Por C Alte (RM1-EN) Alan Paes Leme Arthou
Em um momento de séria crise industrial que arrastou consigo nossa economia, maior é a responsabilidade daqueles que têm de decidir sobre quem contratar para executar uma grande obra ou projeto de engenharia, principalmente a que será paga ou financiada com recursos públicos.
Há os que defendem que é mais garantido, seguro ou barato, construir em empresas no exterior, baseados, principalmente, em casos de insucesso de empresas nacionais. Outros insistem que as obras deveriam ser realizadas no Brasil. Como toda decisão tem forte influência do sistema de crenças de quem a toma, é sempre bom lembrar que os atuais tomadores de decisão, de um modo geral, são de uma geração onde a indústria nacional estava iniciando, e produzia equipamentos de projetos antigos, oriundos das indústrias estrangeiras que se instalavam aqui.
Um exemplo típico era nossa produção automobilística, que fez um Presidente, em seu discurso, chamar de carroças os automóveis aqui produzidos. Esse e outros fatores, entre eles o já famoso complexo de vira-latas, criaram uma geração que tem a impressão de que tudo do exterior é melhor e mais moderno. Embora essa maneira de pensar ainda persista em relação a equipamentos de alta tecnologia, não é um raciocínio que possa ser generalizado para qualquer equipamento ou instalação. Não é aplicável, por exemplo, em plataformas para indústria de petróleo, ou navios (mercantes ou militares), ou mesmo em instalações industriais e usinas de geração elétrica, que passarei a chamar de “contratação de grandes obras”.
Nesses tipos de projetos, já realizados no Brasil, os maiores desafios são de integração entre as diversas tarefas da obra e a logística de testes, material e pessoal. Esses desafios, aliados ao fato de que o objeto é contratado tendo por base um projeto básico, que sempre recebe melhorias e alterações durante o projeto construtivo, fazem que seja muito difícil evitar variação de preço, prazo e atendimento a requisitos, seja a obra realizada em indústria nacional ou estrangeira. Resta saber se as indústrias estrangeiras têm maior capacidade de lidar com essas capacidades que as nossas.
Dificuldades em obras grandes e complexas são comuns em qualquer lugar do mundo. Este ano foram publicadas algumas notícias sobre dificuldades no cumprimento de contratos. A primeira que escolhi citar foi publicada na revista The Economist, de 17 de agosto de 2017. O título do artigo é Efficiency eludes the construction industry. O texto, em tradução livre, informa o seguinte: “Nove anos atrás, o primeiro concreto foi lançado no aeroporto de Berlin Brandenburg. Era esperado abrir em 2012… Hoje, as únicas pessoas em seus terminais são aquelas com capacete (os operários).” O artigo lista uma série de erros e dificuldades além do atraso na entrega (que ninguém se arrisca a dar uma data) e do aumento de preço. Os erros de construção mais importantes, entre os 66 mil existentes, são:
• 90 Km de cabos instalados errados;
• 4.000 portas com numeração incorreta e
• teste do sistema de incêndio foi catastrófico.
Ainda, segundo o mesmo artigo, 90% dos projetos de infraestrutura do mundo estão atrasados ou acima do orçamento. O segundo artigo que vou citar foi publicado em 30 de maio de 2017 por The San Diego Union-Tribune com o título How Not to Build a Ship: The USS Ford. Aponta, além do atraso de 3 anos, alguns defeitos que interferem na capacidade operacional do último Porta-Aviões americano.
O leitor pode pesquisar um pouco mais e descobrir, em outras obras importantes, mundo afora, problemas similares. Um caso interessante foi a disputa entre o governo de Trinidad & Tobago e uma grande empresa de defesa do Reino Unido, quando o primeiro rejeitou, por atraso e não atendimento de requisitos, os Navios Patrulha Oceânicos (OPV) que tinha encomendado, e recebeu o dinheiro de volta.
Chamo a atenção para o fato de que não é possível analisar corretamente os motivos das não conformidades sem se aprofundar em tudo que aconteceu durante a construção, mas é possível concluir que não conformidades, atrasos e acréscimos de preço, não são eventos raros em “grandes obras”. Citei um artigo nos EUA e outro na Alemanha, para quebrar um pouco a ideia, que muitos têm, que atraso em obras é como jabuticaba, só tem no Brasil. Muitos até usam esse argumento (que obras no Brasil
atrasam) na alegação para contratar, no exterior, obras que poderiam ser feitas aqui.
