Com Marinha e mísseis, país já é capaz de neutralizar intervenções na região, o que obrigará potências rivais a repensar estratégias, dizem analistas
Por Steven Lee Myers, do ‘New York Times’
“O primeiro porta-aviões construído na China acabou de se mover um pouquinho, e EUA, Japão e Índia já se contorcem”, celebrou um site de notícias militares, referindo-se aos três países vistos pela China como seus maiores rivais.
Não muito tempo atrás, gabar-se assim seria visto apenas como a bravata de um país com um Exército de segunda classe. Não mais.
Um programa de modernização centrado em forças navais e mísseis mudou o equilíbrio de poder no Pacífico de um modo que os EUA e seus aliados estão apenas começando a digerir.
Se por um lado a China se arrasta para projetar seu poder de fogo em uma escala global, por outro agora o país pode desafiar a supremacia americana nos lugares com que mais se importa: as águas no entorno de Taiwan e no disputado Mar do Sul da China.
Isso significa que uma área cada vez maior do Oceano Pacífico — onde os Estados Unidos vêm operando sem rivais desde as batalhas navais da Segunda Guerra Mundial — voltou a ser território disputado, com navios de guerra e aviões militares chineses frequentemente encontrando os equivalentes americanos e de seus aliados.
ESTRATÉGIA ANTI-INTERVENÇÃO: Fato ou Fake
Para prevalecer nessas águas, dizem autoridades e especialistas que observam o desenvolvimento militar chinês, o país não precisa de Forças Armadas que possam derrotar os EUA, mas apenas de forças capazes de tornar a ideia de uma intervenção na região muito onerosa para Washington. Muitos dos especialistas acham que a China já atingiu esse objetivo.
Para chegar lá, os chineses desenvolveram tecnologias “anti-acesso” que usam recursos de radares, satélites e mísseis para neutralizar a vantagem dos comboios de porta-aviões americanos. Também vêm expandindo com rapidez sua Marinha, buscando prepará-la para o alto-mar de modo a defender seus interesses além de seu litoral.
“A China agora é capaz de controlar o Mar do Sul da China em todos os cenários, exceto se houver uma guerra com os EUA”, afirmou o almirante Philip S. Davidson, novo comandante do Comando Indo-Pacífico da Marinha americana, num texto enviado ao Senado em março, durante seu processo de confirmação para o posto.
Davidson descreveu a China como “um concorrente à altura”, que ganha dos Estados Unidos não por uma comparação no número de armas, mas pela construção de “habilidades assimétricas” como mísseis anti-navios e recursos de guerra submarina. “Não há garantias de que os Estados Unidos venceriam um futuro conflito com a China”, sentenciou.
MAIOR MARINHA DO PLANETA
Ainda assim, no ano passado, a Marinha chinesa se tornou a maior do planeta, com mais navios de guerra e submarinos que os EUA, e o país continua a construir navios com velocidade estonteante. Embora a frota americana supere a chinesa em qualidade, ela está muito espalhada e é menor.
A tarefa de construir uma Marinha poderosa nunca foi tão urgente quanto em nossos dias — declarou o presidente chinês Xi Jinping em abril, durante uma parada naval perto da ilha de Hainan que iniciou exercícios militares com 48 navios e submarinos. O Ministério da Defesa Nacional afirmou que as embarcações eram as maiores já construídas desde a fundação da República Popular da China, em 1949.
Há apenas três anos, Xi prometera, ao lado do então presidente americano Barack Obama, não militarizar as ilhas artificiais que construíra no Sul, no arquipélago Spratly. Mas as autoridades chinesas admitiram, desde então, que instalaram mísseis lá, argumentando que são necessários devido às “incursões americanas” em águas chinesas.
Quando o secretário de Defesa americano James Mattis visitou Pequim em junho passado, Xi o advertiu sem rodeios de que a China não cederia “nem um centímetro” de território que reivindica como seu.
Xi JINPING IMPULSIONOU FOCO NO MAR
A expansão naval do país asiático se iniciou em 2000, mas foi acelerada quando Xi Jinping assumiu a Presidência em 2013. Ele mudou drasticamente o foco dos militares para o setor naval e para divisões de foguetes estratégicos, tanto na Marinha quanto na Força Aérea, reduzindo forças terrestres. E expurgou comandantes acusados de corrupção.
O Exército Popular de Libertação, berço do poder comunista desde a Revolução de 1949, foi encolhido para dar lugar a recursos voltados para Forças Armadas mais modernas. Desde 2015, o Exército dispensou 300 mil soldados e oficiais alistados, e agora mantém um efetivo de 2 milhões de pessoas, contra 1,4 milhão nos Estados Unidos.
Enquanto cada braço das Forças Armadas chinesas perca para os EUA se comparado a seu equivalente americano em termos de experiência e poder de fogo, a China fez significativos progressos em suas “armas assimétricas”, de modo a tirar a vantagem de Washington. Um dos trunfos chineses é o que estrategistas militares americanos chamam de habilidades “anti-acesso” e de “negação de área” (A2/AD, na sigla em inglês). Os militares chineses definem esses recursos como sua estratégia “anti-intervenção”.
