Após dois anos de “aviãozinho” eu iria voar, realmente, um avião de verdade.
O NA T-6 era um avião asa baixa, biplace em “tandem” e equipado com um motor Pratt & Whitney R-1340 – AN-1, radial a pistão com 550 hp de potência. Foram construídas 15.645 unidades e formou várias gerações de pilotos da FAB e do mundo inteiro entre 1946 até 1976.
A FAB recebeu 465 aviões sendo que 81 unidades foram fabricadas sob licença no Parque de Material Aeronáutico de Lagoa Santa em Minas Gerais.
Meu primeiro vôo foi no dia 14 de março de 1962, no T-6G 1553, tendo como instrutor o Ten. Gilvan. Infelizmente nada posso relatar sobre esse vôo. Conto o porquê. Estávamos eu e o Cadete Mossri, alunos escalados do Ten. Gilvan para aquele dia, aguardando a chegada do instrutor.
Logo que chegou, mandou o Mossri, ir para o avião, deu partida, taxiou e voltou cerca de 1,30 hs após. Não saiu da “nacele” dianteira e nem desligou o motor. O Mossri saiu e ele fez sinal para eu entrar na “nacele” traseira. Ao passar por mim, o Mossri falou-me entre dentes: “Não quero mais voar com esse cara”.
Entrei na “nacele” traseira, coloquei os cintos do para quedas e os da cadeira e aguardei sem dizer uma palavra pelo interfone. Ouvi do Ten. Gilvan: “Fecha a capota de lona”. Fechei-a e senti que o T-6 começou o taxi em direção a cabeceira da Pista. O avião decolou e só retornei a ver a luz do sol uma hora e dez minutos após. Tudo que me lembro consiste em um bando de ponteiros girando dentro de uma infinidade de “reloginhos” e os gritos, pelo interfone, do Ten. Gilvan convencendo-me que eu, de aviador, não sabia coisa nenhuma. De vez em quando ele deslocava o manche lateralmente, com violência, e conseguia acertar as minhas pernas na “nacele” traseira. O Mossii ,hoje é Coronel Engenheiro da Reserva da Aeronáutica, desconheço se foi esse vôo com o Ten. Gilvan a causa. Esse foi o meu primeiro contato com o T-6. Esse evento marcou-me durante todo o curso de Vôo por Instrumentos, a maioria deles com o Ten. Gilvan. Peguei uma má vontade com esses vôos e reconheço que fui um péssimo aluno de VI.
Logo no dia seguinte, aí sim, conheci o avião. No dia 15 de março, foi escalado para voar o T-6D 1447 com o Ten. Sérgio. Começava a minha instrução pré-solo no T-6. A seguir, meus vôos de Instrução.
Após 8 hs de instrução, o Ten. Enio considerou-me pronto para fazer o cheque-solo. No dia 13 de abril de 1962, no T-6D 1538 fui escalado para voar com um checador, um tal de Ten. Braga. Pois é, nada mais nada menos, do que o lendário Braga da Fumaça.
O vôo foi espetacular. Após a decolagem, o Braga me instruiu para conduzir o avião para a área de instrução do 3º Ano, na época, a Barra da Tijuca. Após algumas manobras instruídas por ele e 20 minutos de vôo, ouvi pelo interfone: “Deixa o avião comigo”.
A princípio nada entendi. Pensei que fizera tudo errado, o Braga havia desistido de me checar e voltaríamos para o pouso pilotado por ele. Nada disso aconteceu. O Braga simplesmente iniciou uma série de manobras acrobáticas que jamais poderia imaginar. Lembro que o velocímetro chegou várias vezes a 230 milhas por hora. Fez “misérias” com aquele avião e eu, como um espectador privilegiado, sentado na “nacele” dianteira do T-6.
Imaginem uma tarde ensolarada do Rio de Janeiro, nos céus da Barra da Tijuca, vivenciando uma demonstração de pilotagem acrobática pelo homem que mais voou T-6 no mundo, o Ten. Braga da Esquadrilha da Fumaça.
