O Brasil não será ator internacional no nível de seu potencial sem poder militar compatível
Por Mario Cesar Flores
Em países social e politicamente bem estruturados as preocupações de defesa nacional transcendem o poder político – o presidente com seu Conselho de Segurança, as comissões temáticas do Congresso e as Forças Armadas. Nesses países, instituições representativas da sociedade, a intelligentzia e a mídia contribuem informalmente para a formação de um senso comum nacional sobre o tema, que, embora um tanto difuso, sanciona e/ou critica a política do governo. Esse modelo inexiste no Brasil, onde a defesa está excluída da atenção da elite e do povo, como se vivêssemos num paraíso adiabático, em que a defesa se tornou preocupação superada, privando o preparo militar da sanção e/ou crítica da sociedade. Já focado em artigo anterior, a apatia nacional sugere insistir nesse assunto.
São raras (se tanto…) as manifestações sobre a defesa nacional da parte de instituições de estudos políticos e estratégicos existentes em algumas universidades brasileiras e de instituições independentes que deveriam incluir esse tema em seus programas. Na mídia ele raramente é objeto de atenção, embora apareça com algum destaque quando envolve o ângulo financeiro do preparo militar. As Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara de Deputados e do Senado Federal, vocacionadas para o tema, tampouco o aprofundam. O Ministério das Relações Exteriores provavelmente pensa a respeito, discretamente, na moldura do conceito de que o Brasil é um país pacífico. É, de fato, mas como disse seu ex-ministro José Serra em campanha eleitoral em que era candidato a presidente, “país pacífico não é país desarmado”. E há pouco mais de um século Rio Branco via o preparo militar como respaldo para sua solução pacífica de contenciosos de fronteira.
Nesse quadro de indiferença generalizada, as Forças Armadas são vistas como uma guarda costeira e polícia naval, uma força de segurança de fronteira contra a criminalidade transnacional, de segurança interna para complementar ou substituir o sistema policial em situações de desordem interna que justifiquem esse recurso excepcional e de cooperação na defesa civil em episódios de calamidade, como uma organização (nesse caso, a Aeronáutica) para o controle da segurança de voo (e para o transporte aéreo de autoridades…). São realmente tudo isso, mas não apenas isso.
Frase proferida por âncora de noticioso na TV, simbólica do ânimo do grande público, ao comentar a capacidade do Exército para controlar distúrbios populares: “Eu sei que o Exército tem (tal capacidade) e se não tivesse não se precisaria do Exército”. Precisa-se do Exército para a ordem interna. E a defesa nacional?
A ausência de concepção básica que respaldasse o preparo militar, formalizada pelo poder político com ingerência no tema e, ainda que difusamente, sancionada pelo senso comum nacional, é um percalço cultural em quaisquer circunstâncias e muito mais quando a contenção de gastos para o controle da crise econômico-financeira que flagela o País é um imperativo de que as Forças Armadas não estão imunes. Ao contrário: obriga-as a planejar e executar o preparo militar possível de conformidade com uma rigorosa definição de prioridades. As Forças veem-se obrigadas a planejar e executar seus preparos constrangidos pela austeridade em função de suas perspectivas sobre as preocupações que devem pautá-los.
O que está em curso não é comentado aqui porque isso exigiria o conhecimento dos programas vigentes, além de conhecimento técnico-profissional atualizado, de que o autor já não dispõe. Mas para não deixar a “questão em branco” este artigo sugere uma ideia superficial do que poderia ser o alicerce básico de um senso comum brasileiro sobre defesa nacional, sem detalhes do que ele significa para cada uma das Forças o que, novamente, dependeria de conhecimento técnico-profissional atualizado, assim resumido:
1) Um núcleo (uma capacidade) de poder militar tecnologicamente moderno, criteriosamente dimensionado, mas capaz de dissuadir agressões por cobrar-lhes alto custo – objetivo em que ressalta, por exemplo, o submarino, para ameaça que tiver por trânsito o mar. E capaz de abortar qualquer aventura concreta, nos vários teatros geofísicos do País. Esse cenário clássico tem hoje um ranço de inverossimilidade, mas a dinâmica da História não a assegura no médio/longo prazo e a estruturação de um poder militar tecnologicamente moderno se estende por muitos anos e exige recursos vultosos.