Mas uma tomada de decisão desse tipo, principalmente para objetos de valores altos, não pode ser feita considerando apenas um sentimento (o de que em alguns países desenvolvidos a obra não atrasará). O contratante tem que se cercar de garantias que vão muito além da aparência ou histórico da empresa. Essas garantias não podem se resumir a multas ou fianças bancárias. Elas são muitas para serem citadas aqui e fogem ao propósito do artigo, mas deveriam ser exigidas de todos os concorrentes, nacionais ou estrangeiros, o que afastaria os aventureiros.
Além das garantias, que reduzem a possibilidade de contratar empresa que não tenha condições técnicas de honrar seus compromissos, há que avaliar quais vantagens uma empresa estrangeira possa ter sobre uma empresa nacional, para as “grandes obras” a que me referi no início. Esses tipos de obras são de montagem (estaleiros e empreiteiras não fabricam equipamentos). Uma montadora precisa ter um canteiro de obras, ter (ou ser capaz de alugar) ferramentas de trabalho (entre elas os equipamentos de manobra de peso), ter procedimentos escritos de como se faz cada tarefa para execução da obra (como se fossem receitas de bolo) e poder contar com pessoal qualificado para executar essas tarefas.
Considerando que canteiros e ferramentas existem disponíveis em qualquer parte do mundo (inclusive aqui), resta analisar a diferença entre a qualificação de pessoal e a existência de procedimentos. Nas tarefas necessárias para execução das “grandes obras” citadas, dificilmente se encontrará uma tarefa que não tenha sido realizada no país pelas empresas que trabalham no setor naval, civil ou de energia, o que elimina a possível vantagem de uma empresa estrangeira. Alguém pode alegar que o tempo decorrido entre a última obra e a que se pretende tenha provocado perda de capacitação do pessoal. Na realidade, capacitação amadurece com o tempo e isso é reconhecido pelo inciso I do §1º do art. 30 da Lei de Licitações. Nele está contida a vedação à exigência de quantitativos mínimos ou prazos máximos para caracterizar a experiência anterior dos profissionais.
Quanto aos procedimentos para as tarefas, podem ser usados os oriundos de obras já realizadas, com tarefas similares, não importando a quanto tempo tenham sido escritos. Esses procedimentos representam o acervo tecnológico da empresa. Para procedimentos novos, podem ser adquiridos os de empresas que já os tenham realizado ou, ainda, podem ser escritos, com auxílio de especialistas, se necessário. Se forem procedimentos críticos para a obra, poderão ser testados antes de serem aplicados (da mesma maneira que se faz uma seção de testes para submarinos onde os processos são testados).
A comparação, até agora, foi apenas de capacitação entre empresas e é possível afirmar que, se alguma obra similar já tiver sido realizada no Brasil, a empresa que detém os procedimentos e parte do pessoal que realizou a obra similar está tão capacitada quanto qualquer empresa estrangeira que possa comprovar os mesmos requisitos.
Analisemos, agora, os demais fatores que devem ser considerados na seleção de uma empresa para uma grande empreitada.
Do ponto de vista econômico, ao contratar no Brasil estamos criando ou mantendo empregos e aumentando a economia, enquanto uma contratação no exterior terá que ser compensada com o que exportarmos. Para obras realizadas por órgãos governamentais, se a obra for feita no país, os impostos arrecadados, de forma direta ou indireta, retornam aos cofres públicos (estamos falando da ordem de mais de 30%). Essa diferença não é levada em consideração na comparação de preços.
Temos ainda que considerar que ao final de toda obra, há que ser feita a documentação para manutenção. Essa documentação deve incluir os dados e procedimentos de manutenção dos sistemas e dos equipamentos, comprados para montar esses sistemas. O custo dessa documentação é, normalmente, elevado. Se essa manutenção será planejada e realizada no Brasil, é recomendável que essa documentação seja em português, o que encarece ainda mais o trabalho. O mesmo raciocínio é válido para obras realizadas no Brasil, quando temos que decidir se compramos equipamentos nacionais ou estrangeiros.
Um dos grandes fatores de garantia de qualidade, durante a construção, é a presença dos fiscais da obra. Mandar grande número de fiscais para um país estrangeiro é muito caro. Na prática, é usual manter, no exterior, uma pequena percentagem do número de fiscais que seriam necessários e usados se a obra fosse realizada aqui, o que provoca menor vigilância com consequente perda de qualidade. Além disso, o menor contingente provoca menos interferência com o andamento da obra, o que dá a impressão de existirem menos problemas ao se contratar essas empresas.
