Por Hugo Resende – Pesquisador Convidado no Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA
Muitas pessoas envolvidas com P&D no Brasil já ouviram falar de TRL (Technology Readiness Level), que é uma forma de avaliar o nível de maturidade tecnológica. Na prática, a sua interpretação pelas pessoas pode ser bastante confusa. E o que realmente importa é como esse conceito é aplicado.
O TRL nasceu na NASA e hoje em dia serve a dois propósitos principais no setor aeroespacial.
“TRL é uma linguagem importante na negociação de parcerias e fornecimentos do setor aeroespacial, e também é utilizada para garantir que as incertezas de tecnologias incorporadas a produtos são bem conhecidas e baixas.”
Em primeiro lugar, TRL é uma linguagem importante na negociação de parcerias e fornecimentos. Um fornecedor que queira vender um de seus produtos para um fabricante de aeronaves, por exemplo, terá que afirmar no início da conversa qual é o TRL daquela tecnologia. A negociação pode continuar caso seja superior ou igual a 6, dependendo do estágio de desenvolvimento da aeronave. Ou seja, o TRL vai ser utilizado pelo fabricante para avaliar se a tecnologia do fornecedor tem probabilidade alta de alcançar o nível 9 de forma a garantir a obtenção do certificado de aeronavegabilidade da aeronave. Um outro exemplo tem a ver com um potencial projeto de pesquisa em cooperação com universidade ou instituto de pesquisa. Aqui o que importa é se o TRL a ser atingido ao final do projeto é inferior a 4; caso seja, o interesse do fabricante provavelmente será apenas de acompanhar, com pouca interação no projeto. A razão é simples: a probabilidade de aplicação ainda é baixa. Caso o TRL pretendido seja 5 ou 6, será avaliada a possibilidade de aporte financeiro e se a proposta atende condições mínimas para ser um projeto de sucesso.
O que está embutido no parágrafo anterior de forma não explícita é o conceito de tecnologia. Esta é a principal fonte de dúvidas e interpretações errôneas do TRL. É comum hoje em dia se confundir tecnologia e produto, usando como sinônimos os termos “desenvolvimento de produto” e “desenvolvimento tecnológico”. Na verdade, são atividades muito distintas. O produto é o fim que permite à empresa sobreviver e crescer; as tecnologias, quando bem utilizadas, são meios de conseguir produtos competitivos e diferenciados. Por exemplo, a tecnologia de simulação de escoamento de fluidos (CFD, do inglês Computational Fluid Dynamics), em suas diversas aplicações, permite o desenvolvimento de aeronaves melhores.
Para quem prefere pensar que tudo isso é apenas teoria, um alerta: a precisão na comunicação é fator de sucesso nas negociações.
O segundo propósito do TRL está relacionado ao uso de recursos governamentais para apoiar o setor empresarial. O assunto de subsídios é tratado pela Organização Mundial do Comércio (OMC) no documento “AGREEMENT ON SUBSIDIES AND COUNTERVAILING MEASURES”, que pode ser obtido no link https://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/24-scm_01_e.htm.
Ali está claro que subsídios para desenvolvimento de produtos são proibidos. Por outro lado, o Artigo 8 estipula que atividades de pesquisa são permitidas dentro de certas regras. A prática é que projetos até TRL 6 são considerados pesquisa pré-competitiva e, portanto, permitidos. É preciso citar que existe uma ressalva no artigo 31, indicando que os termos do Artigo 8 eram válidos inicialmente por 5 anos (a partir de 1994), quando então seriam revistos, apesar dessa revisão não ter acontecido.
É importante então entender, no melhor sentido prático, como a escala TRL deve ser interpretada para garantir que recursos governamentais não-reembolsáveis, utilizados diretamente por empresas, não sejam contestados na OMC.
1) A busca de novo conhecimento sem visar uma aplicação específica, normalmente chamada de pesquisa básica ou ciência pura, corresponde a valores de TRL inferiores a 1.
2) TRL 1 a 3 corresponde a pesquisa de bancada (é indicada por “laboratório” na imagem que segue esta lista), com foco em busca de novo conhecimento que possa ser aplicado. É tipicamente realizada em universidades.
3) TRL 4 ainda corresponde a pesquisa de bancada, mas com o foco de demonstrar que o conhecimento é aplicável e que traz algum resultado concreto. É executada tanto em universidades quanto institutos de pesquisa.
