Por Mariana Schreiber
São quase quarenta anos de promessas desde que, em 1979, a ditadura militar lançou a Missão Espacial Completa Brasileira prevendo a criação de um centro espacial no país. Após três tentativas frustradas de lançamento de foguetes VLS (veículos lançadores de satélites), umas dais quais resultou em 21 mortes, o governo do presidente Michel Temer busca tornar a proposta realidade por meio de um controverso acordo com os Estados Unidos ainda este ano.
O objetivo é viabilizar o uso comercial do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no litoral do Maranhão, o que em outras palavras significa gerar recursos alugando a base para países e empresas colocarem seus satélites em órbita. O CLA pertence ao Estado brasileiro e é gerido pela Aeronáutica.
O local – escolhido nos anos 80 em detrimento de outra região no Amapá por influência do então senador maranhense José Sarney, depois presidente da República – é celebrado como uma das melhores zonas de lançamento do mundo, já que sua localização muito próxima da linha do equador permite uma economia de cerca de 30% no combustível necessário para essas operações. O Brasil, no entanto, nunca conseguiu por meios próprios realizar lançamentos para colocar satélites em órbita. Já uma parceria com a Ucrânia consumiu desde 2007 R$ 480 milhões sem alcançar seu objetivo.
Um primeiro acordo de salvaguarda, cujo objetivo é evitar que a tecnologia de um país seja roubada por terceiros, foi firmado com os EUA em 2000, mas a iniciativa não foi pra frente devido às acusações de ameaça à soberania nacional. O texto previa espaços de acesso restrito aos americanos, entrada de contêineres lacrados que não sofreriam inspeção e também proibia que determinados países laçassem foguetes do Brasil.
O governo negocia agora um texto mais palatável que possa superar as resistências políticas, já que o acordo só entrará em vigor se aprovado no Congresso Nacional. O Brasil enviou uma sugestão para os EUA em 2017 e recebeu uma contraproposta em maio. Agora, diversos órgãos como Itamaraty, Agência Espacial Brasileira e Aeronáutica trabalham em uma nova versão. Há expectativa de um acordo final ainda neste ano.
Os documentos estão em sigilo – autoridades envolvidas ouvidas pela BBC News Brasil reconhecem que os americanos mantêm diversas exigências que geraram controvérsia no início da década passada, mas sustentam que houve avanços principalmente de “redação”, de modo a explicar melhor as intenções do acordo e gerar menos “sensibilização política”.
“Hoje nós temos um texto que consideramos melhor que aquele dos anos 2000”, afirma o diretor da Agência Espacial Brasileira (AEB), José Raimundo Braga Coelho, no comando da instituição desde a administração Dilma Rousseff.
Defensores da proposta na AEB e na Aeronáutica dizem que é “impossível” viabilizar o uso comercial de Alcântara sem o acordo com os Estados Unidos, porque o país domina boa parte da tecnologia espacial. É comum que outros países usem componentes americanos em seus lançadores e satélites – sem o acordo de salvaguarda, eles não poderiam acessar o espaço a partir de Alcântara.
Esses entusiastas querem que os recursos usados com a comercialização do centro sirvam para desenvolver o programa espacial brasileiro, hoje bem atrás do de países como China, Índia e Argentina, que há algumas décadas estavam em estágio semelhando ao nosso. Durante as entrevistas, eles pediram que a reportagem procurasse usar o termo “centro de lançamento” ao invés de “base de Alcântara”, preocupados em dissipar a imagem de projeto militar.
Eles afirmam ainda que acordos de salvaguarda entre países são praxe nessa área e negam que comprometam a soberania nacional. Sua esperança é que, passados 18 anos da primeira tentativa de entendimento com os EUA sem que o programa espacial brasileiro tenha apresentado desenvolvimento relevante, a oposição ao acordo arrefeça.
“Em aviação, a gente costuma dizer: se você quer um risco zero, não decole, porque, se você decolar, é baixa a probabilidade (de acidente), mas pode acontecer. Então, a soberania hoje em Alcântara é 100%, não tem ninguém lá, mas não tá acontecendo nada”, afirma o presidente da Comissão de Coordenação e Implantação de Sistemas Espaciais (CCISE), órgão responsável pela implantação dos sistemas espaciais de Defesa, o major-brigadeiro do ar Luiz Fernando de Aguiar.
Pontos polêmicos do acordo com os EUA
Entre os pontos polêmicos do acordo, Aguiar diz que há avanços por exemplo na entrada dos componentes americanos no Brasil, que, segundo o texto de 2000, poderiam ingressar em contêineres lacrados, sem qualquer inspeção.
“Saberemos o que está sendo transportado. ‘Ah, está sendo transportado um pedaço de um satélite?’ Confere o satélite. ‘Ah eu quero ligar esse satélite e ver em que frequência ele opera’. Infelizmente isso no acordo de salvaguarda tecnológica não é previsto. ‘Mas eu não estou trazendo uma bomba, algo diferente do que esta reportado no relato de importação’. ‘Ok, conferido, obrigado'”, exemplificou.
