Instalada na Patagônia, a base científica depende de uma agência do Exército Chinês que se dedica a interceptar comunicações de outras potências.
Por Eduardo Szklarz
A província argentina de Neuquén é conhecida por seus belos lagos, vulcões, pistas de esqui e jazidas petrolíferas. Mas um novo elemento contrasta com a paisagem da Patagônia: uma antena descomunal de 48 metros de altura, 35 m de diâmetro e 450 toneladas, utilizada por militares chineses.
A antena faz parte da Estação do Espaço Distante, pertencente à Agência Nacional de Lançamento, Rastreamento e Controle Geral de Satélites (CLTC, em inglês), que por sua vez é subordinada ao Exército Popular de Libertação da China. O complexo se encontra em um terreno de 200 hectares que Buenos Aires cedeu a Pequim por 50 anos, fruto de um acordo com cláusulas secretas assinado em 2014 entre os governos da ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner e do seu homólogo chinês Xi Jinping.
Em 2015, após a ratificação do tratado pelo Congresso argentino, o Ministério do Planejamento garantiu em um comunicado que não existiam “cláusulas reservadas”. O órgão também afirmou que “a estação tem fins exclusivamente científicos e civis, concentrando-se em tarefas de monitoramento, controle e baixa de dados das missões de exploração interplanetária chinesas no âmbito do Programa Nacional da China para a Exploração da Lua e de Marte”. No entanto, o megaprojeto de US$ 50 milhões, que entrou em plena operação no final de 2017, divide opiniões na Argentina.
Cientistas da Comissão Nacional de Atividades Espaciais (CONAE) comemoram o fato de que terão acesso a 10 por cento do tempo de uso da antena – o equivalente a dois horas e 40 minutos por dia. Por outro lado, analistas de segurança advertem quanto aos riscos do uso militar da instalação, apesar da promessa da China ao governo de Mauricio Macri em relação aos fins pacíficos.
“Chama a atenção que a agência encarregada do projeto seja uma agência militar e que além disso seja subordinada à Direção Geral de Armamentos do Exército Chinês. Ou seja, não há dúvidas de que existe um uso duplo em questão”, disse à Diálogo Juan Belikow, professor de Relações Internacionais da Universidade de Buenos Aires. “O principal problema é que não existe qualquer mecanismo que garanta à Argentina ou à comunidade internacional um monitoramento do que ocorre realmente dentro dessa unidade.”
Segundo Belikow, a pergunta é se a estação faz parte de uma rede chinesa similar à Rede Echelon, que utiliza essa mesma tecnologia para a interceptação de comunicações. “Eles têm a capacidade. A agência que detém o controle dessa antena se dedica a isso. E como não existe qualquer tipo de controle, não se pode assegurar que [a interceptação] não esteja sendo feita”, afirmou. “Quer dizer, a promessa de uso civil é uma promessa de palavra e sabemos que a palavra dos chineses nesse sentido nunca foi muito relevante.”
O analista internacional Fabián Calle lembra que a Argentina é referência em questões espaciais, com uma indústria tecnológica avançada ligada a satélites e energia nuclear. “A explicação dos cientistas que não têm preferências ideológicas é que a antena, como foi erguida, tem basicamente uma utilidade importante para o programa espacial chinês”, disse Calle à Diálogo.
“Nenhum dos técnicos com quem falei se referiu à antena como um elemento chave de um programa de mísseis balísticos estratégicos da China”, acrescentou Calle. “Isto não significa que não haja uma utilização dupla ou que não se possa obter alguma informação que venha a ser útil à estrutura militar chinesa.”
BeiDou: o GPS made in China
Situada na localidade de Bajada del Agrio, em Neuquén, a estação interplanetária é a primeira que os chineses construíram fora de seu território. E isto lhes permitirá muito mais do que preparar a sua viagem à lua. Com a instalação, Pequim busca fazer o mesmo que as outras potências mundiais: tornar-se independente do GPS, o sistema de navegação por satélite desenvolvido pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos nos anos 1970, que entrou em operação em 1995.
