Por Cel Wagner Alves de Oliveira*
Ademais de sua reconhecida situação como ator regional de destaque, assim considerados a América do Sul e parte da África Ocidental, a condição de proeminência do Estado Brasileiro como um ator global passa a ser vislumbrada, à medida que se almeje uma posição de maior relevância do País junto à comunidade internacional. Neste mister, a despeito de seu envolvimento junto a diversos organismos internacionais da mais alta relevância, tais como a ONU, a OMC, os BRICS, a ZOPACAS, a CPLP e outros, em se tratando de questões ligadas às contribuições para a estabilidade e segurança internacionais, a demonstração mais significativa do envolvimento do Brasil estará provavelmente ligada ao seu engajamento nas Operações de Manutenção da Paz (OMP) da ONU.
A esse respeito, o marco inicial da participação brasileira nas OMP foi estabelecido em 1957, quando, durante os dez anos seguintes, cerca de vinte Batalhões de Infantaria foram sucessivamente integrados à Primeira Força Emergencial das Nações Unidas (UNEF I), encarregada de monitorar o cessar-fogo do conflito árabe- israelense. Depois de ter enviado contingentes para Moçambique, Angola e Timor Leste (entre o final dos 1990 e início do século atual), no ano de 2004, o Brasil assumiu a liderança do componente militar da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH).
A missão foi criada em 30 de abril daquele ano, com o objetivo de restaurar o estado de direito, a segurança e a normalidade daquele país caribenho, após episódios de turbulência política e violência, os quais culminaram no exílio do presidente haitiano Jean Bertrand Aristide. Mais tarde, ainda durante a vigência da MINUSTAH, um terremoto de magnitude 7.0 na escala Richter que devastou o país em 2010, além do furacão Matthew, que afetou severamente a vida dos haitianos em 2016, representariam significativos desafios adicionais para as habilidades e capacidades dos mantenedores da paz.
Portanto, com relação à participação do Brasil naquela que se tornou a maior contribuição do País para a Manutenção da Paz, pode-se destacar que, ao longo de 13 anos, cerca de 37.500 militares das Forças Armadas brasileiras integraram as tropas do Batalhão de Infantaria e da Companhia de Engenharia de Força de Paz no Haiti. Além disso, a liderança do componente militar, durante todo aquele período, coube a um Oficial General do Exército Brasileiro, evidenciando o prestígio obtido perante a comunidade internacional. Como um todo, o País já contribuiu com efetivos para mais de 40 missões de paz da ONU, tendo destacado aproximadamente 51.000 “capacetes azuis”, cujos esforços tem sido tradicional e amplamente reconhecidos pela qualidade proporcionada e pelos resultados atingidos.
Diante de tal êxito obtido pelos militares brasileiros servindo sob a égide das Nações Unidas emergem, eventualmente, os seguintes questionamentos: quais características ou recursos poderiam representar o real diferencial a esse respeito, evidenciados pela elevada reputação construída pelos peacekeepers brasileiros? Haveria aspectos relacionados a uma certa “personalidade coletiva brasileira” que poderiam ter contribuído de alguma forma para os resultados que se tem alcançado nas Operações de Paz? Em suma, como as forças de paz brasileiras poderiam ter influenciado positivamente – e como poderão influenciar no futuro – o aprimoramento da eficiência das Operações de Manutenção da Paz?
Talvez, certas atitudes demonstradas por nossos capacetes azuis em distintos episódios possam estar respaldadas em fontes literárias de raízes as mais ancestrais, relativas à concepção do preparo e do emprego de agrupamentos militares. Vale aqui referenciar a obra “A Arte da Guerra”, onde Sun Tzu ensina que “ao reunir um exército e concentrar suas forças, deve-se misturar e harmonizar seus diversos elementos antes de instalar seu acampamento”. Corroborando tal conceito, a epopeia e o êxito em Guararapes atestam de forma mais que fidedigna a mistura e a harmonia citadas pelo general e sábio chinês, naquele episódio em que não somente nasceu o Exército Brasileiro, mas também surgiria pela primeira vez a noção de Pátria em terras brasileiras.
