Orçamento da Defesa para este ano, primeiro do presidente Jair Bolsonaro, bate em R$ 102,8 bilhões. Parece muito. Não é.
Por Roberto Godoy
Generais, ok? De quatro estrelas, o topo da carreira. Foram adidos em embaixadas estratégicas como as de Washington, Londres e Caracas. Profissionais habituados a comandar e a serem obedecidos. Entendem o trabalho na administração Bolsonaro como uma missão. Na prática, isso quer dizer que o objetivo a ser atingido é o que conta – outros interesses, não. O compromisso prioritário de cada um é com a Nação. Para eles, as Forças Armadas são as garantidoras do estado nacional brasileiro e dos princípios constitucionais. Mas, acreditam, as três armas – Exército, Marinha, Aeronáutica – andam sendo negligenciadas, usadas erradamente, caçando traficantes nas favelas do Rio quando deveriam estar blindando as linhas de fronteira e aprendendo a enfrentar grupos extremistas que estão chegando ao País. “Já não é uma questão de se, mas sim de quando isso vai acontecer”, sustenta um dos generais.
Pela lógica desse raciocínio, a presença do time deveria levar Jair Bolsonaro a aumentar os gastos com a Defesa – pondo dinheiro nos quadros de pessoal e nas compras de equipamento. Bom. Acho pouco provável que isso aconteça. O orçamento da Defesa para este ano bate em R$ 102,8 bilhões. Parece muito. Não é. Do bolo saem salários, pensões e as aposentadorias. O custeio de manutenção e de operações especiais. Para investimento, quase nada.
Militares no poder, talvez por constrangimento, pudor ou estranho senso ético, não costumam abrir a carteira para gastar com os planos de sua área. Durante os 21 anos que durou o golpe de 1964, os cinco generais-presidentes – Castelo Branco, Costa e Silva, Emílio Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo, mais os integrantes da Junta Governativa que assumiu o poder por dois meses em 1969 – aplicaram muito pouco na Defesa. O ministério só seria criado em 1999, por Fernando Henrique Cardoso, e até então cada caso era analisado isoladamente. Em todo o ciclo do regime de exceção, a Marinha se deu bem, os outros nem tanto. Recebeu a partir de 1971 três submarinos ingleses da classe Oberon, muito modernos para os padrões da época. O custo estimado era de 25 milhões de libras por unidade, fora os sistemas de apoio. Depois, por decisão de Geisel, foram compradas mais seis fragatas lançadoras de mísseis, também fornecidas pela Inglaterra, para formar a classe Niterói. A conta bateu em 150 milhões de libras. Cada uma desloca 3.800 toneladas. Quatro delas foram construídas pelo estaleiro britânico Vosper Thornycroft. As outras duas saíram do Arsenal da Marinha, no Rio, entre 1975 e 1980. Mais adiante a frota passou por um lento processo de modernização, o Moderfrag, nos anos 90. Forma até hoje a linha principal de ataque da 1ª Esquadra. A intervalos de seis meses, um dos navios é enviado para o Mar Mediterrâneo preparada para entrar em batalha – vai liderar a FT-Unifil, força-tarefa da Organização das Nações Unidas no Mediterrâneo que dá apoio à segurança do Líbano.
Em 1972, o presidente era Emílio Médici quando a Força Aérea recebeu os seus primeiros caças supersônicos, 13 jatos MirageIIIE/Br, franceses. O Exército incorporou lotes modestos de blindados sobre rodas fabricados no País, os EE-9 Cascavel e EE-11 Urutu, produzidos pela extinta Engesa. A indústria era privada. Em 1988 mantinha negócios incluindo a venda de serviços e munições, com 32 países, segundo os registros do setor de promoção comercial do Itamaraty. O Brasil não figurava entre os 5 maiores clientes.
Na redemocratização a situação não melhorou. José Sarney, presidente de oportunidade, limitou o orçamento militar ao mínimo necessário. Oficializou o programa de qualificação nuclear da Marinha e mandou para a geladeira um longo relatório de 1984 que expunha as necessidades das Forças. O documento só saiu do arquivo 23 anos depois, em 2007. Já não servia para mais nada. A crise ficara mais grave, estava pior, o setor respirava por aparelhos. É bom lembrar que antes disso o presidente Fernando Collor prometera em campanha recuperar a capacidade militar “plena e totalmente”. Não deu certo.