Aqui cabe um comentário particular. Como sou gaúcho e criado na fazenda de meu avô, na fronteira com o Uruguai, desde cedo percebi que o cavalo sabe quem o monta e, dependendo do desempenho do cavaleiro, ele obedece ou não aos seus comandos. Ele sente o equilíbrio, a maneira de puxar as rédeas, a pressão das pernas do cavaleiro e assim por diante. Pois bem, no vôo com o Braga, percebi que o avião é igual ao cavalo. Ele sabe quem o pilota e obedece docilmente a qualquer comando. Durante a minha vida profissional de aviador, conheci vários pilotos que o avião “sentia” quem o estava pilotando. Um dos que mais me impressionou neste aspecto, foi o Cap. Odilon Olmitives Pereira, o Macuco, confirmado em vários outros tipos de aviões que tivemos a oportunidade de voar juntos, dentre outros, o T-33, F-80, Gloster F-8, Beech E18S e o Avro C-91.
Mais adiante contarei uns dois ou três vôos que fiz com o Macuco, porém nunca fui um piloto que o avião reconhecesse. Sempre desconfiei que eles queriam fazer outra coisa em vez do que eu queria.
Voltando ao vôo de cheque de T-6 com o Braga, após as acrobacias, ouvi pelo interfone: “Cadete Danilo, assuma os comandos do avião, volte para os Afonsos e pouse na pista em uso”.
Assim fiz e rumei para os Afonsos, a pista era a 17 de grama. Confirmei pelo rádio, a direção e intensidade do vento e entrei direto na perna com o vento da 17. Fiz dois pousos com arremetida até que o Braga comunicou-me que seria o pouso final. Pousei, retornei para a cabeceira da pista 17 e ele mandou-me não desligar o motor. Saiu da aeronave, amarrou os cintos da “nacele” traseira na cadeira e disse-me:
“Você está apto a voar sozinho no T-6”. Decole e faça dois toques e arremetidas que eu vou ficar observando daqui do chão. Na hora não me dei conta da importância daquele evento, alinhei o avião com a pista e decolei. Obedeci a ordem do Braga e fiz dois toques e arremetidas voltando para a cabeceira da pista 17. O Braga subiu no avião e me mandou taxiar para o estacionamento. No trajeto para os hangares foi que me dei conta que eu agora era um piloto de T-6. A sensação foi maravilhosa e cheio de orgulho estacionei o T-6. Caminhamos lado a lado em direção ao Hangar e na minha inocência de novato, parecia que todo o mundo reconhecia, naqueles dois homens que estavam presenciando um fato raríssimo: “dois” ases da aviação militar brasileira. Este vôo constitui uma das lembranças mais marcantes de minha vida profissional como aviador.
Infelizmente, nem todos os meus colegas do terceiro ano conseguiram essa proeza. Muitos foram desligados na instrução aérea, outros simplesmente desistiram como Mossri, provavelmente após aquele primeiro vôo com o Ten. Gilvan e o Hufnagel, Júlio Max Barbosa, após um acidente com o Ten. Cunha.
Porém na aviação, como em qualquer outra profissão, nem tudo são vitórias, alegrias e satisfações. Nesse terceiro ano, aconteceram dois fatos extremamente desagradáveis que como aviador militar, deveria me acostumar e conviver com eles. Perdemos dois colegas de turma, o Gentil e o Tatá.
O primeiro foi o Tatá, Clovis Fonseca Menezes. Fomos juntos do Colégio Militar para a Escola de Aeronáutica. Éramos bastantes amigos, pois além de frequentar sua casa nos finais de semana, no Posto 6 em Copacabana, lá pelo mês de março de 62, ele apareceu de “armas e bagagens” na porta de meu apartamento dizendo: “Danilo, briguei com a minha mãe, por ela não querer me dar um carro, sai de casa e vim morar contigo”. Esse era o Tatá, vivia intensamente tudo na vida, parecendo saber que ela não seria muito longa.
Numa tarde de maio ou junho, não me lembro bem, o Tatá decolou com o Ten. Largura para mais um vôo de instrução de T-6. Posteriormente, pelos relatos do Ten. Largura ficamos sabendo o que aconteceu. No meio da instrução, a aeronave começou a trepidar violenta e descontroladamente. O instrutor mandou o Tatá saltar de pára-quedas, pois o avião iria cair com certeza. Parece que o Tatá ficou meio perdido com o inusitado da situação e demorou a começar a desamarrar o cinto da cadeira. O instrutor, então, mandou o Tatá olhar para ele, pois já estava desamarrado e pronto para saltar. O Ten. Largura saltou a seguir, pois o avião estava já bastante próximo ao solo. A partir desse ponto, calcula-se que o Tatá tenha saltado e na saída da aeronave o anel de velocidade do T-6, uma peça metálica que envolve o motor, pesando uns 80 kg, desprendeu-se da carenagem e colidiu com o Tatá saindo do avião, matando-o na hora.
