Por Paulo Terron
A expressão “o céu é o limite” soa antiquada em 2015, enquanto o mundo fica cada vez mais fascinado com a rápida ascensão tecnológica dos drones. Mesmo sem a regulamentação para a utilização deles no Brasil, não é difícil encontrar quem já tenha um desses aparelhos, à venda em lojas e sites nacionais e internacionais – só é ilegal colocá-los para voar, não comprá-los. E esse é um ponto essencial da história dos drones: a complexidade de se compreender que algo com aspecto de brinquedo possa ser uma arma ou um instrumento de repressão. É também uma questão de localização geográfica: se você estiver nos Estados Unidos ou Israel, é possível que os associe prontamente à guerra; no Brasil, a divertidas imagens aéreas antes só captadas por equipamento profissional e helicópteros.
Esses veículos aéreos não tripulados (conhecidos pela sigla Vant no Brasil) têm conquistado cada vez mais espaço – e em áreas completamente distintas. Talvez seja a possibilidade de se fazer imagens aéreas, algo antes reservado apenas aos grandes estúdios de cinema ou redes de televisão. Mas a origem desses aparelhos, a mesma que permitiu e impulsionou o rápido desenvolvimento tecnológico deles, e sua utilização futura ainda são obscuras e questionáveis.
Uma piada curta expõe bem a complexidade do uso de drones em batalhas, algo feito com intensidade pelos Estados Unidos desde os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. “O Jonas Brothers estão aqui, em algum lugar, a Sasha e a Malia são fãs deles”, disse o presidente Barrack Obama em um evento da Casa Branca, em 2010, referindo-se à paixão das filhas pelo grupo pop. “Mas, rapazes, não venham com ideias. Tenho duas palavras: drones Predator – vocês nunca os verão se aproximando.” Quem passou pelo terror de ver drones militares em ação não viu graça na fala de Obama. O presidente foi duramente criticado pela falta de consideração com as vítimas – muitas delas civis – dos drones norte-americanos usados em países como Afeganistão e Paquistão. Neste ano, a temática voltou para assombrá-lo. Quando um Vant caiu no jardim da residência oficial do presidente em janeiro, os protocolos de segurança foram acionados imediatamente. Ironicamente, apenas as filhas de Obama estavam na Casa Branca no momento do incidente (o drone era de um funcionário do Serviço Secreto e a queda foi acidental).
O governo dos Estados Unidos, portanto, já está ciente dos possíveis perigos dos drones. E ele não está só: entidades de direitos humanos apontam um número de vítimas civis impressionantemente maior nas áreas em que drones são usados como arma de ataque, além de criticar duramente o uso deles em vigilância mesmo fora de zonas de conflito. Talvez por isso o processo de regulamentação do uso comercial dessas máquinas ainda seja um desafio, tanto para o Brasil quanto para os norte-americanos. Não será fácil entender os limites de um aparelho que pode ser de utilidade pública, às vezes um brinquedo, de uma arma.
CAMPEÃO DA GUERRA
EMPURRÃO DO TERROR
“Tinham couraças como couraças de ferro, e o som das suas asas era como o barulho de muitos cavalos e carruagens correndo para a batalha.” O versículo 9 do capítulo 9 do livro de Apocalipse, na “Bíblia”, é apontado por muitos como uma previsão de uma grande guerra de drones que, junto a outros acontecimentos, levaria ao fim do mundo. Mais realista é observar como uma batalha menos visível, a “guerra ao terror”, impulsionou essa tecnologia ao longo dos anos, tornando a passagem bíblica algo real para alguns países.
