“Há homens que lutam um dia, e são bons.
Há outros que lutam um ano, e são melhores.
Há os que lutam muitos anos, e são muito bons.
Mas há os que lutam toda a vida. Estes são os imprescindíveis”
(Bertolt Brecht)
Por CC Robinson Farinazzo Casal
As 02:20h da madrugada de 6 de agosto de 1945, doze militares embarcaram no Boeing B-29 Serial Number 44-86292, apelidado “Enola Gay” na base aérea de North Field, Ilhas Marianas.
Onze pertenciam à Força Aérea do Exército dos EUA (US Army Air Force-USAAF). O décimo segundo homem era um Captain (Capitão-de-Mar-e-Guerra) da Marinha Americana (United States Navy-USN). Seu nome era William Sterling “Deak” Parsons, e esta é a sua história.
Parsons, cujo apelido na Academia Naval de Annapolis era “Deak”, graduou-se em 1922. Teve como companheiro de turma o jovem Hyman Rickover, o qual, três décadas depois como almirante, seria conhecido como “pai” da marinha nuclear norte americana. Oficial armamentista, aprofundou durante toda a sua vida o interesse por dois engenhos que seriam fundamentais à vitória nos selvagens combates travados no Pacífico pela US Navy: o radar e as espoletas.
Nos anos 30, enquanto os poucos que tinham ouvido falar do radar só enxergavam, de maneira bem míope, a sua potencialidade sob o prisma da localização de navios e aeronaves, ele já ia além, pois visualizava o aparelho acompanhando os projéteis de artilharia. Em sua mentalidade, já como jovem tenente, estavam presentes todos os fundamentos que norteariam o sistema DT (Direção de Tiro). Ele pleiteou por várias vezes em seus memorandos um sistema de detecção por micro-ondas de alta frequência para a US Navy. Era um visionário. Pregou anos no deserto até seus relatórios caírem na mão do homem certo: o Almirante Ernest J. King, que ocupava na época um cargo que na Marinha do Brasil equivaleria a diretor da DAerM. King, (que se tornaria no futuro a maior autoridade naval da Marinha Americana nos anos da Segunda Guerra Mundial), deu sinal verde às ideias de Parsons.
Para atender requisitos de carreira, o oficial passou algum tempo embarcado no capitânea do almirante William R. Sexton, USS Detroit (CL-8), onde aumentou a eficácia da artilharia de bordo a pedido deste oficial general.
Por volta de 1940, “Deak” era provavelmente o maior especialista em espoletas de toda a USN e foi transferido para o Comitê Nacional de Pesquisa em Defesa, recém criado pelo presidente Franklin Roosevelt. Uma vez lá, ele ajudaria a criar uma das mais decisivas e até hoje menos conhecidas inovações do arsenal tecnológico norte americano, dado seu grau de segredo: as espoletas de proximidade (ou VT fuzes).
Até então, os radares em terra ou nos navios detectavam a altitude da aeronave e esta cota altimétrica era saturada com granadas, aumentando desta forma a probabilidade de acerto, mas jamais garantindo certeza.
Com o advento das VT, que portavam uma espécie de mini-sensor a bordo, a simples proximidade da aeronave as fazia detonar, com resultados devastadores na aviação inimiga. Durante algum tempo, esta munição secretíssima só pode ser empregada em navios devido ao receio que o inimigo capturasse algum exemplar e o reconstruísse através de engenharia reversa. O exército americano passou a empregá-las somente em 1943, e elas seriam decisivas na derrubada das bombas voadoras alemãs V-1 na Inglaterra e na barragem de artilharia que deteve os nazistas nas Ardenas (Bélgica), no ano seguinte.
Em paralelo, a milhares de quilômetros dali, o Dr. Robert Oppenheimer, diretor do projeto Manhattan, o qual daria a primazia da bomba atômica aos EUA, enfrentava um complicado problema.
Ele precisava de um especialista em munição e espoletas que tivesse a capacidade técnica de conversar com seus cientistas e físicos. O chefe militar do projeto, General Leslie Grooves, não tinha nenhum oficial com este perfil no Exército, e o requisitou à Marinha. Por esta época, Parsons estava pronto para assumir um comando no mar (sua maior ambição), mas o Conselheiro Presidencial para Ciências indicou seu nome para Grooves. Deak não queria o cargo e apelou a seu antigo patrono, o Almirante King (por esta época, já Comandante em Chefe da Esquadra) para voltar ao mar, mas o ComemCh argumentou que, se por um lado o excelente trabalho dele na frota poderia ser realizado por apenas alguns poucos oficiais, por outro lado ninguém poderia substituí-lo no projeto Manhattan.