Finalmente, é importante lembrar o custo do transporte do objeto para o Brasil. Do ponto de vista da comunicação, a experiência mostra que a maior parte dos atritos, frustrações e ineficiências, que provocarão atrasos, erros ou retrabalhos na execução do objeto, são causados por falhas na comunicação e isso é confirmado por pesquisa do Project Management Institute (PMI). Essa dificuldade, e a quantidade de erros, aumenta quando a língua do contratante é diferente da do contratado.
Dentre as dificuldades de comunicação, a primeira que aparece é a descrição do objeto, mesmo para contratos escritos em português. Essa dificuldade fica maior quando a língua e os costumes de quem executará o serviço são diferentes dos nossos. Outro ponto da dificuldade de comunicação é entre os fiscais e os executores, durante a execução da obra. Podemos ainda dizer que, durante uma obra complexa, é inevitável que haja alterações de projeto ou dúvidas a serem esclarecidas. É necessário garantir que eventuais alterações, decisões ou esclarecimentos, não levem em consideração apenas o fator preço e prazo, mas também o propósito da aquisição do objeto e a maneira como será operado. Os responsáveis por ambas as partes estarão distantes do executor, dificultando, até mesmo, entender a dificuldade.
Um grupo de fiscalização, trabalhando no Brasil, pode sempre lançar mão de consulta a especialistas, seja de universidades ou da própria empresa. Tentar fazer essas consultas com uma obra no exterior, significa ter que arranjar um espaço maior (para viagem) na agenda desses especialistas, o que não só aumenta os custos e o prazo, mas prejudica o andamento da obra. Outra opção é tentar fazer essa avaliação por imagens e computador, o que aumenta o risco de não entendimento do problema.
Do ponto de vista das garantias, se a contratação da empresa for baseada em obras já realizadas, como saber se as pessoas com experiência em outras obras participarão realmente da obra que se está encomendando?
Outro ponto que chama a atenção é a contratação em países onde a diferença das leis trabalhistas e os cuidados com a segurança no trabalho podem ser em nível inferior ao mínimo eticamente razoável. Embora para algumas pessoas isso não pareça importante e justifique alguma economia, há que se considerar também, que o responsável pela construção de uma obra desse tipo, se não estiver preocupado com a segurança de seu pessoal, dificilmente estará preocupado com a segurança de quem irá operá-lo. Muito menos com a segurança do objeto. Esse é um ponto importante em termos de garantia: “trabalhar com pessoas que estejam engajados em fazer o melhor possível, não apenas o menor preço e no prazo, sem se importar com os outros fatores”.
Do ponto de vista da comparação entre qualificação de pessoal, o prazo para fazer algo novo sempre é maior que o prazo para fazer algo que já foi feito outras vezes. Mas não apenas os prazos são maiores quando se faz algo pela primeira vez. O número de problemas durante a execução também é maior. Ao mandar fazer, no exterior, um objeto de projeto nacional, que eles executarão pela primeira vez, ou para atender requisitos com os quais não estão acostumados, é comum que alguns desses requisitos não sejam atendidos e a dificuldade que terão será, certamente, maior do que a dificuldade de uma empresa nacional.
Do ponto de vista tecnológico, a contratação de uma empresa nacional, para uma obra que tenha algumas tarefas que nunca tenham sido executadas antes, aumenta seu acervo tecnológico e a sua capacidade de enfrentar novos desafios e competir no exterior. É o fortalecimento tecnológico da indústria, que precisamos para crescimento de nossa economia. Entregar uma obra a empresa estrangeira, é fortalecê-la em detrimento das nossas, é injetar recursos na economia de outro país.
Finalizo, afirmando que quanto mais complexo for o objeto e maior o tempo de execução, maior será o papel do projeto executivo e do gerenciamento da obra, nos problemas que ocorrerão durante a construção. Os conhecimentos e métodos de trabalho existentes no Brasil, se não forem suficientes, podem ser facilmente melhorados por contratação de assessoria. Não há justificativa técnica para construir o objeto em outro país ou contratar uma empresa para gerenciá-lo no Brasil. Quanto ao preço e prazo, não há como comparar sem considerar os fatores já citados.
FONTE: Revista do Clube Naval
NOTA DO EDITOR: O autor é membro da Academia Nacional de Engenharia