Por outro lado, a atual negociação mantém a previsão de que os EUA terão acesso restrito a algumas áreas do centro, onde estiver sendo operada tecnologia americana. Durante esse processo, pessoas não autorizadas pelos americanos não poderão ingressar no local.O presidente da AEB, Braga Coelho, argumenta que isso ocorreria temporariamente, não representando uma cessão definitiva de território brasileiro aos americanos.
Também foi alvo de críticas em 2000 o artigo que proibia o uso de recursos gerados pelo centro de Alcântara no desenvolvimento de lançadores (foguetes) brasileiros. Braga Coelho explica que o governo americano tem regras internas que o proíbem de investir em foguetes de outros países e por isso não é possível retirar esse ponto. Ele diz, porém, que “dinheiro não tem cor” e, como os recurso iriam para o Tesouro (caixa comum da união), poderiam depois ser destinados para qualquer área. A Agência Espacial Brasileira também estuda no momento modelos de negócios para exploração comercial do centro – uma das possibilidades é fazer uma operação em parceria com o setor privado e, nesse caso, não há restrição para que empresas invistam os recursos em foguetes, afirma ele.
Outro ponto que gerou resistência e que deve ser mantido no novo acordo é a restrição para que a base de Alcântara seja usada por países considerados terroristas ou que não tenham aderido a um acordo internacional chamado MTCR (Missile Technology Control Regime), cujo objetivo é evitar o desenvolvimento “sistemas de distribuição não tripulados capazes de entregar armas de destruição em massa”.
A China, que é parceira do Brasil desde os anos 80 em um programa de desenvolvimento de satélites, não aderiu a esse acordo. Por isso, o Brasil não poderia lançar de Alcântara esses satélites, os Cbers.
“Esse acordo a princípio não nos permitiria, a não ser que a gente tivesse uma discussão entre Brasil e Estados Unidos que autorizasse o lançamento. Mas poderíamos continuar lançando da China, que tem várias centros”, ressaltou Coelho.
Ministro das Relações Exteriores durante todo o governo Lula (2003-2010) e da Defesa no primeiro mandato da Dilma (2011-2014), Celso Amorim continua crítico do acordo. Segundo ele, durante sua gestão, o uso de Alcântara nunca foi uma prioridade trazida pelos americanos para a agenda bilateral. De acordo com o ex-chanceler, a demanda partia mais de setores técnicos do governo brasileiro que viam o uso comercial de Alcântara como forma de gerar recursos para investir no programa espacial brasileiro. Na sua avaliação, porém, o setor deve ser desenvolvido a partir de investimentos do Estado, sem que isso signifique acordos que “firam a soberania brasileira”.
“Durante a minha época não houve nenhum avanço, eu mesmo me encarreguei de barrar. Nunca houve uma formulação que me satisfizesse do ponto de vista da preservação da soberania nacional”, contou à BBC News Brasil.
“Um acordo que diz que não podemos lançar nosso satélite (desenvolvido com os chineses) de Alcântara, isso é um absurdo total. Há valores mais altos do que o ganho imediato comercial que você possa ter. E você não deve ceder nenhum espaço do território brasileiro. Começa ali em Alcântara, depois vai pra Amazônia”, criticou ainda.
Amorim ressaltou também que o acordo não prevê qualquer transferência de tecnologia. As autoridades envolvidas na atual negociação reconhecem isso e enfatizam que o acordo serve exatamente para proteger os investimentos tecnológicos feitos pelos americanos, o que argumentam ser algo natural. Sustentam, porém, que o uso do centro após esse acordo pode criar oportunidades de futuras parcerias.
“Esse não é o melhor acordo do mundo, mas é um acordo bom. O melhor acordo do mundo seria: eu ganho tecnologia, eu ganho tudo, não pago nada, eles pagam muito, isso não existe. Tecnologia não se dá de graça, você tem que gramar”, afirma o major-brigadeiro do ar Luiz Fernando de Aguiar.
Os entusiastas da negociação com os americanos argumentam ainda que acordos do tipo são comuns no mundo, e citam tratados dos EUA com Rússia e Nova Zelândia, por exemplo.
A BBC News Brasil comparou os textos desses acordos com aquele negociado em 2000. O acordo com a Rússia, de 2006, é diferente já que não trata de lançamentos em território russo, mas do desenvolvimento de um centro marítimo, para lançamentos do meio do oceano, desenvolvido por empresas da Noruega, Ucrânia, Rússia e Estados Unidos. Nesse caso, o texto prevê as garantias de proteção da tecnologia russa, já que o centro ficava ancorado na costa da Califórnia. O acordo não previa, por exemplo, a entrada de contêineres lacrados nos EUA, permitindo que os americanos, sempre em conjunto com os russos, realizassem a inspeção do material.
