Por Ricardo Senra
Tropas americanas foram convidadas pelo Exército brasileiro a participar de um exercício militar na tríplice fronteira amazônica entre Brasil, Peru e Colômbia, em novembro deste ano.
A Operação América Unida é parte do AmazonLog, uma atividade de logística militar inédita na América do Sul e criada pelo Exército brasileiro a partir de um exercício feito em 2015 pela Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na Hungria, do qual o Brasil participou como observador.
Segundo o Exército, o ineditismo do evento está na montagem de uma base logística mútua entre os países na Amazônia, que abrigará munição, aparato de disparos e transporte e equipamentos de comunicação, além de militares das quatro nações.
Esta não é o primeiro exercício mútuo entre as forças armadas de Brasil e EUA no país. No ano passado, por exemplo, as Marinhas das duas nações fizeram uma atividade preparatória para a Olimpíada no Rio de Janeiro, envolvendo treinamentos com foco antiterrorismo.
Em 2015, um porta-aviões americano passou pela costa do Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro para treinamento da Força Aérea Brasileira (FAB).
O exercício deve durar 10 dias e será conduzido por tropas dos EUA e dos três países da fronteira amazônica, além de “observadores militares de outras nações amigas, e diversas agências e órgãos governamentais”, segundo o Exército brasileiro.
A atividade simulará um comando militar conjunto e uma base de apoio logístico para tropas multinacionais. A operação vem no esteio de uma série de novos acordos militares pelas Forças Armadas de Brasil e Estados Unidos e visitas de autoridades americanas a instalações brasileiras com o objetivo de “reaproximar” e “estreitar” as relações militares entre os dois países.
À BBC Brasil, o Exército brasileiro negou que a atividade sirva como embrião para uma possível base multinacional na Amazônia, como aconteceu após o exercício da Otan citado como base para a atividade.
“Com uma atividade como essa, busca-se desenvolver conhecimentos, compartilhar experiências e desenvolver confiança mútua”, afirmou a corporação.
Entre as metas da operação, segundo o Exército brasileiro, está o aumento da “capacidade de pronta resposta multinacional, sobretudo nos campos da logística humanitária e apoio ao enfrentamento de ilícitos transnacionais” e de capacidade de resposta para situações de humanitária.
Ineditismo
A base da atividade será a cidade de Tabatinga (AM), que faz fronteira com Letícia (Colômbia) e Santa Rosa (Peru). A BBC Brasil visitou a região no início desse ano – na ocasião, militares e policiais federais disseram que não são capazes de controlar atividades ilícitas como tráfico de armas e drogas pelos imensos rios da região.
Apesar de citar crimes transfronteiriços nos documentos do Amazonlog, o Exército afirmou que o foco da atividade é de preparação para situações humanitárias.
Questionada pela reportagem sobre como as Forças Armadas dos EUA poderiam apoiar o Brasil em áreas como violência e tráfico de drogas, armas e pessoas, a embaixada americana afirmou que “o Brasil é um parceiro confiável e respeitável”, que as forças armadas dos dois países “têm áreas de conhecimento e experiência que compartilham rotineiramente umas com as outras” e que “a maioria das atividades bilaterais de cooperação em defesa entre nossas forças armadas são trocas entre especialistas”.
“É um exercício inédito no âmbito da América do Sul. É a primeira vez que vamos montar uma base logística internacional”, diz o general Theofilo Gaspar de Oliveira, responsável pelo Comando Logístico da Força, em Brasília, e um dos organizadores do AmazonLog.
“Um dos objetivos é fazer uma fiscalização maior na região e criar uma doutrina de emprego para combater os crimes transfronteiriços, que afetam aquela região na famosa guerra de fronteira que hoje alimenta a nossa guerra urbana existente nos grandes centros”, afirma o general, em vídeo promocional do evento.
Questionado pela BBC Brasil sobre o convite para participação dos EUA no evento, o Exército limitou-se a informar que a atividade “representa uma grande operação de tropa em conjunto, não somente com os Estados Unidos da América, como também com as Forças Armadas de nossos vizinhos Colômbia e Peru.”
Inspiração para o AmazonLog, o exercício realizado pela Otan na Hungria se desdobrou na criação de bases militares multinacionais para abrigar refugiados vindos de países africanos e do Oriente Médio para a Europa.
Questionado sobre a possibilidade de uma base internacional na Amazônia como fruto da atividade, o Exército brasileiro afirmou que o trabalho por aqui é distinto.
“Não. Ao contrário da Otan, a qual é uma aliança militar, o trabalho brasileiro com as Forças Armadas dos países amigos se dá na base da cooperação”, responderam porta-vozes do Exército.
À BBC Brasil, a embaixada dos Estados Unidos em Brasília disse que o país “está satisfeito de ter sido convidado junto a outras nações parceiras regionais para participar” do exercício e que “busca expandir e aprofundar parcerias de defesa com o Brasil”.
“Durante o último ano, nós finalizamos uma série de compromissos-chave relacionados a Defesa (entre EUA e Brasil)”, afirmaram porta-vozes da embaixada americana.
“Olhando para o futuro, outros acordos estão em discussão, incluindo suporte logístico, testagem e avaliação em ciência e tecnologia e trocas científicas”.
