Quando Alves voltou, seu cigarro estava no chão. Ele se abaixou imediatamente para pegá-lo, e não se levantou mais.
“Foi um tiro só”, relataram os dois policiais que estavam ao lado de Alves quando sua pistola Taurus PT 100 caiu do coldre preso ao seu colete e disparou sozinha. A bala atingiu a cabeça do policial, entre seus olhos. Ele morreu na hora, deixando dois filhos e sua mulher.
Alves é um dos 55 casos de policiais brasileiros atingidos por disparos acidentais de pistolas e metralhadoras em todo o país reunidos no site Vítimas da Taurus. A intenção dos criadores do portal, que também estão entre as vítimas, é pressionar o Exército – regulador da produção no país – a proibir definitivamente a fabricação e o uso das armas feitas pela empresa.
Eles também pressionam pela abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Congresso Nacional, exigem que a Taurus indenize as vítimas e pedem que o governo abra o mercado para que seja possível a importação de outras marcas.
A Taurus, por sua vez, negou à BBC Brasil que seja culpada pelos incidentes e afirmou ser vítima de uma “campanha” contra sua reputação. Ao ser questionada sobre o número de acidentes, a empresa disse que os policiais tinham muita dificuldade de lidar com armas modernas de pronto emprego, como as pistolas da Taurus – a empresa diz acreditar que parte dos acidentes tenha sido causada por falhas dos próprios policiais.
Por outro lado, o governo estadual paulista decidiu proibir a compra de novas Taurus durante dois anos.
A decisão, publicada no Diário Oficial na última semana, ocorreu após a Polícia Militar paulista produzir um laudo que apontou que 5.931 submetralhadoras modelo SMT 40, compradas por R$ 21 milhões, tinham defeitos de fábrica.
Todas as armas estão guardadas há cinco anos e nunca chegaram a ir para as mãos dos policiais do Estado. O governo afirmou à BBC Brasil, em nota, que os “laudos periciais atestam irregularidades nas armas fornecidas pela empresa” e que “os PMs paulistas participam de rigoroso treinamento nas academias de polícia, com destaque para o método Giraldi, desenvolvido em São Paulo e reconhecido internacionalmente”.
A gestão disse ainda que está adotando as medidas previstas em contrato e que vai esperar a conclusão do processo para definir se haverá substituição das armas ou devolução do dinheiro.
A Taurus não reconhece esses estudos e afirmou que os laudos concluídos até hoje não apontaram falhas nas armas.
Pode disparar sozinha
Embora negue falha nas armas, o vice-presidente da Taurus, Salesio Nuhs, reconheceu em entrevista à BBC Brasil que a empresa cometia erros de comunicação e falhou no passado por não ter treinado os policiais para manusear suas armas.
Só em agosto de 2016, a empresa assumiu que as pistolas podem disparar sozinhas ao cair no chão e incluiu a informação em seus manuais de instrução. “Depois que a Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC) comprou a Taurus, em agosto do ano passado, a gente se aproximou dos policiais. Oferecemos treinamentos online e muitas informações sobre as armas para evitar acidentes. Também passamos a recolher e revisar todas as armas do Brasil inteiro sem custo”, afirmou.
A Taurus é uma empresa brasileira de capital aberto, fundada em 1939 e comprada pela Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC) em 2015. Ela tem três fábricas no Brasil e uma em Miami, nos Estados Unidos – onde é a quarta maior fornecedora de armamentos.
Em setembro deste ano, um policial morreu após sua arma disparar sozinha quando ele caiu de uma moto no Rio de Janeiro. O tiro acertou sua perna e ele morreu no hospital após perda excessiva de sangue.
Os criadores do site “Vítimas da Taurus” suspeitam que pode ter ocorrido uma falha da arma, mas não consideram esse caso por não terem certeza. A página contabiliza apenas os “casos confirmados de defeito da pistola” – seus administradores afirmam que, durante a queda, uma blusa pode ter enroscado e acionado o gatilho, por exemplo.
Durante uma semana, a BBC Brasil conversou com mais de 20 policiais de diversos Estados. Entre eles, sargentos, tenentes, coronéis e soldados da PM, além de agentes federais e investigadores da Polícia Civil. Todos relataram insegurança ao usar as armas da Taurus e disseram que gostariam de poder escolher entre outras marcas. Eles também relataram conhecer vítimas de disparos involuntários de armas da marca brasileira.
Redes sociais
Em páginas no Facebook e em dezenas de vídeos publicados no YouTube, há policiais de diversas regiões do país fazendo demonstrações de pistolas e metralhadoras da Taurus falhando. Um dos vídeos, que também viralizou em grupos de WhatsApp de policiais militares, mostra uma pistola Taurus aparentemente disparando sozinha após ser chacoalhada, com o dedo fora do gatilho. O vídeo já registrou mais de 850 mil visualizações no Youtube.
Em outro vídeo publicado por policiais de Brasília, uma submetralhadora regulada para disparar um tiro por vez parece fazer disparos em rajada. Outra arma do mesmo modelo também foi filmada, segundo os autores do registro, dando uma sequência de tiros logo após um policial apenas encaixar um pente carregado com munição.
Em outra filmagem feita por policiais do Piauí, uma carabina da fabricante dispara, de acordo com eles, mesmo estando travada.
O vice-presidente da Taurus afirmou que não comentaria a morte do policial no Maranhão, caso que abre esta reportagem, porque o laudo ainda não ficou pronto. Em relação aos vídeos, ele voltou a dizer que nenhum laudo comprovou falhas nas armas.