4) TRL 5 a 6 corresponde a pesquisa em um ambiente bem próximo da realidade da aplicação final (é indicada como “quase operação” na imagem que segue esta lista), mas sem demonstrar todos os comportamentos necessários para o uso em mercado. Por isso costuma-se indicar que se trata de um demonstrador de conceito. É tipicamente realizada em institutos de pesquisa.
5) TRL 7 corresponde ao desenvolvimento de um protótipo inicial que demonstre todos os comportamentos necessários para o uso em mercado, mesmo que ainda sejam necessárias mudanças para se chegar ao desempenho requerido para uma versão final a ser comercializada. Quando o produto final se trata de um sistema muito complexo, como uma aeronave, pode ser tratado como um conjunto de protótipos dos sistemas mais críticos. É normalmente executado por empresas, podendo ter o suporte de institutos de pesquisa.
6) TRL 8 a 9 corresponde ao desenvolvimento do produto a ser comercializado, o que envolverá em muitos casos protótipos que provem a viabilidade de desempenho requerido. É feito quase que exclusivamente por empresas. Existem exceções, como satélites de pesquisa e veículos exploratórios de planetas, que podem ser construídos por institutos de pesquisa, e aí está a origem da classificação criada pela NASA.
O termo “vale da morte” no contexto tecnológico corresponde às duas janelas de salto na imagem acima. São momentos em que questões de escalabilidade, por exemplo, aparecem. É comum se pensar no “vale da morte” entre os TRL 6 e 7, uma vez que muitas startups acabam fracassando nessa etapa, quando problemas técnicos não conseguem ser suplantados. Entretanto, muita tecnologia promissora em baixos valores de TRL acaba não sendo implementada por causa de obstáculos enfrentados na passagem de TRL 4 para 5.
Para entender melhor a separação entre TRL 5, 6 e 7 no ambiente industrial, vamos dar um exemplo real.
Considere a fuselagem traseira do Phenom 300 da Embraer, construída integralmente por partes metálicas. Um projeto TRL 5 feito em parceria com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT) resultou em um demonstrador de conceito, que visualmente é a mesma montagem do avião real, mas considerou o uso extensivo de materiais compósitos de fibra de carbono. Ser TRL 5 significou que o espécime final não passou por ensaios. Por outro lado, também significou que várias tecnologias específicas foram experimentadas, para se poder avaliar ganhos e perdas. Por exemplo, foram utilizados ferramentais de fabricação dos tipos macho e fêmea; fabricação do mesmo componente por tecnologias distintas em partes distintas da fuselagem; e assim por diante. Um projeto TRL 6 era uma das possibilidades de continuação do trabalho, em que as avaliações iriam determinar as melhores soluções de fabricação e a montagem final seria um demonstrador a ser ensaiado como se fosse ser utilizado na aeronave. Isto ainda não seria um TRL 7 uma vez que os resultados dos ensaios poderiam determinar fraquezas no projeto que tornariam a sua utilização inviável, além de que algumas análises não foram consideradas no design do componente, como aspectos de manutenção.
Resumindo, o uso do TRL é uma forma de garantir que a incerteza tecnológica associada a possíveis produtos, ou seus componentes, torna-se conhecida e controlada, com o desenvolvimento propriamente dito só se realizando a partir do momento que existe muita baixa probabilidade de deficiência das tecnologias a serem incorporadas no produto. Isto acontece quando todas estão em TRL 6 ou valores superiores. Com isso, o risco de desenvolvimento se concentra nas incertezas de mercado, já que as incertezas técnicas já foram mitigadas.
Autor: Hugo Resende, com 26 anos de experiência na Embraer, tendo atuado no Desenvolvimento de Produto (CBA-123, ERJ-145), Pesquisa Aplicada (famílias ERJ e E-Jets E1), e Marketing da Aviação Comercial (E-Jets E1 e E2). Apaixonado por aeronáutica desde a infância, quando seu pai foi piloto de provas ainda do Bandeirante, com Ph.D. em Engenharia Aeronáutica por Stanford, EUA.
Referências
1) Héder, Mihály. From NASA to EU: the evolution of the TRL scale in Public Sector Innovation. The Innovation Journal: The Public Sector Innovation Journal, Volume 22(2), 2017, article 3. (Pode ser obtido no link 4 abaixo.)
Sites utilizados
1) https://docplayer.com.br/133258528-Fapesp-apoio-a-ciencia-e-tecnologia-em-sp.html
2) https://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/24-scm_01_e.htm
3) http://www.ipt.br/noticias_interna.php?id_noticia=1162
4) https://core.ac.uk/download/pdf/94310086.pdf
5) https://embraer.com/br/pt/galeria-de-midia