Licença para Matar – Pela primeira vez na história, uma missão da ONU tem permissão para atacar.

General Santos Cruz - Foto: Diego Bresani
General Santos Cruz – Foto: Diego Bresani

Por Gustavo Silva

Um general brasileiro está à frente da mais importante Operação Militar do mundo hoje. O general CARLOS ALBERTO DOS SANTOS CRUZ tem a missão de combater grupos armados no Congo. No maior conflito bélico desde a segunda guerra mundial.  Pela primeira vez na história, uma missão da ONU tem permissão para atacar. E é Santos Cruz quem decide quando apertar o gatilho.

Carlos Alberto dos Santos Cruz conversa enquanto dirige, com os olhos focados no trânsito de uma das alças de acesso ao setor hoteleiro norte de Brasília, onde obras de mobilidade congestionam o tráfego. Desvia o olhar e foca no espelho retrovisor de seu Citroën C3, ainda cheirando a novo, para certificar-se que o interlocutor, no banco traseiro, está atento às palavras. Sua mulher, Dora, também participa da conversa. O assunto diz respeito ao que define o seu momento atual: Santos Cruz é o general brasileiro responsável por comandar cerca de 20 mil soldados de 18 nacionalidades sob a bandeira da ONU na República Democrática do Congo, combatendo grupos armados em um país no qual a pecha de “Coração das Trevas”, dada pelo autor Joseph Conrad há mais de um século, ainda é brutalmente válida.

Mesmo que a vida militar e as missões o tenham acostumado a uma rigidez impecável, Santos Cruz está relaxado. Aproveita em Brasília, onde vivem a esposa e os três filhos, as duas semanas de folga que recebe de dois em dois meses desde junho de 2013, quando embarcou para o continente africano. O histórico, a feição dura de contornos fortes, a barba feita e os cabelos bem-aparados – grisalhos nas laterais, detalhe insuficiente para sequer sugerir os 62 anos de idade – dão uma ideia inicial equivocada sobre a pessoa que, de camisa polo, jeans e sapatos de couro, tem a fala mansa quase sempre acompanhada de um sorriso discreto e simpático, com doses de descontração quando o assunto permite – o que não é uma constante quando se fala sobre o Congo e o Haiti, outro país onde sua atuação pela ONU como comandante-geral das tropas renderam elogios e resultados.

Durante a apuração da reportagem, Santos Cruz estava prestes a ser formalizado para mais um mandato de um ano à frente do braço militar da Monusco – a missão de paz da ONU no Congo –, e ele já tinha passagem marcada para voltar à capital congolesa Kinshasa. “Isso tudo passa por um processo burocrático”, ele desconversa, sem confirmar a informação que seria divulgada dias depois. A prudência com as palavras e afirmações é tão marcante quanto o vigor de alguém que de dois em dois dias corre 10 quilômetros para manter a forma. A contingência militar faz com que o general seja pouco ligado a adjetivos, descrições detalhadas e hipérboles, e muito menos a demonstrações de autoindulgência. Aliado a isso, mistura-se a simplicidade interiorana desse gaúcho de Rio Grande. Caminhando por um shopping em Brasília, surge uma conversa tão rápida quanto emblemática:

Santos Cruz nos arredores da cidade de Goma, em julho de 2013, no primeiro conflito em que as forças da ONU tiveram que atacar. O confronto durou 2 dias (FOTO: ACERVO PESSOAL)

O senhor é ligado à pesquisa de história e táticas militares?

Olha, uma vez conversei com um estudante canadense que pesquisa essas coisas. Ele me perguntou quais eram e como eu elaborava minhas táticas militares. Minha resposta foi: “Eles atiram, a gente atira de volta”.

