Em um desafio direto para o avião cargueiro Hércules, da Lockheed Martin, a Embraer promete um jato que voa mais alto, mais cheio e mais rápido a um preço menor.
O movimento ousado é parte da campanha do Brasil por credibilidade como um competidor importante no cenário mundial. Após anos focando em equipamentos militares de segunda linha, o país está fortalecendo sua indústria de defesa nacional e visando as exportações em um momento de encolhimento do mercado global.
Se o KC-390 da Embraer estiver voando até o fim do ano que vem como planejado, o Brasil irá ser bem sucedido em um segmento no qual os concorrentes tropeçam, ultrapassando programas lançados por Rússia, Índia e China na última década. Será o maior avião já feito na América Latina, com um corpo grande o suficiente para transportar um helicóptero Blackhawk.
“Não acredito que o Hércules alguma vez tenha enfrentado uma concorrência tão séria e é a aeronave mais antiga em produção”, disse Richard Aboulafia, consultor de aviação do Teal Group.
A Embraer está apostando que pode não apenas alcançar o Hércules como superá-lo em várias frentes ao usar motores a jato em vez das robustas turboélices que alimentam a aeronave da Lockheed desde os anos 1950.
Ao perturbar o senso comum em transporte tático, a Embraer está colocando suas esperanças na mesma família de motores que alimentam o Airbus A320, e prometendo uma vantagem quando se trata de carga útil máxima, velocidade e altitude de cruzeiro. Mas a Lockheed argumenta que nada pode igualar a durabilidade das turboélices.
“Elas nos dão uma tremenda vantagem ao entrar na terra, em cascalho e em pistas de pouso despreparadas”, disse Larry Gallogly, ex-piloto C130J para a Força Aérea dos EUA que agora trabalha para a Lockheed. “Se você vai para essas pistas de pouso com um motor a jato, esse motor pode ser destruído”.
Executivos da Embraer, que está projetando o seu avião de carga para a Força Aérea Brasileira para pousar em pistas improvisadas da Amazônia à Antártida, dizem que o medo de motores de jato frágeis é baseado em suposições antigas que estão sendo derrubadas com este avião.
“Se você tivesse me perguntado isso há 30 anos, eu teria dito que um turboélice é melhor em terrenos acidentados. Hoje eu tenho certeza de que não é”, disse Paulo Gastão, diretor do programa KC-390 da Embraer e ex-engenheiro de vôo da Força Aérea Brasileira.
Ainda assim, analistas dizem que essa será uma venda difícil para o punhado de países que implementam regularmente unidades de operações especiais em território hostil.
Ao optar por um motor que já voou 1 milhão de horas, a Embraer está evitando os riscos associados às últimas tecnologias de turboélices. Hélices enormes feitas de materiais compostos contribuíram para atrasos onerosos no avião de carga Airbus A400M, por exemplo.
Mesmo assim, o afastamento das turboélices significa sacrificar a eficiência de combustível e autonomia –dois pontos em que o Hércules sairá ganhando.
Demanda reprimida
O motor a jato pode ajudar a definir o KC-390, em um mercado que tem mostrado sinais de estagnação sob o domínio da Lockheed.
A fabricante de aviões norte-americana vendeu mais de 2 mil aviões Hércules em suas primeiras quatro décadas, mas as vendas do atualizado C130J Super Hércules quase não superararam 300 unidades desde a virada do século.
A demanda inicial para o Super Hércules foi morna, mas as vendas já aceleraram nos últimos cinco anos e a Lockheed espera fechar negócios para outras 300 aeronaves nos próximos anos. A enorme base de usuários e a infraestrutura de suporte global vão ajudar nas campanhas de vendas.
Os brasileiros estão prometendo agitar o mercado superando o Super Hércules no preço.
Um preço competitivo será chave para a Embraer, que não pode contar com um enorme mercado interno como muitas outras fabricantes de produtos militares.
Em vez disso, o Brasil tem se aproximado de nações parceiras que manifestaram interesse no novo avião em troca de um papel no seu desenvolvimento industrial –uma versão latino-americana das coligações que deram apoio a grandes produtos de defesa europeus.
Brasil, Argentina, Colômbia, Chile, Portugal e República Tcheca, em conjunto, solicitaram 60 novos aviões de carga. Nos próximos dez anos, a Embraer vê um mercado de mais de 700 aviões no valor de US$ 50 bilhões.
“Estamos olhando para uma parcela razoável disso”, disse Gastão, acrescentando que 15% do mercado seria uma fatia saudável. “Não precisa ser muito para ser muito interessante.”
As entregas estão programadas para começar em 2016 e a empresa deve levar cerca de quatro anos para atender a demanda inicial, disse ele.
A Embraer também estudou versões civis do jato de carga, incluindo uma versão mais longa para o serviço postal brasileiro.
Foco na fronteira
A Embraer escolheu um momento complicado para lançar seu maior programa militar, quando cortes no orçamento das maiores forças armadas do mundo estão sacudindo a indústria de defesa.
