Por Reis Friede
A invasão de Taiwan pela China (ou, sob a narrativa oficial de Pequim, a reincorporação de parte indivisível de seu território) é uma tragédia anunciada. Sob muitos aspectos, será resultado de uma negligente política militar doméstica (que perdurou durante anos, mormente após o falecimento de CHIANG KAI-SHEK em 1975), associada a uma excessiva (e, até mesmo, ingênua) confiança nas garantias norte-americanas de segurança coletiva.
A famosa frase atribuída ao Secretário de Estado do Presidente DWIGHT EISENHOWER (entre 21/01/1953 e 22/04/1959), JOHN FOSTER DULLES, durante uma visita ao México em 1958 (mas que, em realidade, foi originalmente concebida pelo Presidente francês CHARLES DE GAULLE: “nenhuma nação tem amigos, apenas interesses”), “os Estados Unidos não têm amigos, têm interesses”, é uma lição amarga que muitos países, como o Vietnã do Sul (integrante, ainda que como “observador protegido”, de um acordo multilateral de defesa chamado OTASE/SEATO), experimentaram (com terríveis consequências) na prática das cambiantes relações geopolíticas.
A verdade é que a proteção norte-americana aos países do sudeste da Ásia perdurou até o momento em que os (oscilantes) interesses norte-americanos voltaram-se para o Oriente Médio (e para a proteção de seu suprimento de petróleo), ao mesmo tempo em que a China (que, por iniciativa estadunidense, foi admitida na ONU em 23 de novembro de 1971, passando a ocupar um assento no Conselho de Segurança em lugar de Taiwan e, logo em seguida, reconhecida diplomaticamente, em parte, na histórica viagem do Presidente RICHARD NIXON em 1972, para, posteriormente, ser plenamente reconhecida na política de “Uma Só China” em 1979, durante o governo JIMMY CARTER) deixou de ser vista como uma ameaça, passando a ser encarada como uma aliada (de oportunidade) na luta de contenção aos expansionismo soviético.
“Tardiamente, os EUA tentaram cinicamente jogar o poderio da China contra a URSS; esta é uma política cega e perigosa.” (LEONID BREJNEV; Peace, Détente, and Soviet-American Relations: A Collection of Public Statements, Political Science, 1979, p. 222)
Ainda assim, muito antes, os EUA já tinham emitido claro sinal de que sua proteção militar (a que muitos aludiam como o “guarda-chuva nuclear estadunidense”) era limitada e sempre condicionada aos seus (mutáveis) interesses nacionais prevalentes. Não por acaso, muitos países, pretensamente protegidos pelo “escudo militar norte-americano”, desenvolveram suas próprias capacidades militares, inclusive adquirindo tecnologia bélico-nuclear, como foi o caso do Reino Unido em 1952, da França em 1960, e mais especificamente de Israel no final da década de 1960, como resultado de seu completo abandono, em 1967, na chamada Guerra (preemptiva) dos Seis Dias (o que motivou a África do Sul a também buscar a tecnologia, contando com apoio israelense).
Não obstante o maciço auxílio militar norte-americano na posterior Guerra do Yom Kippur (1973), a verdade é que, no terceiro dia de intensos combates (e com riscos reais de uma derrota de Tel Aviv) o Presidente RICHARD NIXON foi advertido diretamente pela Premiê GOLDA MEIR de que Israel estava pronto para usar suas armas nucleares diretamente contra as cidades do Cairo e de Damasco no caso de um eventual desastre no campo de batalha que não fosse impedido pelos americanos, obrigando Washington a suprir Tel Aviv com um amplo fornecimento de armamentos que garantiriam, alternativamente, a vitória israelense, sem o emprego de bombas atômicas.
Mais uma vez, prevaleceu a defesa dos interesses nacionais norte-americanos (no contexto da dinâmica da Guerra Fria) sobre uma pretensa amizade (irrestrita) judaico-americana. Portanto, sem muito esforço de reconstrução da história, é fácil concluir que muitos países souberam aprender as lições relativas à realidade da política externa preconizada por Washington (entendendo perfeitamente os limites das garantias militares estadunidenses), desenvolvendo, por via de consequência, forças dissuasivas próprias (inclusive com parcial ou mesmo total independência de fornecimento estrangeiro, como é o caso da Suécia) que asseguraram, não obstante a manutenção (mesmo que nem sempre regular) do auxílio norte-americano, a sua efetiva proteção e, mais do que isto, a sua própria sobrevivência enquanto nações soberanas. Nesse sentido, o caso de Taiwan é no mínimo emblemático.