O corpo foi encontrado com um profundo afundamento em seu crânio. Eu, no Corpo de Cadetes, em frente ao Comandante da Esquadrilha, vesti o para quedas que o Menezes usava e puxei a alça de abertura. O pára-quedas abriu normalmente.
O estudo das causas do acidente descobriu que uma das pontas do hélice havia partido ocasionando a trepidação e, consequentemente, a queda da aeronave. O Tatá faleceu por falta de sorte e mais uma vez a aviação não perdoa os pilotos que não a possuem. Um segundo antes ou após a sua decisão de saltar teria lhe salvo a vida.
A segunda perda foi a do Cadete Gentil, Antônio Gentil Ribeiro Gonçalves. Lembro-me de um jovem calmo, sereno, educado e bastante discreto. Lá pelo fim de 1962, num vôo de instrução solo e rasante na Barra da Tijuca, simulando um ataque terrestre, seu avião perdeu a sustentação e colidiu com o solo. Como estava sozinho, soubemos pouco do que, realmente, havia acontecido. Essas duas perdas marcaram todos os Cadetes que iriam formar-se no final do ano. Na Revista Esquadrilha, de 1962 da Escola de Aeronáutica dos Afonsos, os cadetes Hufnagel e Alvarez escreveram, para a posteridade, as lembranças e saudades desses dois aviadores que partiram antes do tempo.
Porém, como cantava Cazuza, o tempo não para.
Os vôos de instrução foram se sucedendo ininterruptamente. A rotina do cadete do 3º ano aviador, naquela época era: acordar 6 horas da manhã, Educação Física, Instrução Teórica na parte da manhã e vôo a tarde ou o inverso. A noite era reservado para os estudos. Próximo ao final do ano tivemos instrução de vôo noturno, de pouso com toque e arremetida. Uma hora de pousos e decolagens duplo comando e dois vôos solo na área do Campo dos Afonsos. Lembro que em um dos pousos solo, a torre apagava as luzes da pista quando estávamos na final. A rotina de vôos diários deu-nos a confiança necessária para voarmos a noite sem problemas.
Eu continuava ruim de vôo por instrumentos e dedicando-me ao máximo aos vôos de formatura, 2 e 4 aviões. Percebi que estava indo bem nesse tipo de vôo em virtude de ter sido escalado a voar de nº 3 com um colega na ala, em diversas ocasiões. Em uma ou duas delas, fizemos até algumas acrobacias.
Em junho deste ano foi ministrado aos Cadetes do 3º Ano Aviador o Curso de Sobrevivência na Selva. A instrução foi incluída no currículo do 3º Ano em virtude de que em uma emergência, além do salto de pára-quedas poderíamos cair no meio da selva Amazônica e deveríamos aprender como sobreviver e retornar a civilização, absolutamente, sozinhos. O Curso foi ministrado pelos Ten. Guaranis, Ten. Médico Landeiro e Ten. Sérgio, mais conhecido como Sérgio Macaco.
Foi aí que entrei em contato, pela primeira vez com a aeronave C-47.
Decolamos do Galeão no C-47 2017, tendo como pilotos Cap. Lino e Ten. José Luis, em direção ao posto de Diauarum, as margens do rio Xingu. Este posto era o mais avançado do Serviço de Proteção ao Índio (SPI na época), e estava sob os cuidados dos sertanistas Orlando e Cláudio Villas-Boas congregando índios civilizados e semi-civilizados de diversas tribos, tais como Caiabi, Juruna, Nu-aruaque, Kren-a-Kore e Chucarranam.
