Por Ten Cel Anselmo de Oliveira Rodrigues
A crise entre russos, europeus e norte-americanos envolvendo a Ucrânia tem sido noticiada nos principais veículos de mídia do Brasil e do mundo. A escalada da crise envolvendo esses países e o consequente temor da eclosão de uma guerra, tem chamado a atenção da comunidade internacional.
Considerando a sensibilidade do fato em si, bem como a intensa dinâmica de tudo que ocorre no contexto dessa crise, torna-se importante entender em que medida a Ucrânia é importante para a Rússia, que não titubeou em se engajar em uma disputa política com a principal potência do mundo: os Estados Unidos da América.
E, assim, este artigo tem por objetivo analisar a importância geopolítica da Ucrânia para Moscou. Para tanto, ele destinará um olhar sobre a importância geopolítica da Ucrânia em seis distintas perspectivas: histórica, militar, psicossocial, econômica, política e estratégica. Dessa forma, acredita-se que será possível proporcionar ao leitor
uma ferramenta que lhe permita compreender melhor a atual crise no Leste Europeu.
A- Importância histórica
Devido aos fortes laços históricos que unem ucranianos e russos há séculos, a Ucrânia ocupa uma posição muito relevante na história da Rússia. Nos séculos VIII e IX, o cristianismo foi trazido de Bizâncio para Kiev, religião que serviu de âncora para o estabelecimento da Rússia de Kiev, que foi o antigo Estado eslavo do qual russos, ucranianos e bielorrussos modernos extraem sua linhagem. Para sedimentar ainda mais essa relação histórica a cidade de Kiev, atual capital da Ucrânia, já foi a capital da Rússia de Kieve entre os séculos X e XII.
Outro fator histórico proeminente nessa relação é a Crimeia. Um fato que é importante grifar sobre a Crimeia é que a mesma fazia parte da Rússia até o ano de 1954. Nesse ano, debaixo do chapéu da ex-URSS e sob a justificativa de fortalecer os laços fraternais entre o povo ucraniano e o povo russo, o então líder soviético Nikita
Khrushchev transferiu a Crimeia da Rússia para a Ucrânia. Entretanto, desde a queda da ex-URSS, o governo russo começou a ser pressionado por vários nacionalistas russos residentes na Rússia e na Crimeia para que a península retornasse ao domínio russo.
Foi nesse contexto que houve a tomada da Crimeia em 2014, evento divisor de águas nas relações internacionais, pois, desde a 2ª Guerra Mundial, foi a primeira vez que um Estado europeu anexou o território de outro Estado. Pouco comentado em terras brasileiras, esse conflito foi considerado como o mais sangrento da Europa desde as
guerras dos Balcãs (eclodidas na década de 1990), tendo registrado mais de quatorze mil mortes.
B- Importância militar
Em termos militares, a Ucrânia ocupa uma posição estratégica, na medida em que está situada em uma região que Vladimir Putin denomina de linha vermelha. Em termos práticos, o país ou a organização que avançar essa linha, fatalmente gerará numa reação militar da Rússia.
Diante desse contexto, surge outro fator de relevo que tem incomodado as elites russas desde a década de 1990, qual seja: OTAN. O alargamento feito pela OTAN após a Guerra Fria tem gerado desconforto para Moscou. O movimento geopolítico mais audacioso feito pela OTAN em direção à Rússia ocorreu em 2004, ocasião em que a
OTAN adicionou sete membros, dentre os quais se destacam as antigas repúblicas bálticas soviéticas (Estônia, Letônia e Lituânia), manobra que não foi bem digerida pelas autoridades russas, mas que não gerou reações de Moscou.
Entretanto, em 2008, quando a OTAN manifestou sua intenção de incluir a Ucrânia e a Geórgia em sua aliança militar, a Rússia deixou claro que uma linha vermelha havia sido ultrapassada. Nas semanas que antecederam a cúpula da OTAN em 2008, o presidente Vladimir Putin alertou os diplomatas norte-americanos que as medidas para trazer a Ucrânia para a aliança militar seriam consideradas como sendo um ato hostil à Rússia. Não por acaso, meses depois, a Rússia entrou em guerra contra a Geórgia.
C- Importância psicossocial
Conforme descrito anteriormente, a Rússia possui fortes laços históricos com a Ucrânia. Das 48 milhões de pessoas que vivem atualmente na Ucrânia, 8 milhões são russos que residem no sudeste ucraniano e que são favoráveis a uma aproximação com a Rússia. Sob a justificativa de zelar pelo bem-estar de sua população russa, Vladimir Putin reivindicou o dever de proteger essas pessoas como pretexto para realizar suas ações na Ucrânia.
A par disso, caso haja um movimento geopolítico que pendule a favor dos países ocidentais, tal fato poderá desencadear uma série de eventos importantes nas esferas regional e global. Dentre esses fenômenos, o destaque fica por conta de uma provável onda de refugiados russos residentes na Ucrânia indo em direção à Rússia. Caso isso ocorra, a mobilidade humana forçada fatalmente causará danosos efeitos colaterais para a Rússia e para o sistema internacional como um todo.