Com um Produto Interno Bruto – PIB que em 2020 atingiu a surpreendente cifra de 636 bilhões de dólares (quase o dobro dos US$ 383 bilhões de Israel e superior à renda nacional da Suécia, de US$ 529 bilhões), é no mínimo paradoxal que um país ameaçado de constante (e iminente) invasão tenha despendido apenas 13,9 bilhões de dólares (2,2% do PIB) em sua defesa em comparação com Israel que, no mesmo período, gastou 16,6 bilhões de dólares (4,3% do PIB).
Também chama a atenção que, em 1964, os efetivos (ativos) de Taiwan contavam com 600 mil militares (mais que o dobro dos 250 mil de Israel), e que em 2020 tenham sido reduzidos para apenas 163 mil soldados (um número equivalente aos 169 mil de Israel, entretanto com a substancial diferença que Tel Aviv consegue, ao contrário de Taipé, mobilizar outros 465 mil em pouco mais de 48 horas).
Ademais, salta aos olhos que o número de tanques de combate (MBT) à disposição do exército taiwanês tenha sido drasticamente reduzido nos últimos anos, contando em 2020 com apenas 565 unidades, cerca da metade do quantitativo disponível em 1964, e todos de modelos obsoletos que praticamente não são mais utilizados pelos grandes exércitos (200 M-60 A3; 100 M-48 A5 e 265 M-48H; além de 100 tanques leves M-41/Type-64), comparados às 1.370 unidades israelenses (das quais 490 encontram-se em prontidão ativa), sendo a maioria dos moderníssimos modelos Merkava Mk. IV (330 unidades) e III (160 unidades), de fabricação própria, além de 880 na reserva (660 Mk. III e 220 Mk. IV).
No que concerne à força aérea, componente armado vital que muitos historiadores apontam como fator decisivo que impediu a suposta invasão germânica às ilhas britânicas na famosa Batalha da Inglaterra em 1939-40, a situação de Taiwan é ainda mais preocupante. Taipé contava em 2020 com 478 aviões de combate, sendo praticamente todas aeronaves com capacidade combativa extremamente limitada: 86 F-5E/F Tiger II (além de mais algumas unidades em estoque); 139 F-16A/B Falcon (versões já bastante ultrapassadas do icônico caça norte-americano, todos adquiridos em 1992); 55 Mirage-2000 e 127 de seu avião de ataque (de fabricação local) F-CK-1C/D Chung-Ku; além de 71 outros modelos.
Não obstante as recentes encomendas de 66 caças F-16V Block.70 Viper de última geração (equipados com radar de controle de tiro de primeira linha AESA APG-83), quatro dos quais já entregues e operacionais, mísseis de defesa aérea Patriot, navios detectores de minas submarinas, helicópteros Black Hawk, além de 18 torpedos Mk-48 (estes diretamente dos estoques norte-americanos) e outros equipamentos de menor envergadura, o rearmamento de Taiwan é, no mínimo, tardio e muito aquém de suas necessidades defensivas, e se distensionará (com exceção dos torpedos) em um prazo de entrega no mínimo preocupante face à urgência da necessidade de tais equipamentos.
Vale lembrar que em 1955, após diversas tentativas de invasão chinesa às ilhas (a chamada Crise do Estreito de Taiwan 1954/55), o governo EISENHOWER resolveu instalar bases americanas (e alocar efetivos norte-americanos) no arquipélago como forma de dissuadir (a exemplo da presença militar estadunidense na Coreia do Sul) qualquer aventura militar por parte de Pequim, ainda que uma segunda tentativa (igualmente frustrada) tenha sido realizada em 1958. Porém, em 1979 o governo CARTER, em acordo com as liderança chinesas, removeu todo efetivo e os equipamentos que protegiam Taiwan indicando (indiretamente), o afastamento (definitivo) dos EUA de um compromisso maior com a defesa das ilhas, não obstante o chamado “Ato de Relações com Taiwan”, aprovado pelo Congresso dos EUA, em abril de 1979, que exige que o país garanta ao arquipélago (permanentemente) a sua capacidade de autodefesa.
