Por Edward Luce – Tradução de Maria Alves
Propus-me um desafio, há umas semanas: passar um dia inteiro em Washington sem falar, pensar ou ler sobre a China. Foi um fracasso total. Agrade-nos ou não, a mim não me deixa sossegado, o nosso futuro estará cada vez mais dominado pela rivalidade sino-americana. Gostaríamos que o nosso mundo fosse moldado por uma nova era de cooperação entre duas potências nas alterações climáticas, nas pandemias do futuro, na cibercriminalidade e noutros perigos que ameaçam o planeta. Mas este cenário parece cada vez mais improvável.
No início de setembro, o enviado especial de Joe Biden para o clima, John Kerry, visitou a China, com o intuito de conseguir progressos no dossiê das alterações climáticas. Sofreu um revés. Pior ainda, o ministro chinês dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi, reiterou a versão chinesa da abordagem defendida pelo antigo secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger durante a Guerra Fria, ou seja: os avanços diplomáticos num determinado domínio devem estar associados a avanços noutros domínios. John Kerry não conversou pessoalmente com Wang Yi, pois este só concordou falar com ele por videoconferência, apesar de o interlocutor norte-americano se ter deslocado de propósito a Tianjin, nas proximidades de Pequim.
As negociações sobre o clima, clarificou o ministro chinês, “não podem estar dissociadas das relações sino-americanas no seu conjunto”. Não é um bom presságio. Se a China suspender a cooperação até que Joe Biden deixe de criticar a política de Pequim em matéria de direitos humanos, abandone Taiwan, desista do patrulhamento em nome da liberdade de navegação, no mar da China meridional, levante o embargo à Huawei, etc., então o mundo arrisca-se a esperar eternamente por Godot. Biden não é muito diferente de Donald Trump no que concerne a maioria destas questões (é até ainda mais firme no que toca aos direitos fundamentais). Neste capítulo, existe agora um consenso em Washington.
Por enquanto, Pequim não tem sequer interesse em iniciar um verdadeiro diálogo com os Estados Unidos da América. O Presidente chinês, Xi Jinping, rejeitou recentemente um convite de Joe Biden, em que este propunha uma cimeira bilateral para definir os domínios a preservar na rivalidade estratégica entre os dois países. No decurso de uma conversa telefónica de 90 minutos, Xi e Biden aceitaram apenas evitar que “a competição se transforme em conflito”, mas o fato de terem sentido necessidade de enfatizar este ponto é tudo menos tranquilizador.
OTAN menos importante
O anúncio de uma aliança trilateral, entre os Estados Unidos da América, a Austrália e o Reino Unido, centrada em tecnologias militares confirma o endurecimento de uma guerra fria. Tem-se falado muito do orgulho ferido da França, privada do seu “contrato do século” de mais de 50 bilhões de dólares [43 bilhões de euros], para fornecer submarinos à Austrália. A contragosto, Biden poderá ter de acelerar as conversações sobre a autonomia estratégica da Europa. Porém, o novo centro de gravidade encontra-se agora na região do Indo-Pacífico e já não no Atlântico.
No dia 24 de setembro, na Casa Branca, realizou-se uma cimeira crucial de Chefes de Estado e do governo do Japão, Estados Unidos da América, Austrália e Índia, juntos no Diálogo de Segurança Quadrilateral, conhecido como QUAD. Nas duas horas que durou o encontro, os quatro líderes prometeram defender um Indo-Pacífico “livre e aberto, sem medo da coerção”, o que foi interpretado como uma frente unida contra a China que os vê como “uma construção da guerra fria predestinada a falhar”, noticiou a agência Reuters.
“Defendemos o Estado de direito, a liberdade de navegação e de sobrevoo, a resolução pacífica de disputas, os valores democráticos e a integridade territorial das nações”, diz o comunicado conjunto de Joe Biden, Scott Morrison, Yoshihide Suga e Narendra Modi.
O QUAD não é uma aliança oficial, e há poucas hipóteses de vir a ser formalizada, mas, neste momento, é muito mais importante do que a OTAN para a política externa de Biden. Se nenhum órgão de defesa mútua foi criado, isso é sobretudo porque a Índia se mostra relutante em assinar tratados. Os outros três países vão reforçando a sua cooperação militar. O Japão, por exemplo, não poupou elogios ao acordo entre a Austrália, os Estados Unidos da América e o Reino Unido (AUKUS), porque ele sela a reorientação britânica para o Oriente.
“O maior inimigo”
No meio de tudo isto, o último livro do jornalista Bob Woodward, Peril, veio causar rebuliço. A revelação mais chocante é a de que o general norte-americano Mark Milley, Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, telefonou por duas vezes ao homólogo chinês, em outubro de 2020 e em janeiro de 2021, para garantir a Pequim que Donald Trump não estava planejando nenhum ataque militar preventivo contra a China, tentando prolongar a sua Presidência, tal como aconteceu no filme Manobras na Casa Branca (Wag The Dog).
Saber se Mark Milley deu um passo em falso ou se quebrou a cadeia de comando nuclear, da qual não faz parte, isso já é outra questão. Em 15 de setembro, Joe Biden reafirmou a sua “grande confiança” no general, e este defendeu-se das críticas republicanas dizendo, perante o Congresso, no dia 29, que os chefes do Pentágono anteriores, Mark T. Esper, secretário de Estado, Mike Pompeo, e chefe de gabinete da Casa Branca, Mark Meadows, estavam a par dos telefonemas que ele fez, porque “a China estava a obtendo informações de espionagem erradas” sobre as intenções de Trump.
O que quero deixar claro é que os Estados Unidos da América estão sempre pensando na China e que a China está sempre pensando nos Estados Unidos da América. O que não é de todo tranquilizador. Há algum tempo que muitos se interrogam se os Estados Unidos da América e a China estão oficialmente travando uma Guerra Fria 2.0. Os que contestam esta hipótese sublinham que os laços económicos dos dois países são tão estreitos que um conflito desta natureza seria impensável.
Durante a primeira Guerra Fria, os soviéticos e os norte-americanos estavam em blocos comerciais quase totalmente separados. Isso até pode ser verdade, mas os laços também eram fortes entre o Reino Unido e a Alemanha, antes da I Guerra Mundial. Quando a retórica inflamada se impõe, tal como acontece na China e nos Estados Unidos da América desde o início da pandemia de Covid-19, os governos põem ideias na cabeça da população que arriscam ser uma realidade. Uma sondagem realizada pelo Instituto Gallup indica que 45% dos norte-americanos consideram hoje a China o seu “maior inimigo”. Um número que duplicou desde 2020.
FONTE: Financial Times