missão há pouco mais de um mês e tenta readaptar-se à rotina em terra firme.
Leandro passou um ano na fragata União, substituída, agora, pela fragata Liberal. A prioridade do trabalho é impedir a entrada ilegal de armas e qualificar a Marinha libanesa. Mas a guerra na Síria e a vigilância da ONU no Mediterrâneo já deram outro importante resultado. O movimento da marinha mercante nessa região teve um aumento de 30% nas atividades e, em setembro, o governo libanês inaugurou a duplicação do porto de Beirute. “Toda a riqueza do Líbano passa pelo porto, pelo mar. Portanto, o aumento dessa atividade já é um grande resultado. Neste ano, está previsto o início das atividades de prospecção de campos de gás e petróleo”, afirma.
De acordo com a definição adotada pela ONU, as operações de paz podem ser divididas entre as de “peace keeping” (quando forças externas atuam num país, buscando a superação de conflitos internos e a pacificação, ainda que com o uso da força); as de “peace making” (quando agentes externos tentam, por meio da diplomacia, a busca de um acordo que ponha fim a um conflito); e as de “peace building” (que, como o próprio nome diz, trabalha para construir as condições de paz duradoura num país). Países membros da entidade podem participar enviando tropas ou observadores militares. A ONU mantém, no mundo todo, 15 operações de paz e uma missão política (Afeganistão) que, se incluídos militares e civis, envolvem 117.023 pessoas. O orçamento previsto para o período entre julho do ano passado e agosto deste ano está em US$ 7,83 bilhões. O significado dessa cifra transparece na comparação com os gastos mundiais em armas e operações militares, de US$ 11,7 trilhões.
Na condição de observador, o coronel Américo Kunio Taguchi, de 55 anos, estava na fronteira entre Uganda e Ruanda, em abril de 1994, quando os ruandeses viveram um dos maiores horrores da história mundial contemporânea.
Em cem dias, 800 mil pessoas morreram em um genocídio levado a cabo por integrantes da etnia hutu que queriam exterminar os rivais da etnia tútsi. “Muitas das pessoas que fugiam passavam pela nossa fronteira. Mas, de onde estávamos, não era possível imaginar a dimensão do que acontecia tão perto. Ninguém poderia imaginar”, relata o coronel.
Diferentemente dos militares que estão com tropas numa missão, os observadores têm vida solitária, com pouca infraestrutura e sem poder usar armas. “É você, Deus e a missão”, conta o subcomandante do Centro Conjunto de Operações de Paz, Grineberg Domingues, que desempenhou essa função na Etiópia e no Saara Ocidental. “Muitas vezes, em alguma situação em que estava sozinho, pensava: se eu morrer por aqui, nunca vão saber.”
FONTE: Valor Econômico