Por Matheus Gouvea de Andrade
A aprovação dos orçamentos nacionais de 2024 de muitos países registrou expansão dos gastos militares, motivada por conflitos recentes como a guerra na Ucrânia e o aumento das tensões no Indo-Pacífico. Uma tendência mundial de alta que se reflete também em pressões no Brasil.
Entre os integrantes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), há convergência cada vez maior para a meta da aliança de destinar ao menos 2% do PIB à defesa. A Otan estima que 11 de seus países membros atingirão esse patamar em 2023, contra sete do ano passado.
Na Alemanha, que na década passada vinha resistindo a ampliar seus gastos militares, a guerra na Ucrânia levou a uma virada de época entre os alemães sobre como encarar as despesas com defesa. Agora, a expectativa é que o país atinja a meta de 2% em 2024.
O Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), organização de referência no mapeamento de gastos militares, identificou em 2022 um recorde histórico nas despesas globais com defesa, de 2,240 trilhões de dólares, 3,7% a mais do que no ano anterior. Dados preliminares indicam que a tendência de alta se manteve em 2023, diz Xiao Liang, pesquisador do programa de despesas militares e produção de armas da entidade.
“Os principais fatores para o aumento das despesas militares, tais como conflitos, tensões geopolíticas e percepções de ameaça, continuam persistindo: a guerra na Ucrânia segue impulsionando as despesas da Rússia e da Ucrânia, bem como de outros países europeus, enquanto as tensões crescentes no Indo-Pacífico estão elevando as despesas na Ásia”, diz.
Além disso, ele aponta que alguns fatores que abrandaram o crescimento dos gastos em 2022, como inflação elevada e crises econômicas, foram menos significativos neste ano, sugerindo potencial para um crescimento mais substancial desses gastos. Nos Estados Unidos, o Congresso aprovou uma alta de 3% no orçamento militar para o próximo ano, e há ainda a possibilidade de ampliação de verbas para a área.
Fim do “dividendo da paz”
A alta dos gastos militares nos últimos anos interrompeu uma trajetória de queda de despesas do setor que vinha desde o final da Guerra Fria. Nesse período, a possibilidade de destinar verbas para outros setores que não o de defesa, especialmente gastos sociais, foi descrita por alguns líderes como “dividendo da paz”.
Em 2023, a diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, afirmou que a guerra entre Ucrânia e Rússia levava a mensagem de que os gastos militares deveriam ser elevados, e que os dividendos desse período haviam chegado ao fim.
“As despesas com defesa estão aumentando a nível internacional, após 30 anos de baixas”, aponta Hubertus Bardt, chefe de pesquisa do Instituto Econômico Alemão. “Esses custos adicionais conduzem a impostos mais elevados, a déficits maiores ou a cortes em outras partes dos orçamentos públicos. (…) As prioridades exigidas constituem um problema político, uma vez que os cortes no consumo governamental e nos assuntos sociais são difíceis de aplicar.”
Para ele, o conflito entre despesas sociais e possíveis investimentos em temais mais recentes, como digitalização e descarbonização, será ainda mais problemático se a defesa necessitar de orçamentos adicionais.
“Muitas vezes, é politicamente mais viável e menos dispendioso cortar investimentos com custos de longo prazo do que cortar despesas sociais”, aponta. “Receio que esforços adicionais de descarbonização possam ser adiados devido a ameaças externas à segurança.”
Liang lembra que a história mostrou que os países estão “mais do que dispostos a contrair empréstimos, aumentar os impostos ou cortar outras áreas de despesas para aumentar os gastos militares”.
Brasil no mesmo caminho?
No Brasil, alguns políticos e militares estão se articulando para ampliar os gastos militares. Em outubro, o senador Carlos Portinho (PL-RJ) protocolou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para que o país destine à defesa 2% do PIB.
Militares também citam a escalada de tensões entre Venezuela e Guiana, que fazem fronteira com o Brasil, como um motivo para aumentar as verbas para a área e renovar os armamentos que o país dispõe.
Marcos Barbieri, professor de economia da Unicamp e especialista em indústria de defesa, afirma que a expectativa é que os conflitos atuais tragam maior atenção da sociedade para o tema, e que isso se reflita no Congresso. Ele avalia que seria necessário aumentar as verbas do setor no país.
Segundo cálculos do pesquisador, o Brasil teve, de 2000 a 2018, uma média de gastos com defesa de 1,4% do PIB. No período de 2018 a 2022, no governo de Jair Bolsonaro, a parcela foi reduzida para 1,2%. O gasto “já era baixo, e caiu ainda mais”, diz.
“A média global é de 2,2%. Os gastos do Brasil são muito aquém das necessidades que um país continental com os níveis de riqueza e necessidade de operar por conta própria precisa”, afirma Barbieri, que destaca que o Brasil não participa de grandes alianças que garantam operações conjuntas.
Contudo, ele pondera que uma mera alta dos gastos, sem definir melhor o destino da verba, pode não ser produtiva. “A PEC atual tem apenas previsão para aumentar para 2% do PIB a parcela do Orçamento. Mas, sem solucionar a questão estrutural, não resolve o cerne da questão”, afirma.
No caso da Otan, 20% dos gastos com defesa vão obrigatoriamente para investimentos, o que “já seria razoável”, aponta Barbieri, que lembra que a média recente é de apenas 8,8% no Brasil. Além disso, o país gasta cerca de 80% do seu orçamento de defesa com pessoal, bem acima da média de 50% de países ocidentais.
“Seria mais interessante garantir as verbas para projetos estratégicos, que sequer deveriam sofrer contingenciamento. Apenas ampliar o gasto não é tão vantajoso, já que não tem garantia de que irá para investimento”, aponta o pesquisador. Barbieri lembra que, com frequência, os desenvolvimentos do setor militar que levam mais retorno à sociedade civil vêm justamente das verbas destinadas a novos projetos.
Oportunidades para indústria nacional
No caso do Brasil, o cenário de alta de gastos militares pode apresentar oportunidades para exportações. Um destaque é a Embraer, que foi criada com características de produção militar e, segundo Barbieri, está sendo bem sucedida neste âmbito nas atuais circunstâncias.
A aeronave KC-390 vem ganhando espaço no segmento de transporte de médio porte. “Praticamente não há concorrentes no ramo, e do ponto de vista geopolítico o Brasil é um país que praticamente não encontra restrições”, afirma ele. A aeronave já foi vendida para países como Portugal, Áustria, Holanda, Hungria e República Tcheca, que são integrantes da Otan, além de Coreia do Sul e Arábia Saudita.
Segundo o pesquisador, os últimos governos apoiaram as exportações militares, o que teve continuidade em uma política de incentivo, especialmente após a Estratégia Nacional de Defesa lançada em 2008. No entanto, a crise financeira impactou as verbas para investimentos.
“Os gastos de pessoal apresentam elevada rigidez, dado que parte destes engloba os militares da reserva e não há como reduzir estes valores, e os ajustes nos gastos com militares da ativa são muito difíceis”, explica Barbieri. Como também não há como ter grandes mudanças nos gastos com custeio, dado que há um mínimo necessário para manter as forças operacionais, o ajuste do orçamento militar acaba sobrando para a parcela destinada aos investimentos.
Em 2023, o cenário teve algumas alterações. “O BNDES está com maior participação no apoio setor e vem sendo bastante ativo”, avalia Barbieri. O Novo PAC, lançado em agosto, também estipula investimentos de R$ 52,8 bilhões em projetos de defesa.
FONTE: DW