O destino do KC-390 vai provar se o foco da Embraer em mercados de fronteira na América Latina, África, Sul da Ásia e no Oriente Médio pode salvar sua divisão de defesa da crise mais ampla. Quase 90 por cento do mercado estimado de aviões de carga está fora de Estados Unidos, Europa, China e Rússia.
Um acordo com a Boeing para vendas conjuntas para os Estados Unidos, Grã-Bretanha e partes do Oriente Médio poderia expandir o mercado de aviões em cerca de 400 aeronaves, de acordo com uma fonte da indústria que não quis se identificar, dada a natureza preliminar dos estudos.
Se o KC-390 tivesse chegado uma década atrás, teria sido um excelente candidato para o programa Joint Cargo Aircraft dos EUA, mas o excesso de aviões de carga e cortes no orçamento diminuíram suas chances no país, de acordo com uma fonte em Washington.
A maior abertura do mercado dos EUA pode vir depois de 2020, quando o Pentágono começará a substituir centenas de seus C130s antigos. Independentemente do mapa de vendas, a parceria com a Boeing trouxe parecer técnico para a primeira aeronave de dois corredores do Brasil, juntamente com um voto inesperado de confiança.
“É um selo de qualidade da Boeing que nos pegou de surpresa”, disse o coronel Sergio Carneiro, que supervisiona o programa da Força Aérea Brasileira.
Diplomacia delicada
Ainda assim, a ajuda da Boeing mostra que o KC-390 é uma aposta na política internacional tanto como na engenharia, como a Embraer aprendeu nos últimos anos.
Em 2006, os Estados Unidos retiveram tecnologia para bloquear um acordo para dezenas de aviões de ataque da Embraer, negociado pelo então presidente da Venezuela, Hugo Chávez, um inimigo norte-americano.
Um contrato do Pentágono para enviar a mesma aeronave para o Afeganistão foi anulado no ano passado nos tribunais pela rival norte-americana Beechcraft. O negócio tornou-se munição para campanhas na corrida presidencial dos EUA e enfrenta a ameaça de corte pelo Congresso no próximo ano.
Os laços com Washington se aqueceram desde que a presidente Dilma Rousseff assumiu, mas evidências recentes de que os EUA estariam espionando suas comunicações levaram a presidente a cancelar sua visita de Estado a Washington, prevista para outubro. A notícia minou as chances de uma oferta da Boeing para vender caças a Brasília, levantando dúvidas sobre as perspectivas de longo prazo de sua parceria com a Embraer.
As mudanças nos ventos políticos adicionam riscos para a receita futura, escreveu o analista de aviação do Citigroup Stephen Trent, em nota a clientes no início deste ano. Ele cortou sua recomendação para as ações da Embraer com indicação para venda, em abril, depois que o papel subiu 20% em três meses, apoiado por sinais de progresso no KC-390.
Trent disse que a alta foi exagerada, lembrando que as empresas de defesa geralmente são negociadas com um desconto de até 20% em comparação com as fabricantes de aviões comerciais. As ações da Embraer continuam entre os cinco melhores desempenhos do Ibovespa, BVSP em 2013, ganhando 30% até agora.
Para a Embraer, um fluxo de receita mais diversificado é o caminho mais claro para suavizar as oscilações violentas dos ciclos da aviação comercial. Sua estratégia foi cortar negócios com companhias aéreas de dois terços das receitas em 2008 para pouco mais da metade este ano.
O foco na defesa também é um retorno às raízes da Embraer, que nasceu em 1969 na Força Aérea Brasileira.
À beira da falência na década de 1990, a Embraer foi privatizada para financiar sua grande aposta na aviação regional. A empresa tornou-se a terceira maior fabricante de jatos comerciais do mundo, competindo com a fabricante de aviões canadense Bombardier, mas abaixo do radar de Boeing e Airbus.
Agora a Embraer está se tornando um dos pilares da indústria de defesa nacional brasileira, com um aumento nos gastos do governo em novos jatos de combate, radares de selva e até mesmo um satélite geoestacionário.
O Ministério da Defesa está investindo fortemente no programa KC-390: 2 bilhões de dólares em custos de desenvolvimento, além de um contrato para 28 aviões, que deve ser assinado nos próximos seis meses.
Mesmo com o investimento inicial, o coronel Carneiro disse que o Brasil provavelmente vai economizar dinheiro com os novos aviões na comparação com o custo de vida útil do Super Hércules ou com a manutenção contínua de sua frota existente de Hércules, de 22 aeronaves, que é de 35 anos, em média.
“Há pessoas que ficam passeando em carros antigos –elas são pessoas muito ricas”, disse Carneiro em uma entrevista na sede da Força Aérea, em Brasília. “Não somos um país rico. Apenas por essa razão, precisamos de um avião mais moderno.”
FONTE: UOL