A crescente tensão na Península Coreana, que tem feito o mundo temer a explosão de uma guerra nuclear, reforçou um debate que já vinha ganhando força no Japão – único país que já foi alvo desse tipo de ataque – desde a eleição do primeiro-ministro conservador Shinzo Abe, em dezembro. O governo quer que os militares japoneses deixem de ser personagens secundários, totalmente dependentes das forças americanas, para assumir um papel mais ofensivo numa região ameaçada por confrontos. A defesa de um Japão militarizado é controversa, por contrariar a imagem pacifista que marcou o país desde sua derrota na Segunda Guerra Mundial, mas está deixando de ser um assunto tabu para os japoneses.
Não é só o imprevisível ditador norte-coreano, Kim Jong-un, que preocupa o Japão. Uma China cada vez mais assertiva, que reivindica a soberania das ilhas Senkaku (chamadas pelos chineses de Diaoyu), também incomoda. O cenário asiático conturbado ajuda Abe a fazer pressão pela revisão da Constituição japonesa, aprovada no pós-guerra. A Carta, que nunca foi modificada, está em vigor desde 1947 e impede a nação de se envolver em conflitos, a não ser para revidar um ataque a seu território.
Pela primeira vez em 11 anos, o governo aprovou o aumento do orçamento militar. O crescimento foi pequeno, de 0,8%, mas simbolizou uma mudança na política de corte de gastos na área. O primeiro-ministro, com bons índices de popularidade, tem sido cuidadoso em seus discursos, evitando comentários nacionalistas que marcaram sua trajetória. Ele afirma, no entanto, que a nova conjuntura geopolítica obriga o Japão a rever o status das Forças de Autodefesa, nome que o país dá às suas Forças Armadas desde o fim da ocupação americana (1952).
Encarregado de detectar as ameaças aos interesses japoneses, o Instituto Nacional de Estudos de Defesa, ligado ao Ministério da Defesa do Japão, confirmou em seu último relatório anual, recém-divulgado, a necessidade de rever a estratégia militar. “Além de operações regulares de inteligência, vigilância e reconhecimento, tornou-se imperativo reforçar a dissuasão e a capacidade de resposta através de uma melhoria dos deslocamentos e preparação para conflitos mais intensos”, diz o texto.
A disputa territorial com a China é apontada como a principal preocupação, mas o perigo norte-coreano também foi analisado. Segundo o estudo, Jong-un reforçou seu controle sobre o Exército comunista em 2012 e demonstrou, no último teste realizado em dezembro, ter ampliado o alcance de seus mísseis para 10 mil quilômetros.
– Ficou mais difícil acreditar num diálogo. Quando Kim Jong-un assumiu o poder, muitos analistas se mostraram otimistas em relação à possibilidade de reformas. Nós fizemos uma previsão pessimista e ela se confirmou – disse Eichii Katahara, diretor do instituto e responsável pelo relatório.
Pesquisa publicada pelo diário “Yomiuri Shimbun”, jornal de maior circulação no Japão, mostrou que 54% da população aprovou o aumento do orçamento militar este ano. A discussão sobre a revisão da Constituição, cujo texto decreta a renúncia à guerra, é mais complexa.
O partido do governo, o PLD, defende a ampliação do conceito de autodefesa, permitindo que as tropas japonesas atuem em caso de ameaça a seus aliados. Se o Japão detectar o disparo de um míssil norte-coreano em direção ao território americano, poderia derrubá-lo, assim como poderia proteger tropas americanas em perigo, de acordo com a proposta.
O primeiro passo defendido por Abe é mudar o artigo que estipula os mecanismos para aprovação de uma emenda. Atualmente são necessários dois terços de cada uma das duas Câmaras do Parlamento. O PLD quer mudar isso para uma maioria simples, abrindo caminho para as modificações. O principal argumento dos revisionistas é o de que a Constituição foi imposta pelos EUA durante os tempos da ocupação que se seguiram à derrota japonesa na Segunda Guerra.
Lawrence Repeta, professor da Faculdade de Direito da Universidade Meiji, em Tóquio, e um dos críticos da proposta do PLD, rebate:
– O Japão vive sob essa Constituição há quase 60 anos e se transformou numa sociedade próspera e pacífica. Os japoneses abraçaram os valores do texto – diz o especialista.
Grupos de defesa dos direitos humanos temem que os conservadores estejam explorando a tensão militar para aprovar uma Constituição que limita liberdades individuais. Outro obstáculo para a ofensiva de Abe é a lembrança ainda presente dos estragos causados por um Japão expansionista na primeira metade do século 20 em países como China e Coreia do Sul.
FONTE: O Globo – Claudia Sarmento