Já o acordo firmado com a Nova Zelândia em 2016 para uso de um centro de lançamento no país tem termos parecidos com os negociados com o Brasil, estabelecendo áreas cujo acesso é controlado pelos americanos, por exemplo.
Qual o potencial da base de Alcântara?
Após anos tentando desenvolver um foguete VLS (Veículo de Lançamento de Satélites), o Brasil abandonou esse projeto. Foram três tentativas frustradas de lançá-lo de Alcântara – na última delas, em 2003, o foguete explodiu em solo e provocou 21 mortes.
O governo decidiu focar então no desenvolvimento do VLM (Veículo Lançador de Microsatélite), que hoje apresenta potencial comercial mais promissor e cuja conclusão está prevista para até 2020. Mais baratos, os satélites menores tem se tornado cada vez mais importantes para a produção de imagens da terra, vigilância, navegação por GPS e comunicação por internet.
O Space Enterprise Council, que representa a indústria espacial norte-americana, estima que até 2022 podem ocorrer até 600 lançamentos de satélites de até 50 quilos e que o Centro de Lançamento de Alcântara poderia abocanhar 25% desse mercado.
Apesar disso, as autoridades brasileiras dizem que não é possível ainda estabelecer qual o potencial econômico do centro da Alcântara. Michele Melo e Carolina Pedroso, analistas em Ciência e Tecnologia da AEB, estão estudando quais os modelos de negócios possíveis. Elas explicaram à BBC News Brasil que não há hoje uma base de lançamento no mundo focada em microsatélites que possa servir de parâmetro para o brasileiro.
Segundo as analistas, hoje, a infraestrutura de lançamentos em Alcântara está quase pronta para ser explorada comercialmente, graças aos investimentos feitos na época do acordo com a Ucrânia e dos lançamentos de foguetes de treinamento e de satélites suborbitais com experimentos científicos curtos (89 nos últimos dez anos) que são realizados para manter a estrutura do centro funcionando. A parte logística, porém, exigirá investimento em um novo porto, melhoria do aeroporto e da rede hoteleira. Algumas estruturas da época do acordo com a Ucrânia ficaram incompletas e estão “abandonadas”, segundo lideranças quilombolas da região.
Resistência contra novas remoções
Além da polêmica em torno do possível acordo com os Estados Unidos, outra questão delicada envolvendo o centro de Alcântara é o impacto sobre comunidades tradicionais locais. A região foi ocupada no período colonial por produtores de cana-de-açúcar e algodão que usavam mão de obra escrava – após o declínio dessas atividades, os ex-escravos tomaram posse das terras e fundaram os quilombos.
Quando o CLA foi criado, 312 famílias de 24 povoados que viviam da pesca foram removidas da costa e fixadas no interior em agrovilas, o que modificou completamente seu modo de vida. Agora o governo diz que precisa realizar novas remoções para ampliar o potencial de uso do centro de lançamento.
Segundo Danilo da Conceição Serejo Lopes, representante do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe), as lideranças não foram formalmente comunicadas sobre a intenção do governo de expandir o centro. Ele diz que as comunidades acompanham com “apreensão” a retomada das negociações com os EUA e afirma que nenhuma família foi indenizada na primeira remoção.
“Houve toda uma desestruturação cultural e social das famílias removidas. Não existe nenhuma possibilidade de sair (mais famílias agora), não tem negociação”, afirmou, criticando ainda a intenção de “entregar a base para os estrangeiros”.
De acordo com Lopes, em 2008 houve um acordo, mediado pelo Ministério Público Federal, com a Advocacia Geral da União (AGU), que reconhecia os territórios quilombolas e interditava novas remoções. Questionada pela BBC Brasil, a Casa Civil, órgão que está responsável pela questão das comunidades, disse por email que “em 2008 foi aberto via AGU um canal de diálogo com as comunidades quilombolas locais” e que “tal processo não resultou em maiores definições até o presente momento”.
“O governo federal está estudando medidas envolvendo políticas públicas e questões sociais na região de forma concomitante”, ressaltou ainda a Casa Civil.
Já o major-brigadeiro do ar Luiz Fernando de Aguiar disse que é possível operar inicialmente Alcântara com três bases de lançamento considerando suas dimensões atuais. Ele defendeu que o uso comercial seja iniciado sem essa ampliação pois acredita que isso trará benefícios para a comunidade, facilitando no futuro convencê-las sobre a expansão.
Até agora, ao menos, a população de Alcântara viu mais impactos negativos do que positivos com a vinda da base, diz a historiadora Karina Scanavino, que há 30 anos vive na região e é diretora do Museu Casa Histórica de Alcântara (MCHA). A pobreza foi reduzida nos últimos anos muito mais pelos programas sociais do que por atividades econômicas relacionadas ao CLA, já que a população em geral não tem qualificação para trabalhar lá.
“Não é que a população seja contra a base, mas não vê benefícios. Nesses 30 anos, Alcântara não prosperou, patinou”, lamenta.
FONTE: BBC Brasil