“Em qualquer parte do mundo, o acidente de um navio no mar teria sido investigado e julgado por tribunais militares ou especiais e não pela Justiça Civil.”
A promoção post mortem concedida dias atrás à 44 tripulantes da “ARA San Juan” constitui um reconhecimento justo e de longa data da dedicação e sacrifício dos homens e mulheres da Marinha que perderam suas vidas, a 900 metros de profundidade, protegendo nosso mar territorial .
Infelizmente, uma homenagem tão merecida é contraditória diante das acusações de que a juíza federal de Caleta Olivia, Marta Yáñez, encarregada do julgamento pelo naufrágio do submarino, formulada para diferentes quadros da Marinha, em janeiro passado, dispensando as opiniões mais elementares de especialistas e técnicos e sem chegar às causas específicas que explicam o naufrágio, básicas para eventualmente, estabelecer supostas responsabilidades.
Um velho axioma da filosofia do direito recomenda construir um caso a partir da materialidade dos fatos. No caso do naufrágio do submarino da “ARA San Juan”, será muito difícil, se não impossível, saber o que e como aconteceu. Os destroços, juntamente com os corpos de nossos 44 marinheiros heróicos, a prova mais dolorosa do que aconteceu, estão inacessíveis nas profundezas.
Aqueles que provavelmente nunca viram um submarino, com base em hipóteses e opiniões mais ou menos tecnicamente fundamentadas, tentam reconstruir os fatos e aplicar o que é estabelecido pelos códigos atuais, embora estejam longe de entender completamente a realidade do comando de um navio militar tão complexo no mar.
Em uma decisão recente, a juíza Yáñez processou seis oficiais de médio e alto escalão da Marinha da Argentina, a quem ela acusou pelo crime de destruição culposa agravada pelo resultado da morte e os acusou de não cumprimento de deveres de funcionário público e omissão de deveres do ofício.
A referida jurisdição judicial não seria questionável se o acidente tivesse ocorrido em áreas regidas por leis civis ou criminais, mas não se aplica ao que aconteceu nas forças armadas. Em qualquer lugar do mundo esse acidente teria sido investigado e julgado pela Justiça Militar. De fato, desde 2000, houve 15 acidentes militares submarinos em todo o mundo, com um total de 216 mortes. Em todos os casos atuaram tribunais especiais. Na Argentina, nem o Código de Justiça Militar nem os tribunais que o aplicaram, sobreviveram às reformas aplicadas desde 1983, nascidas de um acentuado espírito antimilitar que, em 6 de agosto de 2008, revogou o referido código e aboliu a Justiça Militar, uma lacuna que não foi compensada com o mais recente Código de Disciplina das Forças Armadas, em vigor hoje.
Essa grave anomalia impede que aspectos de organizações militares que estão fora do campo da justiça civil sejam considerados. Qualquer que tenha sido a motivação política ou mesmo geopolítica para esse procedimento, reconhecendo que, a partir de 1983, foram diluídas as hipóteses de conflito com o Chile e a rivalidade estratégica com o Brasil, a realidade é que, desde a recuperação da democracia, os orçamentos de defesa foram negligenciados e se consentiu a duplicação de serviços com a área de segurança, o que significou que os recursos alocados à defesa estavam praticamente limitados ao pagamento de salários.
Com uma mensagem implícita dos governos em relação às Forças Armadas cujo apoio mais básico foi removido, deixando-as a “própria sorte”, sendo que investimentos e manutenção foram sacrificados. Desde então, os aviões de combate foram perdidos, alguns até reivindicando vidas; navios foram abandonados; tanques e equipamentos foram canibalizados; a munição escassa e a jornada de trabalho foi reduzida devido à falta de rações. Tarefas e missões começaram a ser cumpridas em condições cada vez mais precárias. Os oficiais passaram a enfrentar riscos crescentes diante do dilema de interromper as atividades necessárias para o cumprimento adequado dos objetivos de defesa.
No nível militar, um oficial que não enfrentasse um ataque externo seria condenado pelo fato de seu equipamento não estar em ótimas condições. Em termos mais claros, é apropriado deixar de ter equipes de submarinistas diante de um aumento tão notável e perigoso dos riscos devido à falta de manutenção? Se a resposta fosse afirmativa, seria aplicável a todo o aparato defensivo e, consequentemente, as Forças Armadas argentinas deveriam permanecer paralisadas.
