Por Eduardo Freitas Gorga
A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) é um fórum de cooperação multilateral que abarca nações de quatro continentes. Os seus laços culturais interligam os integrantes, sobretudo pelo idioma comum, em que pese a geografia descontínua dos territórios, separados por dois oceanos. Ela foi instituída, oficialmente, em 1996 e, atualmente, conta com nove Estados-membros. Entre estes, cinco países são africanos ocidentais, do entorno estratégico brasileiro, ou seja, banhados pelo Atlântico.
O Brasil é o ator contribuinte do continente americano que, com Portugal da Europa, detém as condições orçamentárias mais favoráveis para coordenar projetos de cooperação em amplos setores. Tais ações de colaboração ganharam importância com os projetos e a liderança da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), criada em 1987. Vale frisar que a África é o continente com mais integrantes, totalizando seis países, sendo os seguintes do entorno estratégico brasileiro afastado: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial e São Tomé e Príncipe. Ainda, Moçambique da porção Oriental do continente, que possui litoral Índico, é o sexto componente africano. Quanto à Ásia, de modo singular, o Timor-Leste é o único representante na CPLP.
Entre os variados campos de cooperação, um domínio muito particular foi concebido em 1998, a CPLP de Defesa. Ela foi idealizada e implementada a partir de eventos e iniciativas estratégicas, especialmente políticas, envolvendo civis e militares, como cimeiras rotativas bianuais de chefes de Estado para a formalização dos acordos e protocolos de cooperação. Além disso, aconteceram reuniões de órgãos específicos para a discussão dos interesses comuns do grupo, como entre os Ministros da Defesa e Chefes de Estado-Maior das Forças Armadas, congressos, seminários e cursos de formação para militares e agentes de segurança nos países-membros. Exemplificando, a Polícia Federal do Brasil apoia a reestruturação do Centro de Formação das Forças de Segurança da Guiné-Bissau, cujo princípio do projeto ocorreu em 2009, já tendo capacitado mais de 1500 policiais guineenses.
Tais atividades apresentadas estão inscritas no conceito de cooperação bi-multilateral proposto para este fórum lusófono. Destaca-se que o bi-multilateralismo na CPLP advém de uma articulação, inicial, entre dois determinados Estados, com potencial para gerar soluções conjuntas entre os demais. Com isso, é viável alavancar oportunidades de interações institucionais que aumentem os apoios recíprocos no grupo. Nesse ínterim, no decorrer dos 25 anos de existência da CPLP de Defesa, a política externa brasileira experimentou três distintos e marcantes períodos.
No primeiro, na última década do século XX, em que o país não possuía excedentes de poder, o Itamaraty passou a buscar uma estratégia de inserção externa que integrasse os seus eventuais temas e interesses em uma agenda internacional já existente, em grande medida organizada pelas potências. Como exemplo, cabe lembrar que Portugal protagonizou ações e liderou as iniciativas que moldaram e impulsionaram a CPLP, a começar nos anos 1990. Portanto, após o término da Guerra Fria, o Brasil adotou uma “autonomia pela participação”, a fim de influenciar normas e regras na nova ordem mundial que estava em formação, aderindo em acordos como o da CPLP e o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, entre outros.
Em um segundo momento, no mandato inaugural do presidente Lula, o Brasil foi alçado com maior vigor às relações no âmbito Sul-Sul. Na CPLP, o governo brasileiro participou da composição do Secretariado Permanente para Assuntos de Defesa, no ano 2000, e da formação do Centro de Análises Estratégicas, criado em 2002. Realizou intercâmbios para adestramentos combinados entre as Forças Armadas (séries FELINO, desde 2000).
Além disso, no governo seguinte, foi atuante na Estratégia para os Oceanos (2010) e no Fórum de Saúde Militar (2013), dentre demais iniciativas. Referente às potências, o país fez um contraponto aos blocos do hemisfério Norte, o que gerou confrontos ideológicos em razoável medida desnecessários. Assim sendo, questionando e assumindo posições reformistas, além de revisionistas na ordem internacional vigente, o Brasil firmou novas alianças, como com a União das Nações Sul-Americanas (2008) e os BRICS (2009), fortalecendo coalizões contra-hegemônicas.
Um terceiro posicionamento, divergente dos dois anteriores, surgiu com o fenômeno político nacional denominado bolsonarismo. Este reabilitou as relações com o ocidente cristão e relegou interações com nações do Sul global, como com a África. Nesse período, apesar do resfriamento de interações referenciado, na CPLP ocorreram o estabelecimento do Colégio de Defesa (2018), exercícios militares conjuntos com as Marinhas (série GUINEX) e a formulação do Mecanismo de Resposta à Catástrofes (2021), os dois últimos com protagonismo brasilero. Ademais, de forma geral, foi priorizado o redirecionamento da política externa para o sentido Norte-Sul, fundamentalmente focada em coligações lideradas pelos Estados Unidos da América, como da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em que o Brasil atingiu o status de aliado militar preferencial.
Encaminhando as considerações derradeiras, diante dos complexos problemas atuais, a CPLP de Defesa possui agenda setorial e identidade próprias, diferenciadas de outras organizações de Defesa e Segurança, como da União Europeia, da OTAN e do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. A cooperação permanece como a chave para mitigar a heterogeneidade existente na CPLP, seja pelas distintas limitações e possibilidades orçamentárias ou pelos variados níveis organizacionais institucionais dos seus países-membros, principalmente dos africanos. Dessa maneira, a notória inconstância da cooperação institucional brasileira pode ser, em alguma medida, reflexo das gestões de governo dos três marcantes períodos expostos neste texto.
Finalmente, entre os desafios do século XXI, persiste identificar, discutir e planejar soluções para os problemas de Defesa da CPLP, sendo crescente a importância de prestar auxílios de capacitação para os recursos humanos das nações africanas do entorno estratégico do Brasil. Em consequência, independentemente da gestão de governo vigente, bem como da sua ideologia política norteadora, o bi-multilateralismo da ABC, como instituição estatal, evidencia potencial agregador para ampliar, estrategicamente, as possibilidades de relações no contexto da Defesa do fórum analisado.
Sobre o autor: Doutorando em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança pelo PPGEST/ INEST/ UFF