Por Otávio Santana do Rêgo Barros
Mês passado, uma roda com jornalistas de grande expressão discutia a crise atual do Haiti e as consequências para a população e para a região. Impossível não vincular a história recente do Haiti às nossas Forças Armadas. Já se passaram 20 anos desde que tropas brasileiras foram destacadas para aquele país, atendendo a uma solicitação da Organização das Nações Unidas (ONU) para compor a Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah).
Em 2010, logo depois do terremoto que destruiu o país, comandei o 1º Batalhão Brasileiro de Força de Paz (Brabat 1). Cheguei ao Haiti ainda com corpos soterrados pelos escombros. Vivi por sete meses em Porto Príncipe, ocasião em que deparei com as mazelas seculares da antiga colônia francesa, agravadas pelas condições dantescas que o sismo provocou na região.
O tremor ceifou a vida de 250 mil pessoas e deixou um sem-número de feridos. A missão que se aproximava do fim, com a transferência programada do poder às autoridades haitianas, foi prolongada até 2017. A prioridade foi redirecionada para a ajuda humanitária, com o Brasil assumindo-se principal ator na operação dirigida pela ONU.
Toneladas de alimentos, remédios, cobertores, garrafas d’água etc. foram transportadas por aeronaves da Força Aérea Brasileira e por navios da Marinha do Brasil. Um enorme esforço do governo brasileiro para minimizar as agruras da população.
Essa missão de paz marcou profundamente uma geração de nossos militares. Perto de 35 mil homens e mulheres foram postos à prova em seu profissionalismo. Somos, até hoje, citados como exemplo de sucesso pelo Departamento de Operações de Paz (DPO), estrutura responsável na ONU por conduzir essas missões.
Voltando à roda de jornalistas, na esteira de avaliações sobre o envolvimento de militares no cenário político-partidário dos últimos anos, alguns dos profissionais criticaram a atuação das tropas brasileiras no Haiti, atribuindo o sucesso captado pela opinião pública a uma campanha bem-sucedida de marketing.
Afundar a perna até o joelho em água pútrida, mesclada com lixo, dejetos animais e humanos, na favela de Cité Soleil enquanto patrulhávamos não é questão de marketing. Fazer as honras fúnebres aos 18 militares que perderam a vida esmagados entre escombros provocados pelos tremores não é questão de marketing.
Acolher milhares de feridos, muitos amputados, nas instalações de saúde no Campo Charlie, fornecendo-lhes comida, água e carinho, não é questão de marketing. Enfrentar terremotos, furacões e tempestades tropicais arrasadores, enquanto convivíamos com pobreza e insalubridade na “cozinha do inferno”, não é questão de marketing.
Submeter-se ao perigo real de perder a vida em solo estrangeiro, em nome da paz, ao enfrentar bandidos sanguinários e muito bem armados, não é questão de marketing. Escarafunchar paredes instáveis, ainda sob impacto de tremores secundários, na busca de pessoas que urravam por socorro, não é questão de marketing.
Se, após a retirada das tropas estrangeiras do Haiti, das estruturas civis conduzidas pela Minustah e a redução do apoio econômico de muitos governos estrangeiros, o país voltou a sofrer instabilidades, não é aos homens e mulheres das forças brasileiras que deve ser imputado o insucesso. Enquanto lá estiveram, desde generais a simples soldados, deram o melhor de si em prol de um ideal que parece hoje escapar ao ser humano: construir genuína solidariedade para com o semelhante.
Enfim, relembrando o lema dos boinas azuis: tudo pela paz!
Sobre o autor: Otávio Santana do Rêgo Barros é general de divisão da reserva
FONTE: O Globo