Os russos que vivem na própria Rússia são outro elemento psicossocial significativo. A intervenção da Rússia na Ucrânia em 2014 evidenciou que a maior parte da população russa foi favorável à anexação da Crimeia. Em pesquisa realizada logo após a anexação da Crimeia, os índices de aprovação de Vladimir Putin por parte de sua população aumentaram exponencialmente, alcançando mais de 80% de aprovação.
D- Importância econômica
Em termos econômicos, a Ucrânia ainda exerce papel central na economia russa. Em que pese a Rússia ter concluído, em meados de 2021, a construção do Nord Stream 2, gasoduto que se desenvolve sob o Mar Báltico e que liga a Rússia à Alemanha, constata-se que o mesmo não terá a capacidade necessária para escoar todo o gás natural que a Europa precisa e compra de Moscou. Dessa forma, a Ucrânia continuará ocupando uma posição central na economia russa, haja vista que a maior parte do gás natural que a Rússia vende para a Europa é, e ainda continuará sendo, escoada por gasodutos que passam pela Ucrânia, algo que movimenta anualmente cerca de dezenas de bilhões de dólares em taxas de trânsito para Kiev.
Além disso, a fragilidade econômica da Ucrânia requer atenção especial da Rússia. Para que se tenha uma ideia desse tabuleiro geopolítico, antes da crise em 2014, a Ucrânia era um dos principais destinos da ajuda externa dos Estados Unidos da América e recebia em média cerca de US$ 200 milhões por ano. Após 2014, Washington aumentou seu apoio a Kiev e passou a enviar mais de US$ 600 milhões anualmente.
E- Importância política
O colapso da ex-URSS e a consequente independência da Ucrânia na década de 1990 descortinaram a real importância política da Ucrânia para Moscou, pois muitos políticos russos viram o divórcio com a Ucrânia como sendo um erro fatal e uma derrota política histórica.
Na visão de Dungin, teórico mais influente na geopolítica adotada por Vladimir Putin, a independência da Ucrânia representou uma ameaça à posição da Rússia como grande potência. Nesse sentido, para Vladimir Putin, perder o controle permanente da Ucrânia e deixá-la cair na órbita ocidental significarão uma grande derrota e servirão de como um balde de água fria em suas pretensões de tornar a Rússia grande novamente.
Outro fator político substancial são os bônus políticos auferidos pela Rússia após o conflito com a Crimeia. Sob a perspectiva das relações internacionais, percebe-se que a maneira como se deu o conflito, sem a intervenção ou intromissão dos países ocidentais, acelerou o processo de mudança que já estava em curso no sistema internacional, que lentamente migrou de uma tese de segurança unipolar para uma realidade de segurança multipolar.
F- Importância estratégica
Em termos estratégicos, verifica-se que a importância estratégica da Ucrânia remonta aos tempos da ex-URSS. Nessa época, a Ucrânia era a segunda república mais importante da ex-URSS, ficando atrás apenas da Rússia. Formava com a Rússia uma espécie de centro de gravidade do poder soviético, uma vez que a mesma era responsável por grande parte da produção agrícola soviética, abrigava parte do arsenal nuclear soviético, sediava boa parte da base industrial de defesa soviética e era um local onde havia importantes bases militares soviéticas, com destaque para a frota do Mar Negro. Segundo analistas russos, a Ucrânia era tão vital para a ex-URSS que sua decisão de romper os laços em 1991 foi um duro golpe para Moscou.
Analisando o conflito com a Crimeia sob um olhar estratégico, nota-se que, ao tomar a Crimeia, a Rússia solidificou seu controle em uma posição crítica no Mar Negro. Com uma presença militar robusta na Crimeia, a Rússia fica em condições de projetar poder em locais como o Mediterrâneo, o Oriente Médio e o norte da África, onde historicamente tem influência limitada.
Em meio a uma crise, analisar um fenômeno em curso é desafiador, mas necessário. Dito isso, é importante frisar que este artigo não possuiu a pretensão de esgotar o assunto e nem tampouco pretendeu se posicionar nessa disputa que envolve norte-americanos, russos e europeus, mas tão somente procurou dar luz sobre os fatos e os aspectos que, segundo os russos, tornam a Ucrânia importante geopoliticamente para Moscou.
De todos os elementos que foram apresentados neste artigo, chamou a atenção o posicionamento da população russa em 2014, ocasião em que a mesma apoiou as ações de Vladimir Putin junto à Ucrânia. Tal atitude indica que o mandatário russo não deverá encontrar maiores problemas para obter o apoio de sua população, em face de uma improvável e eventual investida russa na Ucrânia nos dias atuais; apoio que não deve ser obtido por Joe Biden e pelos líderes europeus, uma vez que norte-americanos e europeus não possuem os laços históricos e culturais que os russos possuem com a Ucrânia.
Por fim, acompanhando a evolução dos acontecimentos e com base no que foi escrito, visualizo que a probabilidade de ocorrer um conflito bélico é pequena, e que o mais provável é que a crise continue em seu processo de escalada e que a Rússia não deverá abrir mão de continuar exercendo o seu controle junto à Ucrânia, posicionada em seu Heartland.
FONTE: EBlog