Hoje, no Congo, Santos Cruz tem permissão para atirar mesmo que ninguém o ataque. Depois de uma conversa de várias horas no sofá do espaçoso apartamento da família na Asa Norte de Brasília, Dora, companheira fiel de Santos Cruz há 37 anos, traz os dois computadores do marido para a mesa de jantar. A sala é confortável, mas pouco ostensiva, tradicional na decoração mas cheia de detalhes que dizem respeito à história da família, como peças de partes diversas do mundo e matrioscas, as populares bonecas russas, colocadas umas dentro das outras. São frutos do tempo em que o general esteve longe do campo e foi enviado por dois anos a Moscou, como adido militar da embaixada brasileira na Rússia. As fotos dessa época, ainda nos anos 90, estão guardadas em álbuns de papel. Além de imagens de férias mais recentes, as fotos digitais são principalmente do Congo e Haiti, missões pelas quais Santos Cruz vestiu o capacete azul das Nações Unidas e se tornou reconhecido internacionalmente.

A independência do Congo, ex-colônia belga, veio em 1960. Foram anos de crise, até que em 1965 sobe ao poder Joseph Mobutu. Por mais de 30 anos, o ditador reprimiu manifestações contrárias a seu poder, “africanizou” o nome do país (que passa a se chamar Zaire) e saqueou os cofres nacionais. A sorte de Mobutu é alterada com as desgraças de Ruanda. O genocídio no país vizinho em 1994 trouxe um fluxo de milhões de refugiados – e perpetuadores do crime – ao Congo, principalmente à sua porção leste.

A Primeira Guerra do Congo, em 1997, nasce sob o pretexto de repatriar os refugiados, desmobilizar as milícias criminais e depor Mobutu. Já sua segunda parte, iniciada em 1998, ganha contornos mais grandiosos e nebulosos, pois motivos políticos e ideológicos se misturam à batalha pelas riquezas avaliadas em bilhões sob e sobre o solo congolês. Ainda que o conflito tenha sido encerrado oficialmente em 2003, a região leste do país vive desde então sob o terror de grupos armados, que disputam o controle de áreas ricas em minerais como ouro, cobre e cobalto, além da exploração da pesca e madeira.

Apesar do acordo de paz selado em 1999 que resultou na Monuc, primeira versão da atual Monusco, os níveis de violência continuam endêmicos. Ainda que seja o principal lar dos gorilas das montanhas e da maior família de macacos bonobo do mundo, cujo DNA é o mais próximo da raça humana, são títulos como “o maior campo da morte desde a Segunda Guerra Mundial” (desde 1997, estima-se entre 5 e 6 milhões o número de mortos) e “a capital mundial do estupro”, de acordo com relatório da ONU, que dão fama internacional ao Congo – além do maior efetivo e o maior orçamento entre as missões de paz das Nações Unidas, de quase US$ 1,5 bilhão anuais.

A inoperância e desmoralização da presença da ONU no Congo chegaram a seu ápice em novembro de 2012, quando o M23, um grupo formado por uma dissidência de ex-rebeldes integrados ao exército congolês anos antes, invadiu e tomou controle de Goma, capital de mais de 1 milhão de habitantes da província do Kivu do Norte, sob os olhares passivos das tropas da Monusco. Foi a gota d’água em termos de prestígio para que em março de 2013 o Conselho de Segurança da ONU aprovasse a criação de uma força de ataque. A chamada “brigada de intervenção” cumpre um mandato teoricamente simples, mas inédito na história da instituição: “neutralizar e desarmar rebeldes e grupos armados”, como se lê na resolução. “Eu apareço nesse contexto pós-trauma”, relembra Santos Cruz, o escolhido para personificar a nova faceta da atuação no Congo. “Coincide com a minha personalidade também essa determinação do Conselho de Segurança.” Em um momento da conversa, os traços de sua personalidade vem à tona:

Minha motivação passa pela neutralização dos grupos armados, por uma via prática de impedir a violência contra os civis.

Se fosse sob outras condições, de reagir quando atacado, assumiria o cargo?