Os drones como os conhecemos hoje são um produto direto dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Foi depois deles que o exército norte-americano voltou a investir nesse tipo de tecnologia para poder atuar à distância em diversos países, principalmente no Iraque, Afeganistão, Paquistão e Síria. Enquanto os norte-americanos haviam se desinteressado pelos drones, a tecnologia continuou a ser desenvolvida por Israel nos anos 70 e 80 – mas não da mesma forma que ela evoluiu depois da queda das Torres Gêmeas. “O Pentágono encomendava essas máquinas mais rápido do que as empresas conseguiam produzi-las”, relata a ativista Medea Benjamin no livro “Drone Warfare: Killing by Remote Control” (“Guerra de Drones: Matando por Controle Remoto”, em tradução livre). “Em 2000, o Pentágono tinha menos de 50 drones aéreos; 10 anos depois, tinha quase 7500.”
Hoje, a partir de centrais de controle em solo ianque, pilotos e operadores comandam frotas de vigilância e ataque devastadoras. Henry Kissinger, secretário de Estado dos governos de Richard Nixon e Gerald Ford, polemizou no ano passado ao comparar conflitos antigos com recentes. Em entrevista à rede de rádio NPR, ele tentou relativizar a muito criticada ação dos EUA no Camboja, nos anos 60 e 70, quando ele fazia parte do governo. “Acredito que o princípio seja essencialmente o mesmo. Você ataca locais onde acredita que as pessoas que estão te matando operem. Você faz da forma mais limitada possível. E aposto que se alguém fizesse uma verificação honesta, haverá menos vítimas civis no Camboja do que há vítimas de ataques de drones norte-americanos.” O número de civis mortos no Camboja não é conhecido, mas estudiosos acreditam que possa estar entre 4 e 50 mil pessoas. Não é uma quantidade que possa ser considerada baixa, seja qual for.
Os críticos ao uso de veículos aéreos não tripulados alegam que a ausência física de um piloto faz com que os militares arrisquem mais – sendo que o principal risco é para a vida alheia. “Vemos silhuetas, sombras de pessoas”, contou o ex-operador de drones militares norte-americanos Brandon Bryant à BBC. “E nós matamos aquelas sombras”, completa. Bryant diz ter participado de ações que mataram mais de 1600 pessoas ao longo de cinco anos. O fato de os Estados Unidos não liberarem informações precisas sobre o programa de Vants militares só piora a situação, já que não deixa claro à sociedade como possíveis erros poderiam ser punidos. Porque, na verdade, segundo ex-militares, eles não são.
AQUELE QUE TUDO VÊ
Claro que nem só de ataque bélico sobrevive a função de um drone contemporâneo. Popular e barato, ele é personagem cada vez mais constante em diversas áreas. E, naturalmente, passou a ser um requisitado instrumento de segurança – ainda que de modo experimental. Nos Estados Unidos, a polícia de algumas cidades ainda tentam adotar o uso de veículos aéreos não tripulados. Em Seattle, por exemplo, a ideia foi tão mal recebida pela população (alegando uma invasão desnecessária da privacidade do cidadão) que os aparelhos foram devolvidos ao fabricante antes mesmo de ganharem os céus. Dependendo do modelo e seus acessórios, um aparelho desses pode vigiar uma pessoa com visão noturna, detecção de calor, identificação de placas de veículos e tudo isso com uma grande possibilidade de não ser visto. É uma linha extremamente tênue entre vigilância e espionagem.
No Brasil, a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) ainda está em processo de regulamentar a utilização comercial dos aparelhos. Por enquanto, qualquer uso que não seja militar requer uma autorização do órgão. Em ambiente urbano, o 32º Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro, em Macaé, já usou um drone em operações contra o tráfico de drogas (em e-mail, a assessoria de imprensa da PM-RJ negou que atualmente possua esse tipo de aparelho, mas se recusou a dar mais detalhes). A PM de Lavras, em Minas Gerais, também contou com apoio de um Vant em uma operação que localizou uma plantação de maconha no quintal de uma residência. Consultada pelo TAB, a Anac confirmou que a PM precisa de autorização para esse uso. “São consideradas militares apenas as integrantes das Forças Armadas e aquelas requisitadas na forma da lei para missões militares. As aeronaves de Polícia Militar são consideradas civis, conforme prevê o art. nº 107 do Código Brasileiro de Aeronáutica”, disse a agência por meio de comunicado.