Novos acordos militares Brasil-EUA
Em março, o comandante do Exército Sul dos Estados Unidos, major-general Clarence K. K. Chinn, foi condecorado, em Brasília, com a medalha da Ordem do Mérito Militar.
De acordo com a Defesa dos Estados Unidos, o Exército Sul é responsável por realizar operações multinacionais com 31 países nas Américas do Sul e Central.
O comandante americano visitou as instalações do Comando Militar da Amazônia, onde a atividade conjunta será realizada em novembro.
Em 24 de março, o Exército americano inaugurou um centro de tecnologia em São Paulo para “desenvolver parcerias com o Brasil em projetos de pesquisa com foco em inovação”.
Na véspera, o ministério da Defesa do Brasil e o Departamento de Defesa dos EUA assinaram Convênio para Intercâmbio de Informações em Pesquisa e Desenvolvimento, ou MIEA (Master Information Exchange Agreement), na sigla em inglês.
Na ocasião, o secretário Flávio Basilio, da Secretaria de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa (Seprod) afirmou que o documento funciona como “base para a se estabelecer qualquer tipo de cooperação bilateral com os Estados Unidos”.
Acordos de intercâmbio como o assinado no mês passado não precisam de aprovação do Congresso Nacional. “É mais um passo no sentido de nos reaproximar dos americanos, possibilitando parcerias importantes na área tecnológica que representarão um incentivo importante para a nossa Base Industrial de Defesa e para o País como um todo”, disse o secretário.
Em 3 de abril, o ministério da Defesa anunciou em evento na embaixada americana que o Brasil e os Estados Unidos desenvolverão “um projeto de defesa” em conjunto.
O ministério da Defesa não respondeu aos pedidos de entrevista da BBC Brasil para comentar os acordos fechados com os Estados Unidos e os detalhes sobre o projeto bilateral.
Em outubro, haverá um novo encontro sobre a indústria de Defesa dos dois países, em Washington. O Exército brasileiro também trabalha para organizar a ida de um batalhão de infantaria do Brasil para treinamento uma brigada do Exército americano em Fort Polk, na Lousiana, no segundo semestre de 2020.
Análise
Para o cientista politico João Roberto Martins Filho, professor da Universidade Federal de São Carlos e ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, “a aproximação do Exército brasileiro ao dos Estados Unidos sinalizaria uma mudança de postura entre os dois países, que agora têm novos presidentes”.
“Esta maior aproximação seria uma ruptura do que vem acontecendo desde 1989, que é um afastamento dos EUA pelo Exército do Brasil”, diz Martins Filho.
“No fim da Guerra Fria, o Brasil se deparou com um país (EUA) que era aliado estratégico e que de repente começou a agir de forma totalmente independente, como superpotência única. Isso provocou uma reação de hiperdefesa da Amazônia e de afastamento.”
Ele cita o acordo para a construção de submarinos com a França em 2011 e a compra de caças suecos em 2013 como exemplos deste afastamento e diz que, por ora, os anúncios entre as Forças Armadas brasileiras e americanas não devem ser “superestimados”. “Do discurso para a prática há sempre um intervalo”, diz.
Fundador e líder do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional da UNESP e coordenador de Segurança Internacional, Defesa e Estratégia da Associação Brasileira de Relações Internacionais, o filósofo Héctor Luis Saint Pierre “diverge gentilmente” do colega.
Saint Pierre cita a atenção dos Estados Unidos sobre a situação política na Venezuela – Donald Trump citou o país em conversas com Michel Temer e com os presidentes da Argentina, Peru e Colômbia.
“Há um respeito na América do Sul pela escola militar brasileira. Então, o Brasil é um parceiro estratégico para a formação doutrinária dos militares do continente. Se os EUA têm a simpatia do Exército do Brasil, é mais fácil espalhar sua mensagem entre os militares sul-americanos”, diz.
“Uma alternativa a ser pensada seria uma intenção dos EUA de quebrar a expectativa de uma parceria sul-americana neste momento político”, diz. “A Venezuela é uma problema quase de honra para os Estados Unidos.”
O especialista também cita o crescimento da China como produtor de equipamentos militares e armamento.
“Há uma grave preocupação nos EUA com o incremento do comércio da China com a América Latina também em termos de armamento. Os EUA gastaram US$ 650 bilhões com Defesa, a China gastou menos de 10% disso, mas ainda assim já esta produzindo porta-aviões com bom nível tecnológico. Se os Estados Unidos conseguem se aproximar o Brasil para sua zona de influência, eles estancam este prejuízo”, afirma.
Para o professor, a aproximação americana também poderia ser motivada por interesses econômicos. “Tenho notado oficiais defendendo a tese de que não precisamos de autonomia tecnológica nas Forças Armadas se podemos contar com parcerias com países como os Estados Unidos. Normalmente se imagina que um oficial militar, do país que for, seja um nacionalista. Mas essa é uma perspectiva liberal nas Forças Armadas que vem ganhando força.”
O professor explica: “Hoje a questão estratégica está subordinada ao negócio. A indústria do armamento é a que mais floresce no mundo. Não é preciso uma guerra: a ameaça de guerra já é suficiente para mover este tipo de negócio. Muitas atividades militares, inclusive, são muito mais guiadas pelos negócios militares do que por uma lógica política”, afirma.
FONTE: BBC Brasil