No caso da “ARA San Juan”, seria apropriado para um conselho de guerra observar o que na linguagem militar é conhecido como “eficácia do comando”. O foco de atenção seria então colocado na liderança de topo que se refere diretamente ao poder político, com atenção especial ao chefe do Estado Maior, responsável por exercer o comando e administração da Marinha e dirigir a preparação para a defesa, além de ser o principal coordenador do Ministério da Defesa, do qual depende por delegação do Presidente da Nação. Certamente, ele não teria parado de considerar o planejamento do exercício em que a “ARA San Juan” atuou, que foi a maior e mais ambiciosa da Marinha em vários anos, mas com material obsoleto, adequado apenas para navegar sem maiores demandas.
Um tribunal militar teria alertado que, durante anos, um navio de resgate não estava disponível na área, ao contrário do que acontece no Brasil e no Chile. Também teria avaliado se o pessoal da Marinha, tanto a bordo da “ARA San Juan” quanto o restante da força, havia recebido o mínimo de treinamento para desenvolver e manter suas habilidades navais. O longo tempo de falta de financiamento da defesa nacional a que nos referimos deixou não apenas uma frota obsoleta, mas também os marinheiros que suprem com coragem e arrojo à falta de horas de navegação e consequente experiência profissional.
Portanto, há culpas compartilhadas entre os oficiais e os governos que cortam orçamentos e levam a riscos desnecessários. Ambos favoreceram o cenário da tragédia, transformando as deficiências em uma habitualidade que praticamente anulava a percepção de risco, ocultando falhas e restrições. A conseqüência infeliz foi transformar um exercício militar em uma ação imprudente, como aconteceu tantas outras vezes, por pura sorte, com resultados menos infelizes.
Diante dessa situação, o que foi decidido pela magistrada Yáñez termina expondo as limitações e insuficiências muito graves do Código Penal para abranger um ato militar altamente complexo, que exige desde a inspeção técnica do estado de uma válvula, bem como a avaliação de um exercício do comando na Marinha.
Para piorar a situação, neste caso, a autoridade política, ou seja, o ministro da Defesa da vez por delegação do comandante em chefe, que é o presidente, não estava à altura da tarefa imposta pelas circunstâncias. Além disso, ele tinha a incompetência da juíza Yáñez, que também transferiu a responsabilidade do próprio chefe da Marinha. A atitude injustificável do ex-Chefe do Estado Maior da Marinha Marcelo Srur não tem precedentes em nossa história naval. Sua tentativa de responsabilizar seus subordinados diretos por crimes militares sérios que não existiam no acidente da “ARA San Juan” é tão inexplicável quanto questionável.
Mais uma vez, a longa lista de desatinos excede essa opinião editorial, as Forças Armadas são responsáveis criminalmente por acidentes ocorridos no desenvolvimento de práticas profissionais expressamente aprovadas ou ordenadas pelo poder político e exigidas até o limite devido a escassez orçamentária descrita.
Como circunstância agravante vergonhosa, os chefes e oficiais que foram vítimas de acidentes em exercícios profissionais sob as más condições impostas pelos cortes não são legalmente defendidos pelo Estado, como deveria. Em vez disso, eles se tornam os únicos réus e devem até buscar, a seu custo exclusivo, defesa legal. Além disso, no caso da “ARA San Juan”, a juíza emitiu embargos importantes que os oficiais acusados não podem enfrentar com sua renda e ativos modestos.
Nesse cenário, que grande parte da sociedade está longe de levar em consideração, apenas algumas vozes isoladas e com pouca repercursão surgiram diante de ações tão contraditórias quanto imerecidas. Seria importante para o futuro dos quadros das Forças Armadas em geral e da Marinha em particular se houvesse um pronunciamento esclarecedor não apenas por parte da Câmara na esfera judicial, mas também por parte daqueles que despertam o maior respeito dentro da arma. Oficiais na ativa têm restrições institucionais óbvias, mas a palavra de um grande grupo de almirantes aposentados serviria como “farol” e exemplo, reafirmando valores e apoiando a esperança daqueles que, por vocação, estão dispostos a sacrificar sua vida em defesa da terra natal.
Fonte: La Nacion
Tradução e adaptação: Marcio Geneve