“Quem salva uma vida, salva toda a humanidade” (Provérbio do Talmude que abre o filme “A lista de Schindler”).
Por Capitão-de-Corveta Robinson Farinazzo Casal
Passava da meia noite de 10 de junho de 1969 quando a aeronave Vought A-7 Corsair II aproximou-se para pouso à bordo do USS Constellation (CV-64) na costa sul da Califórnia, com boa visibilidade e mar calmo. O piloto voou o glideslope estabilizado e “na rampa”, com a apropriada razão de descida, enganchando o “tailhook” à 135 kt no cabo número 03. Infelizmente, talvez por um vento de través por boreste de última hora, ou por insuficiente pressão nos pedais, terminou pousando desalinhado com o eixo longitudinal do navio, deslizando para bombordo. O número 03, não aguentando a tração, rompeu-se, e a aeronave acabou por se precipitar nas águas geladas do Oceano Pacífico.
A partir deste instante, tudo se passou muito rapidamente para o jovem Capitão-Tenente. Tendo conhecimento que uma aeronave afunda em média 3 metros por segundo na água, e que abaixo de 30 metros a chance de sobrevivência era ínfima, ele comandou a ejeção submerso na água escura. Aflorou a superfície numa fração de segundos, livrou-se do paraquedas, inflou o colete salva-vidas e aguardou o helicóptero de resgate. Ele viveria para voar novamente, lutar a Guerra do Vietnã e ir para a reserva vinte e três anos depois como Comandante.
Nem sempre as coisas foram assim. Para alcançar esta proficiência técnica e eficácia operacional, onde um conjunto pesando cerca de 230 kg, composto por tripulante mais assento, ascende a 30 metros de altura em menos de 0,2 segundos, a Marinha (US Navy) e a Força Aérea do Estados Unidos (USAF) pagaram um alto preço em termos de vidas humanas e aeronaves. A longa epopeia vai dos aviões de tela e madeira ao jato supersônico de composite e titânio, e esta é a sua história.
Nos dias finais da Primeira Guerra Mundial, em 1918 , um piloto que precisasse abandonar seu avião necessitava, em teoria, apenas apoiar-se no assento (de vez que o cockpit era aberto), lançar-se no azul e abrir seu paraquedas, pois a velocidade das aeronaves dificilmente ultrapassava a cifra de 200 km/h e operava-se em altitudes onde a hipóxia não era um fator a ser considerado. Na prática, 1/3 dos pilotos que tiveram que fazer isto não sobreviveram ao procedimento.
Fato é que, para abandonar uma aeronave, havia que se considerar que a mesma deveria estar em voo reto e nivelado ou no mínimo fora do envelope de atitude dito “anormal” (isto é, não estar em parafuso, mergulhos abruptos, etc), e o aeronavegante em razoáveis condições de vigor físico para coordenar o salto no vazio. Muito esforço a empreender se o homem estivesse ferido.
Desta forma, durante os anos 30, projetistas britânicos, suecos e alemães dedicaram-se a aos estudos de sistemas de abandono da aeronave por meio de ejeção do tripulante, embora só estes últimos tenham conseguido algum sucesso, premidos que foram pelos desafios apresentados pelas novas aeronaves de ataque em mergulho. Estudaram-se em todas as formas de artefatos para impulsionar o assento para fora da aeronave, tais como molas a explosivos, passando até por ar comprimido, que foi abandonado por ser de difícil manutenção além de seus dispositivos armazenadores serem muito pesados.
Ao término da Segunda Guerra Mundial, o cenário se alterara dramaticamente, de vez que a velocidade de algumas aeronaves já se aproximava da barreira do som, o cockpit era fechado e combatia-se muitas vezes no limite da troposfera. Assim sendo, um projeto de sistemas de escape mais eficiente deixou de se tornar uma alternativa para se converter numa necessidade. Os alemães haviam conduzido cerca de 60 ejeções bem sucedidas desde 1942, e seus estudos avançados, sejam de natureza técnica ou no campo da medicina aeroespacial, foram aproveitados pelos aliados.
Nos Estados Unidos, várias empresas se dedicaram a projetos de assentos ejetáveis, mas havia uma diferença de conceito entre a Marinha e a Força Aérea. Na primeira, preconizava-se um sistema de ejeção que funcionasse em condições “zero zero” (velocidade e altitudes zeradas), e direcionado para cima. Já a Força Aérea acreditava que a ejeção só poderia se dar de forma segura acima de 250 pés de altura e direcionada para baixo (para evitar colisão com o conjunto leme/estabilizador).
Embora utilizando-se de soluções britânicas, a posição da Marinha acabou prevalecendo, amparada na premissa de que a ejeção em porta-aviões não podia se dar para baixo por razões óbvias, além de precisar atender imprescindivelmente a condição de funcionamento “zero – zero” (Fig. 1).
Não obstante, alguns aviões da Força Aérea implementaram o sistema de ejeção mista, com parte da tripulação ejetando para cima e outra parte para baixo (Fig. 2).
Resolvidas estas pendências, tratou-se de apropriar o “design” dos assentos para evitar danos a coluna do aeronavegante. A solução adotada nos dias de hoje é um assento razoavelmente inclinado, de maneira que a força “G” não incida diretamente sobre suas costas, dissipando-se pela angulação. Havia também a preocupação com as pernas porque, caso girassem livremente, poderiam bater em algum ponto da aeronave e ocasionar graves ferimentos. Optou-se pela adoção de fitas restritoras que recolhem as pernas automaticamente por ocasião do acionamento do comando de ejeção.
Em meados dos anos 50 os projetistas se depararam com outro problema: o advento das aeronaves supersônicas e sua complexa aerodinâmica associada. Ademais, operado próximos a estratosfera, o tripulante que ejetasse corria o risco de morrer de hipóxia. Fazia-se necessário expandir o envelope de operações. Foram então instalados dispositivos barométricos no assento que só abriam automaticamente o paraquedas abaixo de 7.000 ft (para o assento considerado neste artigo). Caso ejetasse acima disto, o piloto era continuamente suprido com oxigênio de emergência, até chegar a altitude de abertura automática.
Um aspecto que não pode ser deixado de lado quando se analisa o desenvolvimento dos sistemas de ejeção é o aperfeiçoamento dos equipamentos de combate e sobrevivência das tripulações, os quais eram parte integrante dos assentos, e foram projetados para oferecer condições de subsistência em selvas, desertos e regiões polares, além dos oceanos.
Ao longo de 70 anos de contínuos aperfeiçoamentos, os assentos ejetáveis já salvaram mais de 12.000 tripulantes em todas as forças armadas do planeta. Tornaram-se tão eficazes que até um aviador ferido ou semi-consciente pode acioná-lo com razoável chance de sucesso. Eles são a prova viva da capacidade inventiva do engenho humano que, mesmo desenvolvendo uma aplicação originariamente destinada a guerra, criou um inestimável instrumento de segurança de vôo e preservação de nosso bem mais precioso : a vida.
Abaixo o assento do caça mais moderno da atualidade: O F-35!