Nunca me passou pela cabeça porque nunca pensei em só reagir. Esse é o padrão de engajamento da ONU, historicamente, mas acho isso uma grande distorção. As grandes crises dos anos 90, como Bósnia e Ruanda, não deixaram de ser uma vergonha, ficaram marcadas assim. O primeiro compromisso que tenho é com minha consciência.

Em 1995, durante a guerra na Bósnia, sob o olhar das tropas da ONU, forças sérvias tomaram a cidade de Srebrenica e assassinaram cerca de 7 mil homens e crianças muçulmanas, no que é o maior massacre em solo europeu desde a Segunda Guerra. Em Ruanda, a escala do desastre foi maior e mais intensa: sob os olhares passivos das forças das Nações Unidas, 800 mil mortos em 100 dias, um genocídio cujas repercussões foram fundamentais para moldar o futuro do país vizinho, o Congo.

Se não fosse um mandato como o atual, o senhor aceitaria o cargo?

O mandato no Haiti era diferente, e tomamos uma medida de ação contra grupos armados. A ONU nunca proibiu a proteção de civis, só tem que saber como e quando. Agora, é fácil você justificar não fazer. Parece que o ser humano é especialista em justificar a falta de ação. É muito fácil até encontrar razões legais para não fazer. Difícil é você correr riscos.

Talvez seja pelo fato de o senhor não ter de se envolver com governos?

Por isso não quero analisar lá atrás, o que fizeram ou deixaram de fazer. O meu estilo é: sou completamente independente nessa parte. Tenho alguns princípios que não vou infringir por legislação nenhuma. Respeito os aspectos humanitários, com ou sem legislação, porque isso é algo natural. Se alguém vai agredir alguém, você tem o direito de interferir.

Foi assim no Haiti, quando Santos Cruz comandou a ocupação e posterior pacificação da favela de Cité Soleil, o maior símbolo da violência e do caos do país caribenho tomado pelas infames street gangs, e também no Congo. Em julho passado, o que era para ser um simples almoço de domingo em Goma foi interrompido por bombas atiradas pelo M23, provocando um contra-ataque do exército congolês. Em meados de agosto, o grupo repetiu a tática. “Entramos em suporte às Forças Armadas do Congo para empurrar o M23”, recorda o general sobre o primeiro uso efetivo da brigada de intervenção. “Foram oito dias de combate, e eles recuaram mais ou menos 20 quilômetros.” Foi na batalha por Goma e nos combates posteriores contra o M23 que Santos Cruz contabiliza as únicas baixas na missão sob o seu comando. Os três militares mortos – e um número indefinido de combatentes rebeldes – dão cara à intensidade do maior desafio do general até o momento. Todavia, o apoio da Monusco ao exército congolês foi fundamental para que o M23 negociasse a paz. “Depois de eliminados, 5 mil rebeldes de outros grupos se renderam.”

Estima-se que cerca de 20 mil rebeldes atuem hoje em grupos armados pelo Congo, espalhados principalmente nas áreas de atuação da ONU, nas províncias de Kivu do Sul, Kivu do Norte e Ituri, na divisa com o Sudão do Sul. Os mais vistosos são aqueles com resquícios de uma agenda política, como a ADF (grupo islâmico com laços com o Al-Shabab/ Al-Qaeda, contra o governo de Uganda) e a FDLR, que tem como base histórica membros das Interahamwe, milícias hutus que participaram do genocídio contra os tutsis em Ruanda. A maioria, contudo, tem origem nas milícias mai-mai, grupos de autodefesa surgidos nas vilas e que hoje brigam pelo controle dos bilhões de dólares sob e sobre o solo congolês em forma de minérios, áreas de plantio, pesca e madeira. O impacto da atuação desses grupos não é sentido apenas pelas diversas atrocidades cometidas, mas também de maneira indireta, através dos efeitos culturais que causam.

