As mudanças na natureza da guerra moldam profundamente tanto a maneira como o Estado é organizado quanto as leis. Um exemplo disso é como a adoção da pólvora no campo de batalha e o surgimento de pequenos exércitos permanentes ajudaram a produzir as monarquias absolutistas dos séculos 16 e 17. O recrutamento em larga escala pelos Exércitos revolucionários de Napoleão, por sua vez, ajudou a explicar o começo do fim dessas monarquias. A necessidade de construir e sustentar forças cada vez maiores levou também à criação dos aparatos do Estado moderno, como censo, tributação universal e educação básica.
Estamos num outro ponto de inflexão importante, no qual a tecnologia está reformulando a maneira como as guerras são travadas. O futuro da guerra será moldado pelo papel de aviões não tripulados cada vez menores, robôs no campo de batalha, capacidade de guerra cibernética, capacidades extraordinárias de vigilância tanto no campo de batalha quanto de indivíduos particulares, maior dependência de forças especiais em conflitos não convencionais, a militarização do espaço e o avanço tecnológico no campo da biotecnologia – que tem implicações importantes para a construção de armas de destruição em massa.
Cientistas já podem fabricar organismos vivos, incluindo novos vírus. Essas inovações são úteis para cientistas, mas também, potencialmente, para terroristas e Estados inescrupulosos.
No caso dos drones, eles permitem assassinar indivíduos a grande distância por controle remoto e estão se proliferando de maneiras inesperadas. O breve monopólio que EUA, Grã-Bretanha e Israel detiveram já se evaporou. A China surpreendeu os EUA em 2010 quando anunciou 25 modelos de drones numa feira aeronáutica, alguns deles capacitados a disparar mísseis. No ano passado, os chineses anunciaram que haviam planejado assassinar um notório chefão da droga que estava escondido numa área remota de Mianmar com um drone armado, mas acabaram optando pela sua captura.
Do mesmo modo como o governo americano justifica os ataques com drones no Paquistão e no Iêmen, com o argumento de que estão em guerra com organizações terroristas como a Al-Qaeda, pode-se imaginar a China atacando separatistas uigures, chineses exilados no Afeganistão, sob o mesmo pretexto. O Irã – que alega possuir drones armados – poderia atacar nacionalistas baluchi ao longo de sua fronteira com o Paquistão.
Ainda assim, o Pentágono, com sua característica mentalidade de curto prazo e com enfoque excessivo na “prontidão” e não suficiente na “prevenção”, parece recuar de uma adoção plena dos drones, cortando gastos neles apesar de continuar dedicando bilhões de dólares a aviões de guerra tripulados.
Já o “cerco cibernético” é uma técnica em potencial no novo mundo da guerra, como determina Sascha Meinrath, da New America Foundation. Atualmente, concebemos a maioria dos ataques de hackers como oportunistas, significando que eles se concentram nos alvos mais desprotegidos. Entretanto, Meinrath prevê que um inimigo que elimine funcionalidades básicas de nossos sistemas de computadores pode prejudicar nossa sociedade, cada vez mais dependente da tecnologia, e isso conduziria então a um ciberataque mais invasivo e de longo alcance.
A fabricação científica de vida, a proliferação de drones e a crescente oportunidade de cercos cibernéticos são apenas a ponta do iceberg. A evolução de tecnologias de vigilância, de armas espaciais e de sistemas não tripulados autônomos de todos os tipos também está transformando a guerra.
Novas tecnologias também democratizaram a violência, permitindo que atores não estatais usem e ameacem usar força letal numa escala anteriormente associada somente a Estados. Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 abalaram o pressuposto confortável de que os EUA só teriam de enfrentar adversários convencionais. Desde o 11 de Setembro, os EUA lutaram em conflitos de vários tipos contra uma variedade de redes como a Al-Qaeda e seus aliados no Afeganistão, no Iraque, no Paquistão, na Somália e no Iêmen.
Tomadas em conjunto, as mudanças recentes tanto nos equipamentos tecnológicos da guerra como nos inimigos apagaram as fronteiras entre o que consideramos tradicionalmente como “guerra” e “paz”, militar e civil, estrangeiro e doméstico, nacional e internacional.
Essas alterações borraram as linhas entre a lei militar e a legislação penal, fazendo os EUA entrarem em conflito sobre a forma ideal de processar membros da Al-Qaeda que são parte de uma organização criminosa que, ao mesmo tempo, está em guerra contra os EUA e seus aliados.
Borraram as linhas entre papéis militares e civis, como o fornecimento de ajuda e desenvolvimento. Considere o caso dos membros das equipes de reconstrução provincial em zonas de guerra como o Afeganistão, onde eles são basicamente assistentes sociais armados.
Borraram as linhas entre público e privado. Empreiteiros privados agora lidam com um número considerável de funções militares que anteriormente seriam de funcionários públicos. Isso suscita questões legais e contábeis espinhosas. Por exemplo, um funci0nário terceirizado envolvido no programa de drones da CIA pode ser acusado de assassinato se um civil for morto num ataque com esse avião?
Borraram as linhas entre os militares e a comunidade de inteligência. Quase não se comenta mais que a CIA virou uma espécie de organização paramilitar que, por estimativas conservadoras, matou cerca de 3 mil pessoas com ataques de drones no Paquistão e no Iêmen apenas durante o governo do presidente Barack Obama.
Borraram as linhas entre interno e externo. A agência de espionagem mais bem financiada do Pentágono, a NSA, foi montada para conter as ameaças de uma União Soviética com armas nucleares.
Essas mudanças corroeram conceitos tradicionais de soberania. Com cada vez mais Estados desenvolvendo tecnologias que lhes permitem “chegar ao interior” de outros Estados com um risco pequeno (seja usando tecnologias de drones, sistemas de vigilância ou ferramentas cibernéticas), a natureza e significado de soberania está mudando.
Como observou o historiador Charles Tilly: “A guerra fez o Estado, e o Estado fez a guerra”.
Se a guerra está mudando, o Estado mudará e também as organizações não estatais que desafiam cada vez mais esses Estados e as organizações internacionais que buscam canalizar o comportamento do Estado. Como evoluirão essas mudanças é difícil de prever, mas elas provavelmente serão tão profundas quanto a transformação do mundo pré-Vestfaliano no mundo moderno de Estados-nação.
FONTE: O Estadão