Inevitável seria, então, inferir a respeito da gênese da sociedade brasileira. Em seu “Tratado da terra e gente do Brasil”, o padre português Fernão Cardim realça o espírito de solidariedade por ele observado no povo brasileiro de finais do século XVI, quando escreve que “logo comem tudo o que têm e repartem com todos (…)”. Já Marcos Góes em sua obra “Dom João: o Trópico coroado”, destaca outras características do brasileiro com o qual o imperador teria contato a partir de 1808 como “de menor rigor que o europeu, mais generoso e de fácil trato, ligado à família, mais trabalhador que aventureiro.” Da mesma obra se pode extrair o comentário de que “o Rio de Janeiro, espelho do Brasil e capital do Vice-Reino, (…) era uma mistura de povos, de raças e de intenções. Tudo nele ostentava a marca da improvisação, do fortuito, da adaptação, do arranjo, do eventual.”
Examinar Gilberto Freyre permitiria entender a ligação entre as atitudes cotidianas e as características intrínsecas ao povo brasileiro, como resultado da “miscigenação que largamente se praticou aqui”, quando se infere sobre todo o ganho do qual se beneficiaram os entes da sociedade brasileira, a partir de atributos advindos de suas raças formadoras. Do indígena, nos teria vindo o gosto pelos jogos como parte do processo de socialização; do negro, e da negra em particular, o aporte sentimental, representado tanto pela ternura maternal das amas-de-leite quanto pela amizade fiel dispensada pelas mucamas às sinhazinhas; e do português, Freyre destaca o aspecto contemporizador, dotado que era de “plasticidade social suficiente para se misturar aos índios e aos escravos negros”.
Certamente, o exame de literatura concernente à formação da sociedade brasileira não compatibilizaria perfeitamente todo um comportamento social e os atributos desejáveis de serem evidenciados nas Operações de Manutenção da Paz. Da mesma forma, o estudo de incontáveis episódios protagonizados por peacekeepers brasileiros não responderia à totalidade das perguntas e não traria as soluções perfeitas para os duros desafios enfrentados pelos mantenedores da paz nos dias atuais. No entanto, da análise em pauta podem-se destacar alguns aspectos, a título de conceitos atitudinais, tais como a liderança, a confiança mútua, a inventividade, a tenacidade, o preparo técnico-profissional e a conquista dos corações e mentes. Tais aspectos encontram seus homólogos na literatura citada anteriormente, a qual descreve as características da brasilidade, do jeito brasileiro de ser. Mais que isso, tais características são encontradas no dia a dia de nossos homens e mulheres, de Norte a Sul, entre os que vestem as fardas verde-oliva, cinza ou azul, e entre seus co-irmãos civis.
Estudos de caso possibilitariam, eventualmente, inferir uma eventual correlação entre os aspectos comentados anteriormente e um possível “Brazilian Way of Peacekeeping – Jeito Brasileiro de Manter a Paz”. À abordagem como um todo pode-se associar o fato de que o binômio “cordialidade e firmeza” tem sido colocado em prática pelas forças de paz brasileiras ao longo da história de seu envolvimento nas Operações de Paz da ONU, o que também tem aportado substantiva contribuição para o êxito obtido desde Suez, nos anos 1950-60, até os dias atuais. Por fim, observa-se que a hospitalidade, a solidariedade e a bondade genuína, enquanto características do povo brasileiro, sua serenidade e boa-vontade na relação com os demais seres humanos – independentemente de questões políticas, étnicas ou religiosas – são transferidos, em certa medida, para o emprego das tropas brasileiras nas Operações de Manutenção da Paz da Organização das Nações Unidas.
(*): O autor é Coronel de Infantaria do Exército, Doutor N.S. em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e Mestre em Defesa e Estudos Estratégicos pela Universidade de Defesa Nacional da República Popular da China.
FONTE: Observatório Militar da Praia Vermelha