Desde então, uma certa dose de negligência, por parte dos governos democráticos que foram instalados no arquipélago após 1975, impediu que Taiwan, seguindo o exemplo de Israel (e também de outros países como a Suécia), desenvolvesse, de forma plenamente autônoma, as suas próprias defesas militares, conduzindo à atual situação de extrema vulnerabilidade que acomete Taipé (neste presente momento histórico), praticamente dependente do que se convencionou chamar de “Escudo de Silício”, ou seja, uma suposta proteção internacional fundamentada no fato de que o arquipélago produz mais de 40% de toda a fabricação mundial de chips semicondutores, essenciais pra a indústria eletrônica global.
“A posição de Taiwan como líder mundial na fabricação de chips semicondutores avançados (a gigante taiwanesa TSMC é líder do segmento, com 28% de participação no mercado global, seguida pela também taiwanesa UMC, com 13% de participação no mercado mundial, fazendo com que o país tenha ostentado em 2020 41% de toda fabricação mundial de chips semicondutores, deixando para trás a chinesa SMIC, com 11%, e a sul-coreana Samsung, com 10%) atua como elemento singular de dissuasão para uma ação militar chinesa, uma vez que o impacto de uma guerra nesta região seria tão expressivo que a China seria obrigada a pagar um preço muito alto, incluindo danos a sua própria economia, considerando que o gigante asiático chinês depende, assim como o resto da economia mundial, de chips extremamente sofisticados que são fabricados em Taiwan. Por outro lado, além da enorme perturbação que traria para a cadeia de suprimentos de alta tecnologia global das maiores economias do mundo, uma eventual invasão (bem sucedida) à ilha daria à China o controle sobre as fábricas de chips mais avançadas do mundo, algo que certamente os Estados Unidos e seus aliados tentariam evitar, mesmo que para isto fosse necessária uma intervenção bélica.” (CRAIG ADDISON; Silicon Shield: Taiwan’s Protection Against Chinese Attack)
Ainda assim, no campo militar propriamente dito, Taiwan continua extremamente vulnerável a uma ação chinesa por absoluta ausência de meios próprios que assegurem uma defesa efetiva. Nunca é por demais lembrar que a sobrevivência de Israel, de forma muito diferente de algumas narrativas (que insistem em uma pseudo-predominância de um irrestrito compromisso de Washington), deveu-se exclusivamente à determinação de seu povo de se manter como nação independente, razão principal da obtenção (a um elevadíssimo custo) de armas nucleares (que, em última análise, garantiram a sobrevivência do Estado judaico no conflito de 1973) e, posteriormente, de meios mais adequados para o seu emprego (como mísseis balísticos e, mais recentemente, de cruzeiro lançados de submarinos), e da diversificação em relação a seus fornecedores de equipamentos militares (driblando, desta feita, algumas restrições norte-americanas vigentes, particularmente na década de 1960), além da constituição de uma indústria bélica nacional de grandes proporções.
Na prática, poucas dessas iniciativas foram perseguidas pelo povo taiwanês, que preferiu apostar (ingenuamente) em uma democratização da China Continental (fato que simplesmente não ocorreu e, ao que tudo indica, não deverá acontecer), indicando, no mínimo, um futuro sombrio para o sonho democrático (e soberano) de Taiwan, e também para as relações sino-americanas-taiwanesas.
Por fim, vale também anotar que Taiwan, ao lado da Coreia do Sul e de Singapura, foi um dos tigres asiáticos que obtiveram um surpreendente desenvolvimento econômico nos anos 1980 e seguintes. Porém, diferente dos outros dois países, Taipé optou por não investir na modernização e ampliação de suas Forças Armadas, deixando de ostentar, na atualidade, uma força de dissuasão semelhante à que a Coreia do Sul possui (em relação à Coreia do Norte e à China) e que Singapura (apesar de sua diminuta população e extensão territorial) apresenta, de um modo geral.
Mais do que nunca parece ser válida, para o caso taiwanês, a famosa advertência do autor latino PUBLIUS FLAVIUS VEGETIUS RENATUS (século IV d.C.): “si vis pacem, para bellum” (se queres a paz, prepara-te para a guerra).
Sobre o autor: Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), Professor Honoris Causa da Escola de Comando e Estado-Maior da Aeronáutica (ECEMAR), Professor Emérito da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais do Exército (EsAO) e Conferencista Especial da Escola Superior de Guerra (ESG).