Já a FAB (Força Aérea Brasileira) – que não precisa de autorização da Anac – tem investido no uso de Vants para vigilância. Desde abril de 2011 a unidade aérea 1°/12° Grupo de Aviação já usou drones nas Operações Ágata (na fronteira do Brasil, de 2011 a 2014), nas ações de segurança durante a Rio+20 (em junho de 2012), Copa das Confederações (julho de 2013) e na Copa do Mundo (junho e julho de 2014). A base fica em Santa Maria (RS), onde estão quatro Vants de fabricação israelense Hermes 450 e um Hermes 900. Segundo a FAB, eles “são equipados com sistemas eletro-ópticos capazes de localizar e acompanhar alvos tanto de dia quanto de noite, e assim podem cumprir missões de busca, controle aéreo avançado, reconhecimento, Garantia da Lei da Ordem, dentre outras”. Nos próximos anos, há planos para que novas unidades como a de Santa Maria sejam criadas nas regiões Centro-Oeste e Norte.
A utilização mais ampla dessa tecnologia – sem que ela seja regulamentada – abriria as portas para um universo de incertezas, como questiona Jorge Machado, professor de Gestão de Políticas Públicas da USP (Universidade de São Paulo). “Será que as imagens de uma pessoa que está participando de uma manifestação – ou andando na rua – podem ser usadas contra ela? E se elas estão sendo filmadas e fotografadas sem saber? É um problema muito sério”, afirma. “Creio que precisaríamos de legislação que protegesse mais o cidadão de uma invasão de privacidade da qual ele não tem o mínimo conhecimento – e contra a qual ele não tem nem como reagir. A solução é essa: legislar, não demonizar o drone. Assim como é feito com a internet”, completa.
Por enquanto, a situação é complexa. Pense na seguinte cena: você está em casa em um domingo ensolarado, vendo TV, e um drone surge na sua janela com a câmera virada para você. O que fazer para punir o responsável por essa invasão da sua privacidade? Não muito. É possível se queixar à Anac, que vai analisar se aquele voo foi irregular – mas só se houver uma suspeita de que há algo de errado e, mais que isso, você tenha indícios da possível infração (imagens do aparelho em ação, por exemplo). O órgão considera as denúncias essenciais, mas como a quantidade delas é grande, não tem como investigar as que não venham com informações concretas. E isso tudo seria apenas relativo a um possível voo irregular, não à invasão da sua privacidade.
“Por enquanto não existe uma legislação específica sobre isso, mas o Código Civil tem um dispositivo que protegeria a pessoa de ter a intimidade violada. Ela poderia submeter isso ao judiciário”, explica a advogada Tais Borja Gasparian, mestre pela Faculdade de Direito da USP e especialista em direito civil. “É o artigo 21 do Código Civil, que fala que a vida privada da pessoa é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a essa norma.” Então, se você souber que sendo filmado, pode entrar com uma medida judicial com base nesse dispositivo e requerendo não ser mais. “E aí o juiz vai decidir, tentar saber quem está fazendo isso, se existe motivo, se é para a segurança nacional”, completa a advogada.
Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e professor de Propriedade Intelectual da Faculdade de Direito da UERJ, acredita que o Brasil ainda está atrasado na área relativa à privacidade do cidadão – e não só em relação aos drones de vigilância. “Vale lembrar que o Brasil não tem até hoje uma lei de proteção de dados pessoais”, diz. “Ou seja, informações das pessoas, como sua localização, seu comportamento na internet, seus traços faciais, sua biometria, os dados do seu DNA, nada disso encontra proteção legal específica no Brasil. Só para ter uma base de comparação, outros países têm leis para proteger essas questões há mais de 20 anos. Mesmo vizinhos latino-americanos, como a Argentina ou a Colômbia, já possuem suas leis sobre o tema. Com isso a situação fica completamente desregulada no que diz respeito à privacidade.” Ele aponta para uma esperança futura, entretanto: a consulta pública de um anteprojeto de lei para a proteção de dados pessoais “Este é o primeiro passo no longo caminho de formulação de uma lei semelhante no Brasil. Até isso acontecer, a situação muito provavelmente continuará como está”, afirma.