2) Dadas as injunções interativas do mundo integrado, economicamente e nas áreas ambiental e das comunicações, aquele núcleo deve poder constituir força(s) de intervenção para apoiar mandatos da ONU, da OEA e de outras organizações a que o Brasil esteja associado, em nível significativo e até protagônico em sua região.
Além disso, o nosso poder militar precisa ser capaz de atender ao óbvio: o controle rotineiro das fronteiras terrestres e do mar costeiro. E de responder a necessidade eventual e temporária de controle da ordem interna.
O esboço aventado é uma ideia emblemática e superficial que pretende despertar ao menos alguma curiosidade pelo tema no grande público, hoje indiferente. É pouco, mas é um início de longa evolução cultural. É preciso superar essa indiferença, cujas consequências são inseguras no correr do tempo. Ademais, o Brasil não será ator internacional no nível coerente com seu potencial se não dispuser de poder militar compatível com esse nível, constituído com o aval do povo.
Se este artigo servir à ideia de que as Forças Armadas não existem apenas para o papel de polícia – de fronteira, costeira e na ordem interna – e de cooperação na defesa civil em calamidades, há que pensá-las prudente e ponderadamente na defesa nacional, de hoje ao incerto longo prazo, já estará justificada a sua publicação.
* AE (RM1) Mário César Flores
FONTE: O Estado de São Paulo
M Silva, como tantos aqui, sua opiniao clara eh so mais um complemento a todas as opinioes lucidas dadas frequentemente qdo provocads por alguma info ou entrevista. Sds
Ótimo artigo!
Tudo caminha para o contrário:
1) a mídia silencia ou critica políticas de defesa (mesmo sobre o controle fronteiriço para impedir tráficos de drogas e armas),
2) dormimos embalados pelo mantra do “somos um país pacífico” (mas nossos narcovizinhos, aliados dos políticos socialistas e dos narcoterroristas do PCC, CV, FDN, etc, e os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU não o são),
3) acreditamos que as coisas serão como no tempo da Guerra do Paraguai (os invasores estarão tão distantes e teremos meses para convocar, treinar, armar e despachar forças militares contra inimigos externos e internos – estes, os mais perigosos!),
4) sucateamos a indústria bélica (até a Turquia ou Cingapura estão melhores do que nós),
5) nossos almirantes e brigadeiros planejam grandezas a longo prazo mas se esquecem das necessidades prementes e básicas a curto e a médio prazo,
6) nossos generais pararam na era Vargas,
7) nossos militares se deixam subornar por boas aposentadorias e soldos bem atualizados (só enxergam o próprio interesse – nada diferente dos nossos políticos – exceções nobres à parte),
8) política de defesa não dá voto para político safado,
9) nossos militares (ao contrário da Suíça, de Israel e dos EUA) não enxergam o povo como parceiros na segurança pública ou na defesa nacional (apoiam a restrição ao armamento dos civis – ou “paisanos”) como se as PMs e as FAs fossem onipotentes, onipresentes e oniscientes – e rápidas! – só que não. Pelo contrário, são arrogantes e desconfiam do povo como se todo ele fosse bandido.
Só lembrando que a arrogância, segundo Ho Chi Min, foi motivo de queda dos franceses e dos americanos no Vietnã: “vencemos os franceses porque eles eram arrogantes, e venceremos os americanos porque eles são ainda mais arrogantes do que os franceses” (claro, com ajuda do tráfico de armas e munições vindo da China e o treinamento comunista). Nossos militares, sem do que se orgulhar, parecem mais arrogantes do que os americanos…
Isto (o básico) não será conseguido sem uma reforma profunda na reestruturação das FFAA e sua relação entre as forças, o poder político e a capacidade tecno-industrial. E quando eu digo reestruturação, não digo apenas na concentração de forças em poucos pontos no território nacional, como vem sendo feito pela FAB, mas uma melhor distribuição espacial das forças, especialmente nas regiões aonde são realmente necessárias, mas também sua reestruturação organizacional integrada, buscando maior eficiência orçamentária, expurgando gastos que não dizem respeito a função de Defesa. Mostrando com clareza à sociedade de quão pouco e mal, gastamos e investimos em Defesa Nacional e não só reclamar de que não existe verba suficiente, pois está evidente que boa é só isto.
É o que penso.