Ao comentar o fato de a empresa ser alvo de 40 ações na Justiça por disparos involuntários, Nuhs disse que a Taurus não é culpada pelos acidentes e ressaltou que a empresa nunca foi condenada. “Produzimos 160 mil pistolas modelo 24/7, e nenhum laudo diz que elas são defeituosas. As evidências técnicas feitas não validam a tese de que a Taurus é culpada por esses disparos. Existe uma campanha contra a Taurus.”
Um dos motivos que leva a Taurus a ser a maior fornecedora de armas no Brasil é uma portaria do Exército prevendo a preferência de compra de armamentos nacionais quando houver similares aos importados. Esse é o caso das pistolas .40 – que incluem os criticados modelos 24/7, PT 100 e 840, fabricados pela Taurus – usadas por quase todos os policiais do país.
Não há informação de quantas dessas armas suspeitas de falhas estejam nas mãos de policiais e empresas de segurança em todo o país. Mas governos de alguns Estados e o Exército já começaram a se mobilizar para barrar a produção dessas armas e parar de comprar armamentos da fabricante brasileira.
Proibição e boicote
Após uma série de denúncias e ações judiciais movidas contra a Taurus, o Exército decidiu investigar a produção dessas armas.
Durante uma inspeção à fábrica da empresa, o órgão encontrou irregularidades na produção de dois modelos e decidiu suspender a venda e fabricação da pistola.
Em ofício enviado ao governo do Paraná, o Exército diz que foram detectadas alterações na trava do gatilho, o que “demonstra a existência de indícios de violação de compromisso assumido de não modificar produto com produção já autorizada”.
O documento, assinado pelo General Guilherme Cals Theophilo Gaspar de Oliveira, ainda afirma que a Taurus não tem uma gestão “que busque conhecer as necessidades do cliente e seu grau de satisfação, bem como que oriente e forneça serviços de manutenção preditiva, preventiva ou corretiva”.
A empresa afirmou à BBC Brasil que o laudo do Exército não afetou sua produção porque os modelos já tinham sido parados de ser fabricados em dezembro de 2015. O estoque que restou foi lacrado e apreendido para ser fiscalizado pelo órgão.
Depois desse ofício, o governo paranaense foi autorizado a abrir uma licitação para importar 865 pistolas da marca austríaca Glock – que domina 65% do mercado americano – e entregar aos policiais do Estado. O governo argumenta que a Glock tem preço inferior e qualidade superior às armas fornecidas pela Taurus.
O governo de São Paulo seguiu o mesmo caminho e decidiu suspender por dois anos a compra de armas da Taurus após o resultado de um laudo apontar defeitos de fábrica em quase 6 mil submetralhadoras, compradas por R$ 21 milhões.
A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo informou que “a sanção imposta à Taurus foi motivada pelo não cumprimento das cláusulas contratuais pela empresa, como especificações técnicas e garantia do armamento fornecido”.
A BBC Brasil apurou que há outros Estados se mobilizando para também deixar de adquirir produtos da marca.
O vice-presidente da empresa afirmou que “existe um interesse por trás disso”. “Agora que eles não podem comprar Taurus, vão fazer o quê? Importar (armas da) Glock. É isso”, disse.
Omissões
Agentes de segurança e comandantes policiais ouvidos pela BBC Brasil afirmaram que os incidentes podem ser mais numerosos que os relatados.
Segundo eles, muitos policiais chegam a omitir casos de disparo acidental no pé, por exemplo, para não se tornar alvo de chacota dentro da corporação.
Esse é o caso do major e subcomandante do centro de instrução e tiro da PM de Goiás, Eduardo Bruno Alves. Há nove anos, ele foi atingido por sua própria pistola Taurus 24/7 após ela cair no chão e disparar sozinha. O tiro acertou seu braço direito, cruzou seu peito e saiu pelas costas.
“Eu virei alvo de piadas porque ninguém acreditava que a arma pudesse realmente disparar. Fui taxado como idiota. Hoje, a informação está muito difundida e os policiais não têm mais dúvidas de que isso acontece pela quantidade de vídeos reais provando que a arma falha”, afirmou.
Alves perdeu parte dos movimentos da mão, além de força e capacidade pulmonar, mas continua ensinando os policiais de Goiás a atirar. “Mas sem Taurus. Agora, eu só uso Imbel (produzida pelo Exército)”, afirmou.
O major afirma que os governos evitam comprar armas Imbel, também fabricadas no Brasil, porque são mais pesadas e difíceis de manusear. Alves também criou a página 1911, que possui mais de 400 mil seguidores no Facebook e se tornou uma referência de informações sobre armas.
CPI
Atingido por um disparo na perna direita após sua arma atirar sozinha ao cair no chão em 2013, o tenente Alexandre Castro, da Polícia Militar de Goiás, briga pela abertura de uma CPI no Congresso Nacional para apurar os incidentes.
Castro já fez oito cirurgias e está afastado das ruas desde o acidente. “Já colhemos a assinatura de 202 deputados e queremos que ela (a CPI) seja aberta em fevereiro”, afirmou ele. “Vamos punir a Taurus por esses crimes.”
O presidente da Associação Nacional de Praças, Elissandro Lotin de Souza, também defende a CPI. “Não concordo com monopólio de tipo algum e temos gestionado visando a essa quebra. Esse monopólio ainda obriga as polícias a comprar armas que matam eles mesmos e os deixam com problemas graves”, disse, em referência ao fato de a Taurus ser a maior fabricante e distribuidora de armas do país.
FONTE: BBC
FOTOS: BBC/Taurus/Vítimas da Taurus