Fernando Henrique, eleito em 1995, tratou de comprar um novo porta-aviões, o velho Foch, da marinha da França, em 2000. Negócio de amigo. O monstro de 32 mil toneladas e 266 metros de comprimento, um veterano de 40 anos de idade, custou US$ 12 milhões. Estava em bom estado de conservação. Mas sofria de uma doença incurável: o excesso de amianto, uma substância tóxica, usada nas estruturas metálicas do gigante. O veneno só pode ser removido em parte. Quando o porta-aviões foi construído, entre 1957 e 1960, o amianto era um recurso comum da engenharia. Levava a bordo 16 caças leves Skyhawk (usados, comprados no Kuwait) e até 1.100 tripulantes. Rebatizado “São Paulo”, serviu à Marinha de 2001 a 2017. Acabou desativado depois de vários incidentes, um incêndio a bordo e uma avaliação arrasadora – a modernização do navio custaria R$ 1 bilhão e exigiria três anos de obras. Retirados equipamentos, peças e componentes ainda bons para uso, o ‘São Paulo’ vai virar museu.
A história continua. No segundo semestre de 2007, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva participou de uma longa conversa com os comandantes militares e mais o ministro da Defesa, Nelson Jobim. Coisa séria. A Marinha, por exemplo, estimava que em pouco tempo não teria mais navios. A FAB queria uma definição para a escolha dos novos caças de múltiplo emprego, um processo que já durava 17 anos desde as primeiras providências, e o Exército listava deficiências que as vezes se refletiam na falta de dinheiro para manter em certas unidades o expediente completo da garotada em cumprimento do serviço obrigatório, “sejamos claros, nem sempre havia caixa para comprar comida”, disse um coronel da infantaria, hoje na reserva. Lula decidiu rápido. Pediu uma lista de programas estratégicos. E anunciou a retomada das atividades do programa nuclear, na época virtualmente paralisado.
Os chefes militares fizeram a lição de casa e não economizaram: chegaram a uma planilha de 52 itens, de mísseis leves a satélites e sistemas digitais de vigilância, passando por uma nova família de blindados sobre rodas, navios de superfície, aviões, helicópteros, um novo fuzil padrão e todos os projetos de apoio exigidos por uma iniciativa desse porte. Havia, sim, programas em andamento, ainda que em ritmo lento. Baita surpresa: em poucos meses os planos começaram a sair do papel e das telas de computador. A crise do segundo mandato de Lula, complicada na gestão seguinte, de Dilma Rousseff, voltou a atrasar, mas não parou os empreendimentos.
A onda boa durou o suficiente para que a Aeronáutica definisse o Gripen NG/E como o novo caça brasileiro e desse velocidade ao desenvolvimento do cargueiro médio KC-390, da Embraer, uma aposta comercial garantida. No Exército, o Sistema de Vigilância de Fronteira, o Sisfron, teve o módulo piloto concluído. É uma frente de 650 km no Mato Grosso do Sul, entre as cidades de Mundo Novo e Caracol, olhando para as divisas territoriais do Paraguai e da Bolívia. Trata-se apenas do início de uma rede que terá, um dia, 17 mil km vigiando as linhas dos limites com 10 países vizinhos. Abrange sensores digitais, sinais de satélite, imagens eletrônicas, radares terrestres, computadores avançados e uma tropa especial, treinada e equipada para esse tipo de trabalho. Só no bloco considerado de teste foram apreendidos em 2018, por meio do Sisfron, 196 toneladas de drogas. O investimento original no projeto era de R$ 839 milhões.