“O que pensa uma pessoa de 14 anos com um fuzil na mão?”, pergunta Santos Cruz, retoricamente. O uso de crianças-soldado é prática comum entre os rebeldes, algo que presenciou frente à frente. “A referência dela é o grupo armado. O grupo armado é poderoso, está fora dos limites da lei, é impune. O ídolo dela é o chefe de um grupo armado. A referência desde que nasceu é o sujeito que tem o melhor carro, a melhor casa na vila”, reflete. “Você tem basicamente um problema humanitário, em que as pessoas que têm poder não se sentem sensibilizadas pelo sofrimento dos mais pobres”, o general prossegue na análise pessoal. “Qual é o futuro dessas mulheres e crianças? Com o fuzil não vai faltar casa, o menino vai cobrar pedágio na estrada, vai estuprar as meninas. O sujeito não tem perspectiva nenhuma.” São inúmeras as dificuldades em um país cuja área é maior que a da Europa Oriental, e com tantos atores interessados no conflito mais mortal da África por conta de seus recursos naturais (os vizinhos Ruanda e Uganda, por exemplo, são acusados de financiar alguns grupos armados).

Ingresso na carreira militar com 15 anos, Santos Cruz já havia passado antes por uma dose significativa de testes na vida. O pai falecera quando tinha apenas 3 meses, e aos 5 anos ele perdeu a mãe para o câncer. O caçula de oito irmãos foi criado por tios, até ser aceito na Escola Preparatória de Cadetes em Campinas, no interior de São Paulo. A academia militar Agulhas Negras, em Resende, no Rio de Janeiro, foi o passo seguinte, onde se formou oficial de infantaria, na especialização de combatente. Passou por diversas localizações no próprio Brasil, das quais chama a atenção a Amazônia, para onde foi enviado 20 dias após casar e onde ficou ao longo de um ano e meio, realizando um curso de guerra na selva. Depois de passar pelo Haiti e adquirir reconhecimento internacional, o general foi para a reserva do Exército brasileiro. Foi designado para fazer trabalho burocrático em Brasília, na SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos). Acreditava que seu tempo de missões reais já havia terminado quando, um mês e meio após assumir seu gabinete na SAE, foi convidado pela ONU para ir ao Congo – e justamente para a posição de comandante da mais importante força de paz internacional hoje.

“Correntezas da vida me levaram a trabalhar em dois lugares diferentes, locais de conflito”, ele avalia a carreira que o levou do Rio Amazonas ao Rio Congo, dois gigantes hidrográficos. Mas, ao contrário de conterrâneos que fizeram história na ONU como cidadãos do mundo (leia mais no quadro ao lado), Santos Cruz minimiza o rótulo.

“Sou um cidadão absolutamente normal, brasileiro. Gosto dos meus cavalos, da minha família, da vida mais ou menos pacata aqui de Brasília. Enfrento o problema que tiver em qualquer lugar.”

“Pense globalmente, aja localmente” é um slogan aplicado para diversos contextos – sociais, econômicos, políticos. O pensamento – e personalidade – de Santos Cruz é tratado por esse filtro. “Naquele tipo de ambiente você não percebe esse engajamento social, político. Nesses lugares mais pobres eles têm uma luta pela sobrevivência. Para as pessoas que sofrem muito, elas só têm um valor – e elas estão certas –, que é a sobrevivência. Você tem que entender esse posicionamento. Por que o pessoal da vila não te fala as coisas? Ele não fala porque tem que sobreviver, porque se ele falar hoje pode morrer na mão do grupo armado.”

A análise é sobre a República Democrática do Congo. Mas poderia ser do Haiti – ou mesmo o Brasil, nas favelas do Rio de Janeiro ou de qualquer grande cidade, onde os traficantes são referências por total falta de alternativas. “Daí vem a responsabilidade de quem está acima dessa linha, de lutar para algo melhor. E às vezes você não vê essa motivação, essa dedicação”, reflete.

“Mas eu não me impressiono com isso, não. Eu toco em frente”, sorri, resignado, o general.

FONTE: GQ Brasil

COLABOROU: Marino

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