Desde então, a Europa desenvolveu seu próprio sistema – o Galileo –, bem como a Rússia, que criou o GLONASS [Sistema de Satélite de Navegação Global]. Agora a China está usando o seu sistema, o BeiDou, também conhecido como Compass.
Tornar-se independente do sistema GPS requer uma presença geoestacionária importante, afirmou Belikow. E localizar a antena em Neuquén faz sentido porque a Patagônia é o antimeridiano chinês, ou seja, está no lado exatamente oposto do planeta.
“Isso possibilita aos chineses um acesso para compensar o lado obscuro do planeta que eles ainda não cobriram”, explicou o analista. “No entanto, sabemos que isso não será suficiente. Os chineses provavelmente necessitarão triangular [os sinais], com o que poderão instalar antenas similares em outros lugares do mundo, para que o seu sistema seja suficiente. Podemos esperar que surjam outras estações similares na África ou em outro lugar da Ásia.”
De acordo com Belikow, o lógico seria ter entre seis e 12 estações, mas com três já é possível ter três dimensões. “Pode ser que na China haja duas estações, e assim as três já estariam cobertas. De todo modo, a qualidade da precisão é relativamente baixa”, disse. “Por enquanto, os militares chineses usarão a instalação no mínimo como base para o seu sistema de posicionamento de satélite. Sabemos que o GPS é orientado basicamente para o uso militar e, em segundo plano, para o uso civil. Portanto, é quase ridículo imaginar que os militares chineses não usarão o seu próprio sistema GPS.”
O contexto do acordo
O longo processo de construção da antena começou em 2012, com a assinatura de um acordo de cooperação entre a estatal chinesa CLTC e a CONAE. Nessa época, a Argentina ainda sentia os efeitos da recessão de 2008-2009 e, sem acesso aos mercados internacionais depois da mora de US$ 100 bilhões de 2002, via a gigante asiática como a salvação dos seus problemas econômicos.
Entretanto, havia também um fator político. “O governo de Kirchner, principalmente a partir de 2008, começou a adotar uma posição bastante antiamericana, que se agravou no primeiro mandato de Cristina Fernández e muito mais no segundo”, afirmou Calle. “Assim sendo, a assinatura do acordo [de 2014] foi marcada por essa política exterior de se afastar dos EUA, da Europa e dos países democráticos da costa do Pacífico e da América, apoiando-se mais na Rússia e na China.”
O argumento argentino foi que a antena de Neuquén era muito similar à Deep Space Antenna 3 (DSA 3), da Agência Espacial Europeia (ESA, em inglês), inaugurada em 2012 na localidade de Malargüe, na província argentina de Mendoza. Fruto de outro convênio com a CONAE, a DSA 3 completou a rede de três Estações de Espaço Profundo da ESA, que tem antenas em New Norcia, na Austrália, e em Cebreros, na Espanha.
“Havia, no entanto, a ideia de que a antena chinesa era semelhante à da União Europeia (UE). E se a antena da UE estava lá, incluindo os britânicos antes do Brexit, por que nós não poderíamos fazer um acordo com a China, que é o principal comprador de soja e minerais da Argentina, além de ter importantes investimentos em portos?”, explicou Calle.
Entretanto, o acordo CLTC-CONAE levantou suspeitas desde o início. O artigo 10, por exemplo, estabelece que “ambas as partes manterão a confidencialidade a respeito da tecnologia, das atividades e dos programas de rastreamento, controle e aquisição de dados”.
O tratado bilateral posterior também foi criticado pelo seu sigilo, apesar dos desmentidos do governo de Kirchner. Ao assumir a presidência, Mauricio Macri pediu à China que acrescentasse um anexo esclarecendo que a estação teria exclusivamente fins pacíficos.
Para Belikow, no entanto, o compromisso de “fins pacíficos” tem uma armadilha. “Se eles [os chineses] pretendem justificar que tudo o que fazem ali é para defender a China, e isso eles consideram como pacífico, o fato de estarem espionando as comunicações de terceiros poderá ser emoldurado por eles como de uso pacífico”, afirmou ele.