MEDO PARA TODOS
Se o caminho para a regulamentação ainda não é claro nem para os Estados Unidos, pelo menos um ponto em relação aos drones é: se você pode utilizá-los contra alguém, alguém pode utilizá-los contra você. O caso do Vant no jardim da Casa Branca foi só uma explicitação de algo que já preocupa o governo Obama há tempos: mesmo os veículos aéreos não tripulados mais básicos, vendidos em lojas, podem ser adaptados para ataques terroristas. Segundo a revista “Wired”, os EUA realizaram uma série de testes – incluindo um no qual um comboio de tanques militares guerreou com o equivalente a US$ 5 mil em drones. Quem ganhou? Os “brinquedos”. Em um mundo onde o principal inimigo dos norte-americanos, o Estado Islâmico, prospera com o uso eficiente de equipamento variado, o perigo está à espreita – rebeldes sírios estão importando Vants comuns para serem usados em ataques, segundo o governo Obama. Pode ser um exemplo extremo, mas ele é adaptável a diferentes realidades. Drones já foram flagrados entregando drogas e telefones celulares em cadeias de diversas partes do mundo, inclusive do Brasil.
Esses “desvios de conduta” dos Vants disparam um alarme de alerta nas fábricas há algum tempo. Diversos modelos comerciais têm um firmware que os impede de voar em áreas de aeroportos, e uma atualização recente da marca DJI – fabricante do popular Phantom – também impôs restrições de um raio de 25 quilômetros ao redor da Casa Branca. É só um paliativo: nada impede que os firmwares – as programações do sistema do aparelho – sejam modificados ou refeitos pelos usuários mais experientes, mas demonstra boa vontade da empresa em relação à segurança de um país traumatizado pelo 11 de setembro. Sim, os mesmos ataques terroristas que impulsionaram a tecnologia dos drones. E tudo o que vinha sendo usado contra o inimigo pode se tornar uma vantagem para ele: o controle de forma remota, a dificuldade em se identificar que está fazendo o ataque, a ousadia da falta de riscos. Repete-se também uma tradição histórica de – sempre de forma indireta – os norte-americanos fornecerem armamentos aos próprios inimigos. Se na época da guerra entre Irã e Iraque o apoio ao segundo o fortaleceu para que mais tarde ele se virasse contra os EUA, no período atual – em que o inimigo é abstrato e sem uma nação definida -, o armamento é “fornecido” por meio de uma tecnologia surgida para a guerra, adaptada para o entretenimento, e que pode ser reformatada, mesmo que com improvisos, para voltar à origem bélica.
A história aponta com clareza: sem uma regulamentação, corre-se o risco de uma tecnologia crescer descontroladamente, o que já ocorreu antes. “Veja só a história da internet, que é bastante interessante: ela começou como uma rede militar e depois acabou, gradualmente, sendo apropriada pela academia e depois pela sociedade. Ela foi desmilitarizada”, relembra o professor Machado. “Nos últimos anos, observamos a “remilitarização” e também um grande sistema de vigilância que foi criado em cima dela. É um grande dilema. Os drones são uma tecnologia que, em grande parte, foi desenvolvida por interesse militar, e agora tem um uso civil cada vez maior. Pode ser que venhamos a ter uma batalha dos drones, com civis usando-os para seguir políticos ou terroristas fazendo ataques com eles”, completa. Mais do que nunca, vale pensar com cuidado no que você vai dar de presente de Natal para seus filhos.
FONTE:UOL