Pouco tempo depois do encontro de 2007, Lula esteve no Centro Aramar, em Iperó, a 130 km de São Paulo na região de Sorocaba. É lá que a Marinha mantém, há mais de 30 anos, as investigações no campo da pesquisa nuclear. Já domina o ciclo atômico inteiro – da extração ao enriquecimento do urânio – e construiu espetaculares máquinas ultracentrífugas, usadas para separar o isótopo U-238, pobre em energia, do U-235, mais rico. Por convenção o Brasil faz isso até o nível de 5% para gerar eletricidade em usinas e de 20% para aplicações médicas. Para alimentar armas, precisaria chegar a mais de 90%. Não atinge esse patamar em respeito aos tratados e acordos internacionais aos quais o País aderiu. As instalações em Iperó são monitoradas desde Viena pela Agência internacional de Energia Atômica (AIEA) por meio câmeras de vídeo lacradas dentro de caixas de vidro grosso. Os laboratórios são submetidos regularmente a inspeções. Não é permitido o acesso dos especialistas da AIEA às ultracentrífugas. A tecnologia brasileira é eficiente, simples e de custo menor que o internacional. Tudo o que a agência controladora tem de saber é quanto de urânio entrou na rede e quanto saiu dela. A conta fechou? Fim de conversa.
Com esse alicerce de conhecimento sensível, o urânio enriquecido do Brasil foi licenciado por um centro especializado na Noruega, último estágio do domínio do método, o governo decidiu em 2008 que o País deveria ter uma força militar de dissuasão estratégica. Com 8 mil km de litoral, 4,5 milhões de km² de zona de interesse econômico no oceano e mais de 90% das mercadorias da planilha de exportações/importações transitando pelo mar, o cenário de atuação era claro. A opção mais objetiva foi pela criação de uma frota de submarinos convencionais, quer dizer, de motores diesel para navegar na superfície, e elétricos, para o deslocamento debaixo da água. Precisariam ser construídos em território nacional, com transferência de tecnologia. E no final deveriam permitir acesso à engenharia de um navio mais ambicioso, de propulsão nuclear. A escolha do Scorpéne, do Naval Group, francês, teve a ver com o fato de apresentarem os modelos mais próximos da versão atômica e de terem um projeto possível de receber modificações destinadas a atender necessidades da Marinha.
Novo submarino
Riachuelo tem 75 metros e é alto como um prédio de quatro andares.
O Scorpéne original cresceu 5 metros e ganhou 400 toneladas. Batizado de S-40 Riachuelo, o primeiro de um lote de quatro – aos quais devem se seguir outros dois, um negócio ainda em estudo –, lançado ao mar dia 14 de dezembro no novo estaleiro de Itaguaí. Na península ao sul do Rio de Janeiro, está em construção uma avançada base de operações, núcleo habitacional, centro logístico. O custo do programa, até 2029, é estimado em R$ 37 bilhões – R$ 17 bilhões já aplicados. A inciativa tem nome, Prosub, e gerou filhotes. O mais interessante é o Mansup, um míssil antinavio que na versão Mansub vai ser lançado pelos tubos de torpedo de submarinos submersos. Foi testado com sucesso em novembro do ano passado. A Marinha também precisa garantir meios para o contrato de quatro novas corvetas de 2.400 toneladas. A encomenda, avaliada em US$ 1,6 bilhão, é disputada por quatro consórcios formados entre empresas estrangeiras e brasileiras. O resultado sai em março.
Em setembro de 2013, o número de programas estratégicos preferenciais havia sido reduzido a cerca de dez. O Exército considerava ainda sete deles independentemente, necessitando de R$ 58 bilhões em investimentos até 2030. A maioria foi mantida, como o da implantação de Grupos de Foguetes e Mísseis no Forte Santa Bárbara, em Formosa, Goiás. Com prazos dilatados, esquadrões dos lançadores Astros II modernizados e do novo Astros 2020 continuaram sendo entregues pelo fabricante, a Avibras Aeroespacial, de São José dos Campos. Os foguetes de saturação tem raio de ação de até 90 km. A novidade é um míssil de cruzeiro com 300 km de alcance, o MTC-300, e um foguete com guiagem primária, o SS40G, para cobrir alvos no limite de 45 km. Ambos os tipos estão passando por uma campanha de disparos de ensaio. As encomendas estão previstas para terminar em 2023. O contrato vale R$ 2,45 bilhões.
Destruidor
O míssil AV-TM 300 é utilizado para destruir alvos estratégicos a média distância com grande precisão e danos colaterais reduzidos.
FONTE: Estadão