Voamos, entre ida e volta ao Posto de Diauarum, cerca de 16 horas. Com uns quantos “aviadores” a bordo, os pilotos escalavam o “cadetal” para servir como pilotos-automáticos em rota, evidentemente um dos pilotos ficava sempre no comando. Quando chegou a minha vez, sentei-me na cadeira do Comandante, olhei pelo pára-brisa da aeronave e vi um cenário inusitado. Só selva até o horizonte sem nenhuma referência visual em terra para me orientar. Concentrei-me nos instrumentos da aeronave para mantê-la nivelada e em rota.
Os acontecimentos em minha vida sempre chegaram na hora certa. A poucos meses da Formatura, eu continuava um péssimo aluno de VI (vôo por instrumentos). Desde o primeiro vôo com o Ten. Gilvan, peguei uma má vontade com aquela matéria e, realmente não a estudava nem fazia questão de repetir diversas missões. Sentado na cabine do C-47, olhando aquele “marzão verde” sem nenhuma referência, pois somente tinha voado nos céus do Rio de Janeiro e com tempo bom, dei-me conta da importância da instrução do Vôo por Instrumento para qualquer um que pretendesse ser aviador.
Quando retomamos aos vôos de T-6G, apliquei-me a fundo na Instrução de VI, terminando o curso antes de muitos de meus colegas. Como os Vôos de T-6D eram-me prazerosos e possuía boas notas de avaliação prática, com o término do curso de Vôo por Instrumentos, garanti minha formatura. Nesse dia, tive certeza que seria um Oficial-Aviador da Força Aérea Brasileira.
Meu último vôo como Cadete, com 01:55 hs, foi no dia 09 de dezembro de 1962, no T-6G 1241, com o Ten. Castilho, terminando os três anos de cadete com 385 pousos e 250 horas e 45 minutos de vôo.
Uma formatura é sempre uma lembrança pessoal maravilhosa. Na realidade é o coroamento, a recompensa de todos os esforços da infância e adolescência. Neste dia, 21 de dezembro de 1962, dia de meu aniversário, além de ter sido marcante pela minha Formatura, a alvorada no Campo dos Afonsos foi especial, pelo menos para mim.
Dormi no dia anterior, na expectativa de acordar e prepara-me para um dia inteiro de festas, inclusive à noite no Baile do Clube de Aeronáutica.
O despertar não foi com o toque de clarim normal do dia-a-dia do Cadete, foi com um barulho que recordava desde infância. Quatro aeronaves F-8 do 1º Grupo de Caça deram várias passagens rasantes em cima do prédio do Corpo de Cadetes no Campo dos Afonsos.
Pensei na hora: Isso é coisa do destino. No dia mais importante de minha vida adulta sou presenteado ao acordar, com o objeto dos meus sonhos, o avião de meu ideal. Eu, com certeza, estava predestinado a voar o Gloster Meteor. Era só ter paciência.
Entramos no 1º Ano-Aviador, 132 Cadetes. Formaram-se Oficiais Aviadores 72 Aspirantes, ou seja, 60 Cadetes foram desligados do curso, por pilotagem, durante os três anos de instrução de vôo. Isso equivale a uma taxa de atrito de 54,55%. Se levarmos em conta que ingressaram no 1º Ano da Escola Preparatória de Cadetes do Ar, em Barbacena, bem como “pára-quedistas” de 1957 a 1960, uns 400 alunos e cadetes, a taxa de aproveitamento, na minha turma, chegou a 18%.
Dos 72 Aspirantes, 30 foram selecionados para a Caça, classificados no 1º/4º Gav. Esquadrão Pacau, em Fortaleza e os 42 restantes iriam cursar a Aviação de Bombardeio e Transporte em Natal no 5º Grupo de Aviação.
Selecionado para a aviação de Caça, teria ainda que voar o F-80 em Fortaleza, para poder voar a aeronave de meu sonho de menino, o GLOSTER METEOR F-8 em Santa Cruz, no 1º Grupo de Aviação de Caça, ou em Porto Alegre no 1º/14º Gav.
Estava chegando perto de meu ideal e o tal Curso de Caça e um tal de F-80 não iriam impedir-me de chegar lá. Seria apenas mais uma etapa para eu poder atingir o topo. A sorte já havia sido lançada tempos atrás.
No dia 07 de fevereiro de 1963, embarcamos no C-54 2404, comandado pelo Cap. Vidal, rumo a Fortaleza, para um ano inteiro dedicado a aprender a voar um avião de caça.