A Casa Rosada se vê então diante de uma situação delicada. Ela tem acesso às cláusulas secretas do contrato, mas não pode denunciá-las por diversos motivos. Em primeiro lugar, porque é um tratado entre Estados e, por mais que o governo mude, os tratados se preservam. “E também, ainda que haja questões técnicas que possibilitem o seu cancelamento, a Argentina está atravessando uma crise financeira muito complexa. Denunciar o tratado agora teria um impacto imediato sobre a economia do país”, acrescentou Belikow.
Calle tampouco acredita que a Argentina ultrapassará qualquer limite em sua relação com a China. “O governo de Macri tem uma postura de aproximação com os EUA, a Europa, o Japão, Israel, o Chile, a Colômbia e o México. Mas, ao mesmo tempo, pragmaticamente, mantém um vínculo econômico, político e comercial harmonioso com a China”, explicou. “É muito difícil não estabelecer um vínculo com uma potência emergente desse tipo que, por sua vez, precisa das commodities que nós exportamos.”
Por outro lado, o cientista político lembra que a Argentina recentemente assinou um acordo com os EUA para a realização de atividades humanitárias com o emprego das forças armadas precisamente em Neuquén. Além disso, já há uma forte presença nessa província de empresas petrolíferas americanas que começam a explorar a Vaca Muerta, uma das maiores reservas de petróleo e gás não convencionais do mundo. “Isso criará um vínculo estratégico muito forte entre a Argentina e os EUA em termos de energia. Há ali uma clara decisão do governo de abrir um espaço importante às empresas americanas”, completou Calle.
A penetração chinesa
A parabólica de 16 andares sobre o deserto da Patagônia é apenas um dos símbolos da crescente influência chinesa na América Latina. Em 2015, Xi Jinping prometeu US$ 250 bilhões em investimentos na região até 2025. Perante os líderes da Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC) reunidos em Pequim, Xi também estimou que o comércio entre a China e os membros da CELAC chegará a US$ 500 bilhões na próxima década. A isso se somam os exercícios militares conjuntos entre a China e os países sul-americanos, como os realizados com a Marinha do Brasil, em 2013, no Rio de Janeiro.
“A penetração da China na região é muito preocupante”, disse Belikow. “É preciso admitir que os chineses aprendem rápido. Eles entraram na África aproveitando os anos da distração americana, produto das guerras em lugares como a ex-Iugoslávia e o Iraque. Hoje em dia a África é controlada por uma penetração chinesa que sofre grande resistência dos africanos, porque foi feita de maneira muito agressiva, com situações que beiravam a escravidão”, ressaltou.
O especialista não descarta que a China use a estrutura da estação de Neuquén – não apenas a antena grande, mas também as suplementares – para interferir nas comunicações locais, inclusive para espionar as atividades petrolíferas e interceptar mensagens de barcos pesqueiros e militares no Atlântico Sul. “Lembremos que atualmente a informação não é divulgada via cabo, mas sim via satélite. E, por mais criptografada que seja, sabemos que os chineses não são exatamente os menos hábeis para hackear as comunicações.”
Belikow disse que não são apenas as cláusulas secretas do convênio que preocupam, mas também a blindagem que se criou sobre a operacionalidade da estação. Por exemplo, como seriam utilizadas as 2h40 de acesso por dia? Seria um acesso físico ou remoto? “Isso tampouco está definido. Eu tenho a suspeita de que vão lhes permitir [aos cientistas argentinos] acesso remoto às informações geradas aqui, porque em nenhum lugar – pelo menos do nosso conhecimento – se diz que esse acesso será físico”, ele afirmou.
“Uma situação mais razoável seria se nos dessem esse período de tempo (2h40) para entrar a qualquer momento na estação. De qualquer modo, quando alguém passa pela guarda da entrada e até que chegue à sala, eles podem fechar todos os programas que não deveriam estar usando, assim que não há maneira de monitorar. Trata-se de uma situação rara”, completou.
FONTE: Diálogo Américas