A peça principal dessa estratégia é um arsenal de mísseis balísticos de alta velocidade projetados para atacar navios em movimento. As versões mais recentes, os mísseis DF-21D e DF-26, são popularmente conhecidas como “assassinos de porta-aviões”, pois podem atingir os mais poderosos navios dos EUA bem antes que eles cheguem perto da China.
A Marinha americana nunca enfrentou tal ameaça antes, afirma um relatório do Escritório de Pesquisa do Congresso publicado em maio. Segundo o relatório, alguns analistas acreditam que os novos mísseis “mudam completamente o jogo” contra a China.
O advento dos mísseis “assassinos de porta-aviões” foi acompanhado da instalação de mísseis no Mar do Sul da China este ano. Entre eles, o míssil de cruzeiro YJ-12B anti-navios, com alcance que abrange as águas entre o Vietnã e as Filipinas.
Mesmo que a ideia de uma guerra total entre EUA e China seja impensável, os militares chineses estão se preparando para “um conflito limitado no mar”, segundo um documento de 2013 num jornal intitulado “A Ciência da Estratégia Militar”.
Lyle Morris, um analista no centro de estudos da Rand Corporation, célebre centro de estudos conservador americano, diz que a instalação de mísseis nas disputadas ilhas Paracel e Spratly “vai mudar de forma dramática” a maneira como os militares americanos operam na Ásia e no Pacífico.
A melhor resposta dos EUA à estratégia chinesa seria achar “métodos inovadores” de posicionar seus navios fora do alcance dos mísseis. Mas, dado que o alcance destes ficou maior, escapar dele “não seria possível na maioria dos casos” que a Marinha americana tende a enfrentar na região, segundo Morris.
INTERESSES ECONÔMICOS EM JOGO
Os militares chineses, antes concentrados em repelir uma invasão por terra, agora querem projetar seu poder de fogo em alto-mar ao redor do mundo para proteger os interesses econômicos e diplomáticos da China, que estão em franca expansão, desde o Oceano Pacífico até o Atlântico.
Os novos porta-aviões chineses atraem bastante a atenção, mas a expansão naval do país vai muito além. A Marinha chinesa — originalmente a Marinha do Exército Popular de Libertação — construiu mais de cem belonaves e submarinos só na última década, o que representa mais do que as frotas reunidas de muitos países.
HUMILHAÇÃO EM TAIWAN
A origem do novo foco da China no poder naval e na estratégia de “negação de áreas” pode estar no que muitos chineses consideraram uma verdadeira humilhação nos anos de 1995 e 1996. Quando Taiwan teve suas primeiras eleições democráticas, a China disparou mísseis perto da ilha, o que fez o então presidente americano Bill Clinton despachar dois porta-aviões para a região.
“Nós evitávamos o mar, pois o considerávamos um fosso e um laguinho se comparado ao Reino do Meio [nome da China em tempos imemoriais]”, escreveu o analista naval Chen Guoqiang num jornal da Marinha. “Então não só perdemos todas as vantagens marítimas, como nossos territórios se tornaram presas para as potências imperialistas.”
O progresso naval, desde então, tem sido notável. Em 1995, a China só tinha três submarinos. Agora tem quase 60 e quer chegar a 80, segundo um informe de julho do Serviço de Pesquisa do Congresso americano.
Os americanos veem isso como uma competição, é o jeito americano de ver a coisa, diz Li Jie, analista do Instituto de Pesquisa Naval Chinês em Pequim. Mas a China está simplesmente protegendo seus direitos e interesses no Pacífico. E esses interesses estão se expandindo.
BASE NO ESTRANGEIRO E REDE DE SUPRIMENTOS
Em 2017, o país inaugurou sua primeira base militar no estrangeiro, no Djbouti, na região do Chifre africano, afirmando que ela será usada para apoiar a participação chinesa nas patrulhas multinacionais contra a pirataria no litoral da Somália.
Agora, a China parece estar planejando ganhar acesso a uma rede de portos e bases no Oceano Índico. Ostensivamente comercial, esse projeto é a base da criação de uma grande rede de suprimento e abastecimento que “facilitará as operações navais de longo alcance de Pequim”, de acordo com um relatório do C4ADS, um instituto de pesquisa em Washington.
Eles logo serão capazes de enviar uma esquadra a algum lugar, digamos na África, e ter por perto todos os suprimentos necessários para eventuais invasões visando proteger ativos chineses, prevê Vassily Kashin, especialista do Instituto de Estudos do Extremo Oriente da Academia Russa de Ciências, em Moscou.
FUGA DO IÊMEN
A China percebeu a necessidade de criar essa longa linha de suprimentos e suporte quando seus navios, em 2015, precisaram evacuar 629 chineses e 279 estrangeiros do Iêmen, no momento em que a guerra civil no país explodiu na cidade portuária de Aden.
Uma das fragatas envolvidas no resgate, a Linyi, foi mostrada num filme patriótico que fez muito sucesso no país, chamado “Operação Mar Vermelho”.
Os chineses vão estar mais presentes agora, e todo mundo terá que se acostumar a isso, conclui Kashin.
FONTE: O Globo