Era a roda da história movendo suas engrenagens. Parsons era talhado para a tarefa e, uma vez convocado, desempenhou-a brilhantemente. Recém promovido a Capitão-de-Mar-e-Guerra e embarcado na base operacional do projeto em Alamogordo, Novo México, sua primeira providência foi criar uma boa escola para os filhos dos cientistas e militares em pleno deserto. Percebendo que assimilar a tecnologia nuclear seria de capital importância para a Marinha num futuro próximo, ele gradativamente começou a trazer oficiais navais (extremamente capacitados, ressalve-se) para o projeto, e por volta do fim da guerra já haviam 41 deles trabalhando em Alamogordo, um verdadeiro “think tank” deixado a disposição da Marinha.
Esta atitude visionária de Parsons iria render frutos extraordinários para a US Navy pelos próximos 70 anos. Os problemas do projeto eram grandes, complexos, inéditos e tinham o calendário como maior inimigo. Cabia à equipe de Parsons, dentre outras centenas de tarefas, a montagem e testes do “mock up” da bomba atômica nos aviões B-29 especialmente modificados para este propósito, o transporte do artefato por navio até a ilha de Tinian, no Arquipélago das Marianas no Pacífico e a confecção de um mecanismo detonador da bomba, que atendesse, dentre outros, dois requisitos inegociáveis: segurança (não detonar antes do momento desejado) e confiabilidade (detonar exatamente no momento desejado).
Esta tarefa talvez fosse a mais desafiadora, pois as B-29 tinham a não pouco saudável tendência a se acidentar na decolagem. Carregando uma bomba nuclear armada então, seria catastrófico. A solução encontrada seria armar o detonador em pleno voo, e o comandante Parsons se encarregou disto, esgueirando-se e contorcendo-se na bomb bay gelada e despressurizada do Enola Gay, sobrevoando o Pacífico escuro enquanto manuseava as espoletas da bomba A.
Esta façanha corajosa valeu-lhe merecidamente uma medalha Silver Star, a terceira condecoração mais importante das Forças Armadas dos Estados Unidos. Cabe aqui um parêntese histórico. No imaginário comum, o Coronel Paul Tibbets, piloto do Enola Gay (nome dado ao avião em homenagem a sua mãe) era o comandante da missão. Ledo engano. Tibbets era um excelente aviador, mas não possuía o conhecimento dos detalhes da bomba na densidade e profundidade que Parsons detinha.
Foi o experiente armamentista naval, o real comandante da missão, quem deu a aprovação final em voo para Hiroshima como alvo escolhido. Dois dias depois do bombardeio nuclear, aos 44 anos de idade, ele foi promovido a Comodoro (Almirante de uma estrela, posto que existe na Marinha dos EUA em tempo de guerra).
Diga-se de passagem, ele atingiu o almirantado sem jamais ter comandado um navio, o que é por si só uma prova do descortino da administração naval americana: eles sabiam que a US Navy ia precisar de oficiais generais com algumas qualificações que a “Fleet” por si só não podia prover.
Acabada a guerra, o novo almirante vai servir na sub-chefia de armamentos especiais do Comando de Operações Navais da US Navy. Uma vez lá, lutou para mudar a tendência corrente na Marinha de criar um projeto nuclear próprio em favor de uma produtiva associação com o já bem sucedido projeto Manhattan. Vitorioso em seu pleito, indicou vários oficiais para servirem na sede técnica do projeto, em Oak Ridge, Tenessee. O mais antigo destes oficiais era seu companheiro da turma de 1922, Hyman G. Rickover, (que teve a carreira mais longeva da história US Navy – 63 anos ininterruptos no serviço ativo), deixaria um legado que nos dias de hoje chega a 200 submarinos e 23 porta aviões/cruzadores, todos de propulsão nuclear.
Em 1946, promovido a Contra-Almirante, Parsons seria novamente chamado a emprestar sua inigualável experiência em bombas atômicas no maior teste nuclear de todos os tempos : a Operação Crossroads. Visando avaliar o impacto de uma explosão atômica sobre toda uma esquadra, a Marinha americana fundeou no atol de Bikini, no Oceano Pacífico, uma frota de 95 navios alvo (em sua maioria, presas de guerra do Eixo). Para mensurar, avaliar e apoiar os testes, mobilizou 156 embarcações, 42.000 militares e 156 aeronaves. Todo o ajuste fino desta operação foi realizado pelo onipresente e incansável Almirante Parsons.
E ele voltaria à cena nuclear em 1948 nos testes de Eniwetok. Nos anos do pós guerra, ele manteve uma amizade sincera com o Dr. Oppenheimer, e preocupava-se com as perseguições que o amigo sofria sob o advento do Macarthismo, devido às suas opiniões políticas. A perseguição obscurantista aos intelectuais americanos o magoava demais. Em 4 de novembro de 1953, o presidente Dwight Eisenhower proibiu formalmente o acesso de Oppenheimer a qualquer informação classificada, e naquela mesma noite Parsons sentiu-se mal. “Deak” morreu na manhã seguinte no Hospital Naval de Bethesda. Contava apenas 52 anos de idade. Ele deixou um legado de coragem, inovação, lealdade para com os amigos, amor ao país e dedicação integral ao Serviço Naval.
Homens da sua estatura moral e conhecimento técnico-científico fazem a diferença para melhor em qualquer organização que o ser humano possa vir a conceber seja qual for a época.
Foi enterrado no Cemitério Nacional de Arlington, destinado aos heróis dos EUA. Em 1957, um contratorpedeiro da classe Forrest Sherman recebeu o nome de USS Parsons. O quartel do Grupo de Treinamento de Superfície do Atlantico em Norfolk na Virginia, hoje leva seu nome (Deak Parsons Center). Porém, a homenagem que mais o agradaria certamente foi a instituição do Prêmio Contra-Almirante William S. Parsons para progresso técnico e científico, concedido aos oficiais, praças ou civis da Marinha e do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos que tenham realizado uma extraordinária contribuição em qualquer campo da ciência que promova o desenvolvimento daquelas forças armadas.
Mas quais as lições de vida e trabalho que a extraordinária epopeia deste homem esplêndido deixa para nós como brasileiros? Inúmeras, se tivermos sensibilidade para percebê-las. Em primeiro lugar, notamos sua firmeza de propósitos, por ter, em toda sua vida, defendido ideias mesmo quando o mundo a sua volta pensava o oposto.
Ele teve a coragem moral de não se dobrar ante a pressão em contrário, em perseverar naquilo que sabia ser certo e seguir em frente. Foi um inovador obstinado que buscou o melhor para seu país desde jovem Tenente idealista até o posto de Almirante experiente. Homens como Parsons, de personalidade solidamente construída em torno de uma vontade férrea jamais aderiram a “fracassomania” que de tempos em tempos assola a sociedade. Fizeram o que tinham que fazer o tempo todo e ponto final. Será que vamos abrir caminho para gente assim poder trabalhar conosco?
Mais importante que sua competência profissional é o quadro de valores que ele compartilhava com as pessoas que tiveram a felicidade de conviver consigo, em termos de amor ao trabalho, espírito público e perseverança. Aprendemos também que uma Marinha pode perder muitos navios (como a US Navy os perdeu em Pearl Harbour, Mar de Coral, Guadalcanal etc) e ainda continuar lutando uma guerra. Mas que ela quiser vencer uma guerra, jamais poderá abandonar a meritocracia.
Foi o reconhecimento destes talentos, por parte da alta administração naval da Marinha dos Estados Unidos que permitiu que homens capazes, independente de seus corpos, quadros ou origens, atingissem postos onde foram decisivos para a consecução dos objetivos daquela Força Naval. Tivesse a Navy cerceado a ascensão de Deak pelo fato dele não ter podido cumprir todos os ritos de carreira vigentes à época, dificilmente lutaria a Guerra Fria com a proficiência que o fez, dado que neste último conflito fez-se imprescindível em seus quadros a presença de oficiais generais com mentalidade nuclear para contrapor o Poder Naval Soviético.
Marinhas modernas demandam tecnologia, e tecnologia requer mentalidade. Até que ponto estamos prontos para VANTs, link de dados, geração “Y” e outros adventos, com suas qualidades e limitações e outras mudanças?
Não podemos encarar estes fatores como problemas que nos diminuem, mas sim como desafios que nos engrandecem! Há que se doutrinar os serviços de pessoal para buscar talentos entre nossos jovens. Eles existem, e em profusão, na MB, dada a inimitável criatividade do povo brasileiro. Deve-se, mais do que nunca, buscar estas boas sementes, e empreender todos os esforços para fazê-las dar frutos. Temos que mapear estas competências, estimulá-las, atraí-las quando elas não estiverem sob a égide da Marinha e fazer o melhor para que estas pessoas se sintam parte importante e vital do time. Vestir a camisa, este é o mote!
Desde o dia que chegou aquela base poeirenta no deserto em Alamogordo e se prontificou a construir uma excelente escola para os filhos dos participantes do projeto, Parsons já sabia que para se obter um empreendimento de sucesso, temos que fazer com que todos saibam que são importantes. Antes de ir cuidar da Bomba A, ele se dedicou ao patrimônio mais precioso que uma Marinha possui: sua gente.